Paixão de Outono - Capítulo V - O culpado era o padeiro



Paixão de Outono - Capítulo V - O culpado era o padeiro

 

            Nos dois dias seguintes Yolanda não podia admitia sentir o que estava sentindo. O gato Mefistófeles penou, e penaram também o velho papagaio e o lixeiro: ficaram dois dias sem pão. O culpado era o padeiro. Yolanda sentia vergonha por ter parecido uma mulher leviana durante as danças lá na quermesse, dançando daquele jeito, rebolando como se fosse uma mocinha apaixonada. E evitava passar diante da padaria, mudando o percurso para ir à missa.

 

            O culpado era o padeiro. Certamente Inácio levava a sua vidinha de sempre: vender pão e beber cerveja. E ouvir música brega e chorar. Isto que Yolanda pensava, e rezava por ele, o pecador.  Mas, a contragosto, se colocava nesta lista de pecadores.

            Dois dias sem comprar pão, dois dias sem ir à missa, dois dias sem passar à frente da padaria. Naquela rua a rotina fora rompida: Já dona Yolanda não passava todas as tardes, pela frente da padaria, nem ia à missa. O culpado era o padeiro.

 

 

 

Paixão de Outono - Capítulo VI

 

            Não, Yolanda não fora visitar a filha que morava em São Paulo, nem fora prantear o filho Milton em seu túmulo nas serras paraenses. Ela pensava. Ela se trancara em casa, para alegria e aborrecimento do gato Mefistófeles que ora era acariciado, ora estapeado e expulso do colo choroso.

            Ela não sabia que estava amando. Ou sabia? Sim, sabia, mas não admitia. Suas companheiras de missa, muitas viúvas, santas e convictas, viviam virtuosamente sozinhas. Por que ela não poderia viver assim, dedicada aos serviços do Senhor, se perguntava. E lembrou-se que, de todas, apenas dona Maria, 78 anos, se juntara com outro viúvo, dez anos mais velho que ela. Viveram juntos, e bem, quatro anos até que ele morreu aos 92, deixando-a viúva pela segunda vez. E dona Yolanda garrava a rezar, apegava-se às suas novenas, o terço, as medalhinhas, implorando que afastassem dela aquele cálice amargo-doce.

Aí Yolanda se lembrava, pela enésima vez, que suas amigas viúvas, estavam quase todas acima dos 60, muitas beirando os 70 e já não pensavam em amor, em paixões, iam se ressecando. Talvez alguma desejasse um companheiro, mas para quê? Ora, comparada com muitas delas, sentia-se jovem, sentia que seu coração enfeitava-se com aquele sentimento. Mas não adiantava, não tinha mais coragem de sair de casa. Então um pensamento veio, num repente, e se perguntou: E se algumas de suas amigas, aquelas com mais de 70 anos, sentissem também desejos? Não o de ter saúde melhor, de ser amparada ou visitada por filhos, mas o desejo de ter um homem que a cobiçasse como mulher, como fêmea! Um homem que a fizesse se sentir A Mulher! A Desejada! Oh, bem provável que sentissem!

           

Cinco dias a pão e água só santo que agüenta. Até um gato preto, que é um bicho excomungado, e um papagaio, que é um bicho muito alcoviteiro quando aprende a falar, sentem fome, pois, embora tenham partes com o capeta, também são filhos de Deus. E, do mesmo modo, a mulher mais santa, e imbuída de boa vontade e de muita fé, também sofre fome, alem de sofrer, algumas dessas santas, muita fome de amor. E era desta fome que dona Yolanda sofria. Abriu as janelas e entrou o sol, e luz, e calor. E, por mais que ela não quisesse, nas preces dela, entrou robustecido o desejo que tentara em vão sufocar. Janelas abertas, entrara calor demais, sentiu-se abafada, sentiu que Inácio entrara também e a abraçara forte, como na noite do baile. Então, cheia de coragem, vestiu uma roupa simples e foi comprar três pães.

Alegraram-se o gato e o papagaio e alegrou-se Inácio quando a viu entrar na padaria. Mas Inácio tinha seus altos e baixos, se, noites antes, na barraquinha, fora tão cativante, mesmo ao beber cerveja, agora, quando Yolanda entrava, corajosa, ao saudá-la, com um cumprimento, ele ergueu uma latinha de cerveja, feliz por vê-la, e ela o odiou!

           

            Novas horas de reclusão, mais horas de orações e jejuns. Depois promessas de ir às missas, envolver-se com as amigas e de quantas iniciativas beneméritas elas a fizessem participar. Mas vinham as lágrimas nos momentos mais despropositados. As colegas de igreja não entendiam por que Yolanda chorava. Ah, algumas sabiam, sim!

 

 

 

Paixão de Outono - Capítulo VII

 

            Oito e meia da manhã não é hora de amar. É hora de trabalhar, de cumprir compromissos, de estudar, de regar plantas. E é hora em que os preguiçosos, ou os amantes que amaram demais a noite toda, ainda não se levantaram.

            Qual hora é hora certa para amar?

            A campainha tocou um pouco antes das oito e meia.  Dona Yolanda foi atender, ai, devia ser a dona Amélia, com seus tricôs, sempre vinha pedir opinião. Yolanda opinava, dona Amélia contradizia. Yolanda se prometia não mais dar seu parecer, mas sucumbia. Ficava com raiva, mas gostava da velhinha.

             Não era nada sobre bordados: era Inácio. Yolanda tremeu. Muda. Um minuto de silêncio. A voz dele reapareceu pelo interfone:

            “Yolanda, eu vim trazer uns....”

            Tudo que ele disse entrou por um ouvido e saiu por outro. Não poderia abrir o portão daquele jeito: desarrumada, de camisola ainda, os cabelos desalinhados, e estava de óculos, pois lia um livro religioso. Foi formal:

            “Seu Inácio, agora não posso atendê-lo...”

            E não entendeu nada do que ele disse. Percebeu que ele se fora. Meia hora depois, quando as pernas pararam de tremer, foi lá fora: sobre o tamborete, que ficava ao lado do portão, havia um saquinho de papel com pães de queijo.

 

            Chorou. Chorou comendo pães de queijo. Por que não o atendera? Por que não estava arrumada e linda às oito e meia da manhã? Bruxa! Isto que ela era! Acabaram os pães de queijo, que comera compulsivamente. As lágrimas não acabaram. Por que era tão paradona, se perguntava. Desse um jeito no cabelo, tirasse os óculos, e abrisse o portão!

            Não, não era paradona, era mulher decidida, decidiu um dia depois. E nem tudo era um desastre: havia uma justificativa para voltar a encontrar Inácio: pedir desculpa por não tê-lo recebido, e com isto superaria a vergonha por ter sido tão leviana durante as danças lá na quermesse. Desculpar-se era a chance de reencontrar Inácio.

 

Onivaldo Paiva: [email protected]

 


Autor: Onivaldo Paiva


Artigos Relacionados


Theo De Carvalho - Segundo AniversÁrio

Literatura Contemporânea - O Caminho Abstrato

Igualdade Exata

Camaleão

O Xiita E Sua Prece

O Processo Da Independência Do Brasil

A Vida TambÉm É Feita De Amor E Com O Amor