ATOS DOS APÓSTOLOS: O Pentecostes



No livro de Atos dos Apóstolos encontramos uma das passagens mais controvertidas, discutidas e, ao mesmo tempo, belas, do Novo testamento. Trata-se At, 2,1-11 que se popularizou como fundamentação para a festa do Pentecostes.

O pentecostes judaico, celebrado 50 dias após a Páscoa, recorda a Aliança e o dom da Lei. No calendário judaico está é uma festa de grande importância, pois cobra fidelidade à Aliança pela observância da Lei. Trata-se de olhar para o passado em busca de orientações para o presente.

O cristão, entretanto, tem um novo Pentecostes. Trata-se de uma celebração do dom do amor.

Enquanto o Pentecostes Judaico é uma celebração em função da Lei, a celebração cristã tem uma conotação trinitária, e se completa a ação salvadora de Jesus que havia falado do Pai e prometido o Consolador (Paráclito). No evento de Pentecostes essa promessa se concretiza com o dom de amor, do Pai, sendo distribuído entre os discípulos.

Pode-se ver, nesse evento, o Pai (dom da Criação) entregando não só sua Palavra encarnada e atuante (Jesus de Nazaré), reformulando a antiga Aliança, como a confirmação da ação de Jesus dando um novo estatuto: o do Amor. Trata-se de Jesus mostrando a Nova Lei fundamentada em dois princípios: amor a Deus e amor ao irmão, substituindo ou atualizando o decálogo que embasava a antiga Lei. Essa nova lei, dada pelo Verbo Encarnado é agora confirmada pela vinda do Espírito de Amor, explicitação da relação amorosa (pericorese) entre o Senhor da Criação e o Verbo Encarnado. Podemos ver, portanto, que o episódio do Pentecostes não é somente uma manifestação de sinais miraculosos, mas uma manifestação trinitária ou a consumação da manifestação da trindade na história dos homens. A ação criadora, lá do Gênesis se concretiza no Pentecostes.

Entretanto por uma série de circunstâncias, essa perspectiva se perdeu, ou foi esquecida, em nome de outra, possivelmente equivocada. O episódio de Atos 2, 1-11, não se trata de um anúncio do dom das línguas, mas uma convocação a que as comunidades ali mencionadas façam, não só e ao mesmo tempo uma revisão de sua história, que tem uma base comum, mas uma descoberta da missão trinitária que se atualiza na comunidade dos irmãos que partilham a mesma fé e mesma esperança..

Do ponto de vista histórico as localidades mencionadas indicam onde o evangelho já se havia instalado, formando comunidades. As línguas de fogo podem ser associadas ao calor do amor que queima a divisão geográfica e cultural, criando uma nova e definitiva comunidade que se comunica não só pela língua humana, que pode ser falha, mas pela linguagem do amor, que é universal. A partilha, a solidariedade, a disponibilidade, podem ser palavras articuladas e grafadas de formas diferentes, nas várias culturas, mas que tem um só significado como expressão do amor que é o primeiro e principal dom distribuído entre os crentes e deles para os gentios.

Como são comunidades que se acham distantes geograficamente, podem incorrer em equívocos. Como de fato ocorreu, historicamente, com o surgimento das diferentes heresias. Portanto a distância geográfica, pode ocasionar divisões ou visões distorcidas em virtude da cada localidade se situar em uma região e em meio a um povo com cultura diferente. Essa divisão ou diversidade de visões ocasiona o desamor, que, por sua vez, provoca desunião. Daí a importância simbólica da menção as várias localidades que ouvem a mesma pregação "cada um em sua língua natal", visto que o amor não tem fronteiras.

E aqui está mais um elemento importante: essas comunidades, representantes das comunidades em que o evangelho já se implantou, são, também, comunidades da diáspora – judeus que se haviam refugiado nas várias localidades ali mencionadas. Portanto, originariamente são comunidades que descendem de uma mesma cultura, e, conseqüentemente da mesma língua.

Notemos que são "tanto judeus como prosélitos" (At. 2,11), vindos das diversas comunidades da diáspora; e vieram para as comemorações das festas judaicas; vieram para cumprir a lei. Se vieram para cumprir a lei, é de se supor que, mesmo se fazendo cristãos, ainda mantinham vínculos com a comunidade judaica, pois nesse período da redação de Atos dos Apóstolos, não se pode dizer que já tenha havido uma completa separação entre o judaísmo e o cristianismo, antes, pelo contrário, o cristianismo ainda era uma seita judaica.

Com isso fica fácil compreender que as pessoas que estava em Jerusalém, aos quais Pedro invoca como "homens da Judéia e todos vós habitantes de Jerusalém", (At 2,14), não eram exatamente estrangeiros, mas membros de uma mesma comunidade de fé – e de uma mesma cultura, consequentemente falantes de uma mesma língua; ou, no mínimo, partícipes da mesma cultura originaria. Disso concluímos que a surpresa dos ouvintes, é somente retórica do redator. Se os que falavam eram "todos galileus", então falavam a língua comum aos judeus. Por esse motivo, já que todos os que estavam ali eram judeus e prosélitos, todos os ouviam não em outras línguas, mas só podia ser "no próprio idioma em que nascemos" (At 2,8), ou seja, a língua dos judeus (é importante observar, para entender isso: o judaísmo posterior à destruição do templo, pelos romanos, mais de cem anos depois de Cristo, espalharam-se pelo mundo, mantiveram língua e costume – mantiveram-se como nação – e somente se reagruparam em um território após a segunda guerra mundial, quando foi recriado o atual estado de Israel. Portato é perfeitamente compreensível que os judeus da diáspora mantivessem sua cultura e ouvissem Pedro falando em sua língua natal, o hebraico)

Ver nesse episódio uma "manifestação do dom das línguas" é um equívoco e uma distorção da mensagem do texto que pretende expressar a força da língua do amor. Principalmente por que a língua do amor é a língua da união, da compreensão. E o que se tenta dizer que é "dom das línguas" em vários grupos religiosos é uma balburdia que ninguém entende: pode haver amor, nesses grupos, mas não processo de comunicação.

Ressaltemos, além disso que o evento do Pentecostes e suas manifestações é muito mais simbólico do que histórico. Simboliza a inversão de Babel (Gn. 11,1-9) que é completa dispersão; e a atualização de Joel 3,1-5 que é uma manifestação de reagrupamento.

O texto de Joel há uma descrição Apocalíptica. Mas é, também, uma universalização da mensagem libertadora: O espírito anunciado virá "sobre toda carne". E esses são: filhos e filhas, anciãos e jovens, escravos e escravas. Ou seja, a promessa do Espírito é para todos. E isso se concretiza em At. 2,1-11. O Espírito se manifesta não só os membros da família (anciãos, jovens, filhos e filhas, escravos e escravas), mas para todas "todas as nações que há debaixo do céu" (At. 2,5).

A manifestação do Espírito em Joel, também, arremete a uma comunidade de profetas. Filhos e filhas, anciãos e jovens, escravos e escravas receberão o espírito que será derramado como fogo, fazendo o sol escurecer e a lua se tornar vermelha. Esses sinais terríveis seriam como que caminhos de purificação.

Nesse dia terrível, de perdição, haveria salvação para quem invocasse o nome de Deus. É o oposto do que ocorre em Atos, quando os que ouvem os apóstolos e vêm a proliferação das línguas não como sinal da presença de Deus, mas como manifestação de orgia. O sinal de Deus, portanto foi identificado como sinal de uma divindade pagã. Por isso a necessidade da intervenção de Pedro, explicando o episódio "o que está acontecendo é o que foi anunciado pelo profeta (Joel)" (At. 2, 2,16); e anunciando o Querigma: "Jesus, o Nazareu" (dimensão histórica), segundo a "presciência de Deus (dimensão divina), vós o matastes, crucificando-o pela mão dos ímpios (ação humana). Mas Deus o ressuscitou" (ação divina). (At. 2, 2,22-24).

Além disso, se trata de uma inversão de Gênesis porque ali a finalidade não era o amor. No episódio de Gênesis as pessoas são confundidas não por que Deus as castigasse, mas por que a finalidade da obra não era o amor. Era a ostentação, era o endeusamento do homem, ou da obra humana como caminho para o engrandecimento não de Deus que dá a capacidade de construir, mas da capacidade dos homens, que, sem Deus, nada são; essa obra, portanto, só poderia acabar em confusão: não a confusão da bagunça, mas da incompreensão. Exatamente o oposto do que Jesus veio mostrar. O Verbo se encarnou para mostrar a capacidade humanizadora de Deus. É pela humanização de Deus que o homem pode se divinificar – ficar em Deus. Em face dessa grandeza de Deus os teólogos medievais cunharam a expressão pela qual afirmavam que Jesus sendo "assim tão humano só podia ser divino".

O local da ação é semelhante. Em Gn os homens constroem e tentam subir numa torre para desafiar Deus; em Atos dos Apóstolos o Deus-Espírito se utiliza de uma torre para se manifestar aos homens, que dela descem e transmitem a mensagem unificadora. Não se trata do homem se impor a Deus, mas de aceitar de Deus não uma promessa complexa, mas de renovar e refazer uma aliança que na realidade havia sido um Dom, desde o ato criador, resultado da ação amorosa da trindade santa.

Aquilo que é dom deve ser buscado e confirmado como tal e não confundido com a intenção e a vontade humana. O dom de Deus manifesta-se na gratuidade. A vontade humana oscila de acordo com as conveniências.

Neri de Paula Carneiro – Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador.

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Autor: NERI P. CARNEIRO


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