Apagão De Gestão



Um iceberg me parece a melhor representação para ilustrar uma breve avaliação estrutural sobre nosso país. A principal característica do iceberg, é que a parte exposta acima da linha dágua representa, apenas, cerca de 10% de todo o seu volume. Outra característica é que os icebergs vagam conforme sopram os ventos e empurram as correntes, portanto, mesmo com todo o seu tamanho, não têm domínio sobre o seu destino. Os icebergs são massas de gelo disformes, mutantes, e podem durar décadas ou dias conforme sua localização e proporção. Enfim, os icebergs são a representação figurada dos governantes de plantão e do nosso país.

O Brasil vive já há quatro meses uma crise no setor aéreo sem precedentes e sem igual em todo o mundo. Aliás, é interessante notar que quase tudo o que se consegue fazer neste país tem que ser grandioso, até o que não presta. Os personagens dessa tragicomédia trocam de lugar conforme a dança, ou de acordo com o poder de fogo de cada grupo na mídia e os interesses do momento: companhias aéreas, gestores do primeiro e segundo escalão do governo federal, controladores de vôo e até o presidente Lula. Todos trocam acusações mútuas e fogem à responsabilidade.

O último apagão aéreo ocorrido no início da segunda quinzena de março (dia 16) é um espelho fiel e bem delineado das proporções do desastre que a gestão pública atingiu no nosso país. A repetição continuada dos problemas no setor aéreo indicam claramente que há uma crise sim, mas de competência. Uma das principais características dos maus gestores é buscar culpados para seus erros e, quando são políticos, buscam culpar situações, objetos, sistemas, raramente pessoas. Assim, nesta última crise, dois culpados emergiram: o software de gestão do sistema aéreo e o sistema de energia do aeroporto de Brasília. Bastante conveniente, pois não conheço nenhum advogado que gostaria de defender tais culpados.

A crise de competência está bem comprovada diante da sucessão de erros. Fosse uma empresa privada séria, o presidente da companhia já teria sido demitido por incompetência. Senão, vejamos: há mais do que fortes evidências de que existem falhas graves de gestão no sistema de controle de vôo, sob o comando da Aeronáutica e a influência nefasta da Infraero e ANAC. Documentos e depoimentos comprovam que controladores militares (sargentos) são colocados em serviço, sem terem obtido aprovação integral nos requisitos técnicos. Para complicar, há declarada incapacidade em dominar plenamente o idioma inglês, fundamental para a comunicação dos controladores de vôo com comandantes de qualquer origem. Ambas as situações envolvem requisitos críticos de segurança, e estão sendo tratadas como são tratadas as questões fundamentais no Brasil: incompetência gerencial e incapacidade para ter empatia com o contribuinte.

Num país com doses cavalares de corporativismo defensivo, fruto do paternalismo imperial que reinou desde o descobrimento até a gestação deformada da república tupiniquim, é bastante natural que os controladores de vôo estejam fechados em copas para defender-se enquanto categoria profissional, desde o desastre do vôo 1907 da Gol. Os argumentos de defesa são característicos: desmilitarização da categoria, melhoria salarial, diminuição da carga de trabalho. Por outro lado, o corporativismo imanente dos players oficiais é indecente: ANAC, Infraero, Ministério da Defesa e Aeronáutica juntaram-se em bloco para defender o Estado, jogando a responsabilidade sobre os controladores, sobre as companhias aéreas, sobre os softwares, os sistemas de energia e a fatalidade.

A esse bloco coeso em defesa do Estado, juntam-se agora os deputados da base governista, convocados para bloquear a cavalaria da oposição que quer a todo custo aprovar a criação da CPI do Apagão Aéreo. O enorme esforço da base governista tem procedência: essa CPI tem fortes ingredientes para ser uma verdadeira bomba sobre o setor aéreo do país (nos moldes da CPI dos Correios), evolvendo especialmente a Infraero e a ANAC, irmãs siamesas na incompetência da gestão e na habilidade em maquiar licitações, como já apontou de forma veemente o TCU. O Planalto treme só de pensar na repetição dos desdobramentos que a CPI dos Correios provocou, e que destruiu o cinturão de amigos mais próximos do presidente e que ocupavam os principais cargos de comando do país. Na falta dos amigos a proteger-lhe, o que restará ao sindicalista-presidente senão usufruir do cartão de crédito sem limites?

À crise no setor aéreo somam-se a calamidade na segurança, o descaso na saúde pública, a incompetência na educação, a obscura intransigência do Banco Central em defesa dos juros altos, o enigmático silêncio das elites econômicas e políticas (e da mídia) para o escandaloso lucro dos bancos, e por aí vai, numa lista infindável de problemas e situações que afluem para duas vertentes: corrupção e incompetência. Sobre a corrupção, o nó jurídico e os interesses laterais enterram a menor possibilidade de êxito nas investigações. Para a incompetência, não existe mérito para discussão, pois a gestão pública no Brasil tem sido a maior escola de má gestão de que se tem notícia e está tão entranhada, tão emaranhada, que fundiu os papéis de criador e criatura, impedindo o reconhecimento do desastre e da injustiça que gera para a sociedade.

Para as bruxas à solta, quero deixar claro que reconheço a competência do Estado em pelo menos um setor: arrecadação de tributos. Nessa área nosso país, inclusive, tem sido procurado por outros governos para aprender como funciona nosso excelente sistema de espoliação de riqueza e usurpação de ganhos, digno de Prêmio Nobel. A sanha arrecadadora demonstra claramente a vocação do Estado brasileiro: sugar tudo e deixar apenas os ossos para a sociedade. Na minha avaliação, ainda vamos ver o surgimento de alguma medida provisória ou decreto para também dar utilidade aos ossos, sobrando para a sociedade buscar soluções no nirvana.

A falência gerencial do Estado brasileiro representa apenas 10% dos nossos problemas, por isso a figura do iceberg para ilustrar este artigo. Isso mesmo caro leitor: apenas 10%, o que quer dizer que nossas dores de cabeça mal começaram. Vou esticar a linha do tempo para que haja uma melhor compreensão da hecatombe que nos aguarda. Qualquer especialista sabe que mudanças estruturais para o melhor desempenho de uma sociedade, passam obrigatoriamente pela educação. Sabem também que qualquer ação forte no setor tem que começar pela educação básica, e é tecnicamente sustentável que os resultados efetivos podem ser mensurados somente cerca de 20 anos após. Considerando que o presidente Lula reconheceu tardiamente, há poucos dias, que nossa educação é a pior do mundo, há um imenso caminho a percorrer até que sejam atingidas condições ideais para o nosso desenvolvimento.

Mais ainda, o país não tem projeto, o governo não sabe para onde dirigir nossas forças e como eliminar ou diminuir nossas fraquezas; pior, não sabe que oportunidades aproveitar e ignora as ameaças crescentes de um mundo conectado. Estamos submetidos a um regime de decisão baseado em factóides, em generalidades, em pressões setoriais, em interesses pessoais. O tal do BRIC, grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia e China, e que apresentariam potencial para liderar a economia do mundo em duas décadas, já começa a ser mencionado como RIC, com a exclusão do Brasil. Numa econometria baseada em dados estatísticos, nosso país apresenta raquitismo acentuado e não pode perfilar-se ao lado de economias emergentes que se obrigam, de uma forma ou de outra, a fazer a lição de casa.

Não temos a menor condição de competir no mundo do conhecimento no século XXI, simplesmente porque 30 milhões de crianças, hoje, tiveram menos de quatro horas de aula e 35 milhões de jovens com 15 anos ou mais de idade são incapazes de ler ou escrever. Sem futuro, sem perspectiva, sem ação maciça do governo, milhões de crianças e jovens acabam se tornando reféns de uma sociedade baseada na injustiça, na impunidade, na corrupção, e enfileiram-se nas hostes da criminalidade.

A sociedade civil organizada apresenta milhares de iniciativas importantes, meritórias, mas a escala dos nossos problemas exerce forte e crescente pressão contrária a esse esforço, simplesmente porque falta efetiva ação governamental. Assim, nosso desastre assume contornos de um iceberg, onde o que está por vir ainda não emergiu e está escondido das câmeras de TV, das páginas dos jornais, das colunas sociais, das fofocas globais e dos blogs siderais. Triste fim para um iceberg que queria ser nação, mas sofreu um apagão de gestão, lento e mortal. Quem viver, verá.

Autor: José Armando Bueno


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