Teatro Medieval: Contextualização Histórica



Falar em teatro português, em especial, no de Gil Vicente, requer, inicialmente, uma breve análise do teatro medieval. Faz-se necessário, então, considerar como o Cristianismo incutiu na Europa um modelo de vida, de arte e de religião que servirá de instrumento de manipulação sócio-cultural da Igreja, o qual é retomado por Gil Vicente, no Auto da Visitação, em 1502, inaugurando em Portugal, o teatro popular.

O mundo "medieval resulta do encontro e da fusão de dois mundos que iam evoluindo um para o outro, de uma convergência das estruturas romanas e das estruturas bárbaras em transformação" (LE GOFF, 1995, p.48). A religião do povo, dessa forma, não passava de um cristianismo bastante aviltado, de influência pagã.

O cristianismo da quase maioria da massa popular da Idade Média era essencialmente a religião do medo. A Igreja inculcou, no imaginário coletivo, o medo do poder de Deus sobre a vida terrena e do além-túmulo, tendo com isso o povo sob o seu comando. A imagem de Deus apresentada pelos clérigos era aterradora, um Deus de juízo inexorável, cuja ira contra o pecado só podia ser aplacada pela observância inconteste dos mandamentos da Igreja. O poder de mando da Igreja obrigava à obediência e à servidão religiosa de grande parte do povo, bem como impunha-lhe uma vivência incondicional dos preceitos morais da religião, não por amor a Deus e confiança nele, mas pelo terror de seu castigo.

Dentro desse contexto, a Igreja Católica descobre o teatro como um instrumento facilitador da disseminação ideológica, de obediência e submissão aos valores da época, o que implica a manutenção de seu status quo. Embora as produções teatrais estejam arraigadas ao dogmatismo religioso, estas não perdem o caráter lúdico que provoca o riso fácil e leva à diversão.

Para Robert Cairns (1995, p. 104), a Igreja paganiza-se parcialmente na tentativa de solucionar os problemas advindos da invasão bárbara. Nesse sentido, muitas práticas ritualistas, padrões de vida e de costumes são incorporados ao culto cristão. Dessa forma, podemos inferir que, com a afluência dos bárbaros e o crescimento episcopal, a Igreja altera significativamente o culto; materializa a liturgia para tornar Deus mais acessível aos seus fiéis. A veneração de anjos, santos, relíquias, imagens e estátuas é uma conseqüência lógica deste procedimento, como também o surgimento do teatro religioso.

Essa mudança no culto da Igreja acirrou-se com o passar do tempo: as festas do Natal e da visita dos magos a Cristo tornam-se práticas regulares; são acrescidos, no calendário eclesiástico, mais e mais, o número de dias santos; aumentam-se as cerimônias de cunho sacramental; desenvolve-se, por volta de 590, a veneração à Virgem Maria. É pertinente lembrar que o teatro religioso medieval retoma, sobretudo, nos autos, em especial, os sacramentaistodas essas práticas Cristãs.

Nesse aspecto, o teatro religioso revelou-se um excelente mecanismo de manipulação e, também, de um entretenimento popular. O caráter popular do teatro decorre do fato de as representações dirigirem-se não apenas à classe dominante, mas a todas as camadas do povo. Tal como a Igreja em geral, o teatro religioso passa a incorporar traços peculiares do paganismo, assimilando crenças e ritos primitivos, tornando-se um espaço privilegiado em que se ensina através da arte, provoca-se o riso e revela-se o sentimento da Fé.

Todas essas mudanças do culto da Igreja, aludidas anteriormente, estão intimamente relacionadas ao estado monárquico que se altera de uma forma democrática simples para outra mais aristocrática e repleta de liturgia, com uma clara distinção entre clero e laicato. Assim, o teatro medieval reforça essa força hegemônica do Estado e da Igreja, representando temas que transmitiam a vontade divina e suas verdades reveladas (pela Bíblia e pelos Santos), como tambémpreconizavam os padrões de comportamento social, sem perder a dimensão lúdica revestida de cenas hilariantes.

Paul Zumthor (1993, p. 256) confirma-nos a evidencia dessa força hegemônica clérico-estatal ao teorizar sobre o caráter "teatral" de toda poesia medieval. Para o autor, diversos reis, dentre eles de Aragão e Castela, partilhavam de uma crença generalizada de que a música, a poesia, o teatro eram "indispensáveis à boa ordem" e tinham influências positivas sobre os estados da alma (melancolia) e atuavam como bálsamos sobre "as doenças corporais e até feridas".

Esse aspecto profilático e persuasivo da arte advém das sensações e emoções causadas nos ouvintes e espectadores. Nesse caso, o espetáculo teatral não pode ser dissociado do lúdico que envolve, comove, persuade e, sobretudo, diverte pelo riso incontrolável da platéia. No cenário do drama todos podem participar e viver o momento cênico sem as amarras das sanções naturais, em que, por um instante, "afasta-se a ameaça latente do real" (ZUMTHOR, 1993, p. 240).

A Igreja vale-se então do lúdico para incrementar os sermões litúrgicos e produzir um efeito persuasivo de difusão da fé e manutenção de seus dogmas. Para Paul Zumthor ( 1993, p.256), opera-se pela liturgia uma tendência de se estabelecer uma conexão entre "as incessantes transferências entre o homem e Deus, entre o universo sensível e a eternidade", tendo em vista que, até bem depois do século XV, a motivação humana "foi uma sede de conhecer; o meio, a participação sensorial; e a finalidade, uma alegria comum". Tudo isso gerado por um desejo que agiu "sobre esse mundo para fazer de toda a realidade um espetáculo" desde as percepções auditivas ( a leitura, a música), visuais ( atores, suas roupas, seus gestos, sua dança) e táteis ( o toque em uma parede santa ou um beijo ao pé da imagem) ao perfume dos incensos. Enquanto que na"base da sociedade civil, a cerimônia de prestação de vassalagem constitui-se uma performance teatral, ligando uns aos outros em procissão hierárquica de dominantes e dominados".

Cumpre-nos ressaltar que o teatro, além da difusão de dogmas religiosos, assume vital importância nas relações sociais. A corte é assim o palco por excelência de representação do drama público cujo repertório cênico limita-se a alguns temas e imagens, mas que se revitalizam pelas festas evocadas. É justamente no palco palaciano que emerge o teatro popular de Gil Vicente com seu humor sarcástico, o qual rompe as esferas públicas e privadas, pois não se destina a apenas divertir os que governam, mas a despertar no povo a reflexão crítica através de seus espetáculos.

Como preconiza Paul Zumthor (1993, p. 257), o teatro da corte, a partir do fim do séc. XIII, representou um processo de preparação do espírito humano para uma irresistível crença vindoura no poder do Estado.

Na relação entre a difusão de dogmas, das verdades reveladas e o divertimento popular, fica evidente que a inserção de mecanismos de persuasão que inquietam o espírito, o emocionam, o perturbam revolucionou a pregação em todo o Ocidente, pois embora fosse a pregação coisa muito 'séria', os padres, os monges recorriam ao grotesco e ao cômico, em que "certa bufoneria mistura-se aí à expressão da Fé. O sermão é a exibição de um ator que executa um drama popular" ( ZUMTHOR, 1993, p. 236).

Talrevolução presta-se à Igreja mais ainda como veículo de difusão das verdades bíblicas que foram transformadas em dogmas, decretos divinos irrefutáveis e inquestionáveis. A forma de se conceber essas verdades pela Igreja provocou a formação de mentalidades e de opiniões totalmente adversas do pensamento racional clássico. É neste período que surge o teatro de Gil Vicente.

Nessas verdades-dogmas, surge uma distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, ou seja, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais. As primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina, superior ao simples conhecimento racional:

Há, com efeito, duas ordens de verdades que afirmamos de Deus. Algumas são verdades referentes a Deus e que excedem toda a capacidade da razão humana, como por exemplo, Deus ser trino e uno. Outras são aquelas as quais a razão pode admitir, como, por exemplo, Deus ser, Deus ser uno, e outras semelhantes. [...] (AQUINO, 1990, p.22)

Isso não significa que a verdade da razão natural seja contrária à verdade da fé cristã, mas que aquela adquire grande perfeição se admitida pela fé. Na Idade Média, esse pensamento foi muito difundido por Tomás de Aquino (1990, p. 26):

Com efeito, só conhecemos verdadeiramente Deus quando cremos que ele está acima de tudo aquilo que é possível ser pensado a respeito de Deus pelo homem, dado que a substância divina eleva-se acima do conhecimento natural do homem.

Desse modo, desprovido da iluminação divina, o homem está predisposto ao erro e à ilusão, ou seja, suscetível ao pecado. Somente pela fé, haverá o conhecimento das verdades eternas reveladas, o que permite ao homem pensar e agir corretamente, possibitando-lhe a comunhão com Deus e Igreja, e a remissão de seus atos pecaminosos, portanto a salvação.

Essa noção de pecado original, introduzida pelo cristianismo, em função da qual o ser humano, pervertido, finito e imperfeito, separa-se radicalmente de Deus, ser infinito e perfeito, passa a ser supervalorizada pela Igreja, criando no inconsciente humano o medo do castigo divino.

A Igreja, assim, serve-se de todas as formas de difusão e manutenção da filosofia teocêntrica do dogma cristão que lhe garantia o poder político e econômico. Para alcançar os seus objetivos, ela deflagra e, posteriormente, lidera o movimento cruzadista, sob a bandeira de libertação de lugares religiosos tradicionais, como o Santo Sepulcro, na Palestina. As expedições cruzadistas tornaram-se um dos mais fortes instrumentos políticos-ideológicos de difusão da Fé enquanto que, no campo artístico, foi o teatro.

Inegavelmente, a religiosidade foi preponderante para a organização da cruzadas, mas outros interesses levaram a Igreja a empunhar a bandeira da luta santa, o que aumentou em muito o seu domínio territorial e, conseqüentemente, o seu poder econômico e político.

Entretanto, destituídas em sua essência do sentido espiritual, paulatinamente, as Cruzadas acabaram por comprometer o prestígio da Igreja entre os fiéis, uma vez que se tornaram bem claros os interesses materiais envolvidos nesse movimento, o que favoreceu sobremaneira o enfraquecimento do sistema feudal, pois a economia auto-suficente, foi substituída pelo comércio, fortalecendo a nova classe social emergente: a burguesia.

Nesse aspecto, difundido pela Igreja Católica, o cristianismo nutriu grande parte das expressões culturais que marcaram as sociedades européias da Idade Média em várias esferas da vida pública e privada. As artes, a educação, os costumes, as normas éticas, as ideologias sofreram influências dos princípios cristãos perceptíveis até hoje.

No Auto da barca do inferno há vários elementos simbólicos que ratificam a presença marcante da imposição da Fé cristã na vida social medieva e do próprio dramaturgo Gil Vicente, dentre eles: o contexto ideológico cristão das cruzadas, resgatado na imagem simbólica dos cavaleiros de Cristo que são acolhidos pelo Anjo, representando a salvação da alma por meio da Fé, no Juízo final.

Outro ponto relevante a ser tratado na evolução da ideologia cristã é a criação dos monastérios. Como a Igreja passa a envolver-se com questões seculares (saeculum– "mundo"), grande parte do clero vinculou-se demasiadamente às propriedades da Igreja, tendo em vista a sua incalculável riqueza . Isso favoreceu sobremaneira a origem do clero secular ligado à materialidade. Em reação a essa tendência, funda-se, no século IV, o primeiro mosteiro, por São Pacônio, do Egito, ou seja, nasce o clero regular, cuja consolidação deve-se a São Bento (480-547). Os monastérios constituíram os centros mais avançados da vida cultural e econômica da Alta Idade Média, além de atuarem no trabalho de conversão dos camponeses pagãos.

Além da cultura oficial, geralmente promovida pelas autoridades da Igreja e pelos governos feudais, havia também muitas criações populares. Enquanto a cultura oficial era austera e consagrava a divisão social dominante, a cultura popular era impregnada de humor.

Dessa forma, a nobreza feudal voltava-se para o ritual eclesiástico e litúrgico das representações, em geral, do Sacramento nas celebrações religiosas, ocorridas dentro da Igreja, enquanto a cultura popular expressava-se nas festividades carnavalescas das encenações teatrais burlescas (cômica e satírica), dos gracejos dos bufões, das paródias bíblicas (recriações de trechos dos evangelhos, dos salmos), de hinos e orações religiosos, das lendas clássicas, realizadas fora do templo sagrado. Nessas manifestações populares, representava-se o mundo medieval, promovendo o riso, cujo objetivo era a diversão do público e crítica dos costumes.

Percebemos que a cultura popular situa-se no espaço do profano (entendamos aqui toda atividade cultural realizada fora dos templos sagrados), enquanto que a cultura oficial preconizada pela Igreja no espaço do sagrado, uma vez que a primeira serve-se da doutrina religiosa para criticá-la, ao passo que a segunda a utiliza para difundi-la.

Sob essa dicotomia reside o teatro medieval, que, segundo Lígia Vassalo (1973, p.39), baseia-se "na oposição litúrgica X profano, e não na do trágico X cômico", uma vez que as duas últimas categorias estão presentificadas na dramatização religiosa, pois "o trágico repousa na visão do homem decaído e o cômico se intromete a partir do próprio realismo."

A Igreja reduz a cultura medieval ao culto do sagrado, valendo-se da literatura monacal para incutir no imaginário coletivo a idéia de três mundos complementares e paralelos à realidade concreta, ou seja, três espaços cósmicos: o Céu, o Inferno e o Purgatório, sendo a arte teatral um dos instrumentos clericais de sua difusão.

Por volta do século X, há uma revigoração do teatro medieval, usado agora pela Igreja como modalidade litúrgica, cuja estratégia é o ensino da fé, a sua comunicação, ou melhor, a sua imposição, ilhada num latim que já não era mais falado na Europa. Doutrina-se o indivíduo pela difusão da fé cristã, reforçando a noção de pecado e conseqüentemente a necessidade do arrependimento para se obter o perdão, pois se assim não o fosse, o castigo de Deus seria lançar todas as almas pecadoras no ígneo inferno.

O auge do teatro medieval dá-se entre os séculos XIII e XV, na França. As primeiras peças (denominadas genericamente jeux – autos) surgem a partir do século XII, mas que se diferenciam e se multiplicam somente a partir do final da Guerra dos Cem Anos. Lentamente aparecem as grandes coleções de representações religiosas, tendo em vista que os autores deixam gradativamente o anonimato ao adotarem as línguas nacionais.

Essa nova fase histórica, período de grande efervescência cultural devido às transformações econômicas e políticas ocorridas com o renascimento comercial e urbano, contribuiu para modificar os valores do homem medieval. Há, nessa época, uma valorização da prosperidade material, da crença de uma vida menos subordinada à inquestionável vontade divina, estimulando-se o desenvolvimento intelectual.

A confiança em si próprio, na capacidade de inquirir, raciocinar e compreender o mundo tornam-se inevitáveis ao homem medieval de pensamento teocêntrico, em que tudo passa a ser gradualmente explicado pela vontade e ação humanas, dando espaço a uma nova postura ideológica, o antropocentrismo.

Ainda que a Igreja, por meio das ordens monásticas, continuasse direcionando a produção cultural, aos poucos esta foi desvinculando-se do dogmatismo religioso, sendo as cidades pólos irradiadores dos novos valores culturais, voltados para o estudo universal do saber, ao conhecimento das ciências e aperfeiçoamento das artes.

Dentro desse contexto, de transição do feudalismo para o capitalismo mercantil, de mudanças políticas, de dogmas católicos em conflito com o pensamento moderno, é que nasce e se consagra o teatro medieval popular português, cuja criação deve-se a Gil Vicente.

O teatro vicentino surge, portanto, na Baixa Idade Média, num período literário consagrado como humanista, cuja característica dominante foi o despertar de uma nova mentalidade intelectual e artística, em que aconteceu o fenômeno político, religioso, filosófico e, sobretudo, artístico, denominado Renascimento, que postulou o ressurgimento do espírito da Grécia antiga e de Roma. Nos séculos XIV, XV e XVI houve uma extraordinária valorização de todas as faculdades da natureza humana, em que a mente humana desperta-se do "entorpecimento" alienante do medo do castigo divino e transpõe os obstáculos físicos e metafísicos que até então impediam o homem arriscar-se e empreender novas conquistas em todas as direções. Grandes descobertas geográficas aconteceram no Oriente e Ocidente. Revoluciona- se a concepção de universo. Surge a imprensa. A partir de sua invenção as idéias e os conhecimentos espalham-se com mais rapidez.

No classicismo renascentista, a arte literária atinge uma proporção nunca vista antes. O período é marcado por três momentos históricos principais: primeiro, temos a nova forma de buscar conhecimento dos acadêmicos clássicos (modernos), reconhecidos como humanistas; segundo, a nova perspectiva do cristianismo iniciada por Martinho Lutero com a Reforma Protestante em 1517; terceiro, a expansão ultra-marítima com a Tomada de Ceuta no norte da África em 1415, que culminaria nas grandes navegações; na descoberta da América em 1492 por Colombo, repercutindo nos países que fundaram impérios ultramarinos, assim como na imaginação e consciência da maioria dos escritores da época.

Embora o teatro de Gil Vicente tenha surgido em plena retomada da cultura greco-romana, não podemos dizê-lo propriamente clássico, sobretudo no que se refere aos autos, tendo em vista a estrutura que apresentam e o caráter religioso de seus conteúdos, mesmo com finalidade crítica-humorística. Antes, podemos aproximá-lo do contexto medieval de transição da ideologia cristã teocêntrica para a pagã antropocêntrica.

Gil Vicente inaugura, em 1502, na corte portuguesa, o teatro medieval pontuado por contradições, em que são debatidas a ideologia característica do Renascimento e uma tradicionalista postura conservadora religiosa, por vezes estreitamente medieval.

O teatro medieval português nasce e consagra-se, dessa maneira, sob o signo da contradição, em que o homem passa a ser a medida das coisas em confronto direto com as verdades reveladas por Deus, sendo o palco a arena para o embate entre o humano e o espiritual, o sagrado e o profano, a vida e a morte, a fé e a razão e tudo o mais que esteja ligado a Deus e aos homens, isto é, ao que é terreno versus o celestial, o que não nos permite uma categorização estética inflexível do teatro vicentino para enquadrá-lo num estilo literário pré-definido.

Em Gil Vicente, convergema dimensão religiosa medieva, a intelectualidade clássica, bem como a criticidadedos novos tempos, ditos modernos. Assim, o teatro vicentino, por apresentar uma diversidadetemática e de gêneros, transcende os umbrais do mundo, em que se encontram o sagrado e o profano numa dialogia alegórica e farsesca.

O AUTO: UMA ABORDAGEM TEÓRICA

Antes, porém, de falarmos sobre Gil Vicente e situarmos a sua obradentro do contexto histórico medieval,torna-se pertinente retomarmos a origem, estrutura e conteúdo do auto, uma vez que, com este tipo de modalidade teatral, a igreja inaugura a liturgia dramatizada, isto é, o teatro religioso, do qual Gil Vicente apropria-se, inovando-o, transformando o tema religioso, solene e sagrado, em comicidade dramática, cujo objetivo é a crítica social a despeito da finalidade litúrgica.

Como vimos, a influência permanente da Igreja, a estrutura social e a organização política feudal, o fenômeno ecumênico das cruzadas, os sucessivos fluxos migratórios constituem o pano de fundo de uma literatura monástica de intenções predominantemente apologéticas, didáticas, tornando-se difícil estabelecer uma taxonomia sinótica das formas literárias na Idade Média.

Em linhas gerais, durante a Idade Média, as expressões literárias reduziram-se a poemas litúrgicos, a narrativas hagiográficas e a hinos. Devido às dificuldades de produção, os textos escritos – privilégio dos mosteiros – compreendiam uma literatura historiográfica (biografias e anais), especulativa, de caráter objetivo. As formas subjetivas constituiam-se das tragediae, das comediae (desprovidas de significado dramático-teatral, isto é, narrativas de semi-ficção), das satirae e das elegiae.

A Igreja repudiava, de modo geral, as produções orais como as fábulas, as canções amorosas, os cantos blasfematórios, de luto, ao passo que o drama litúrgico passa a ser valorizado como meio de difusão das idéias cristãs.

O teatro religioso medieval surge assim, na literatura religiosa medieval, como a mais ativa e relevante criação derivada do rito religioso na época. Rito este, cuja formação originou-se paulatinamente da dramatização de episódios bíblicos lidos durante a missa. Isso é ratificado por Le Goff (1994, p. 126) ao afirmar que "na Igreja, as cerimônias religiosas eram festas e é do drama litúrgico que sai o teatro".

As encenações religiosas eram apresentadas no interior das igrejas. O altar transforma-se em cenário do drama, em especial, sob a forma de mistérios, a serviço divino das duas mais importantes festas cristãs: a Páscoa e o Natal. Karl Vosseler citado por Margot Bertold (2003, p. 186) assegura que "por todo o mundo ocidental, a história da representação religiosa é a de uma progressiva dramatização do Sacramento".

Conforme Maria Correia (1973, p.48), "em fins da Idade Média, a peça, autônoma, dramatiza não só a Páscoa, mas vários outros eventos, até abranger de Adão ao Juízo Final, tomando o nome genérico de mistério". Além do mistério, dentro do teatro religioso, aparecem o milagre e a moralidade.

Os mistérios episódios bíblicos - geralmente encenados pela época do Natal ou Páscoa, representam uma passagem da vida de Cristo. Para Lígia Vassallo (1973, p. 41) o mistério, também denominado de jeu, auto ou paixão, transmite ao povo, de maneira acessível e concreta, os dogmas cristãos, os artigos de fé, ou seja, a história da religião, usando como temática as Sagradas Escrituras. Segundo a autora, o mistério

Transpõe os versículos da Bíblia em quadros vivos, que no seu efeito espetacular revelam para o povo o segredo que o latim dos livros sagrados ocultava. Pretende dar conta de tudo que se passa no Céu ou na Terra, psicológica e teologicamente. Contém por isso elementos teológicos, verossimilhança moral e psicológica, observação da realidade, patético e diabruras. Transforma-se em espetáculo de longa duração, em determinadas épocas do ano (Páscoa, Natal, Corpus Christi). É a mais importante criação do teatro religioso medieval. Narra toda a História do homem da Criação à Redenção.

O milagre é uma representação de uma graça feita por um santo, cuja duração da peça é menor que a do mistério. Os temas do milagre constituem-se das lendas de vidas de santos, em geral, com personagens quotidianas que se deparam com acontecimentos terríveis, sendo salvas, ou por intercessão da Virgem Maria, ou pelo arrependimento tardio do pecador. Essa modalidade teatral é encenada na data festiva do dia do Santo. Como forma de mostrar o milagre e validá-lo, narra-se a vida do respectivo Santo desde o seu nascimento.

A moralidade,a terceira forma derepresentação dramática religiosa, tem o intuito de moralizar os costumes, cujas personagens são abstrações, qualidades ou defeitos morais, tais como: Verdade, Avareza, Razão etc. Originárias da Inglaterra e da França, as moralidades mostram um ceticismo crescente por todo continente europeu: a falta de fé e verdade entre os homens leva-os à morte e, em conseqüência, a padecer no inferno.

A moralidade presta-se à continuidade dos mistérios, pois baseia-se no princípio da salvação da humanidade pela intervenção das forças divinas. Na moralidade, a temática real-histórica dos fatos bíblicos cede espaço a um argumento abstrato-típico, em que o ser humano em conflito com as correntes antagônicas do Bem e do Mal, é destinado a morrer em pecado, a menos que seja salvo por seu arrependimento. Assegura Lígia Vassalo (1973, p.42) que o tema da moralidade

É informado em estrutura alegórica, uma das grandes linhas que perpassa a arte medieval. Seus temas encarnam abstrações e valores morais, que lhes absorvem até os próprios nomes: Juízo, Perdão, Boas Ações, Discrição, Cinco Sentidos, Sete Pecados Capitais, Sete Virtudes Cardeais, entre outros. Por meio destas personificações e de outros recursos formais, a moralidade visa à edificação do ser humano. Dentre todos os tipos de peças medievais, é a que mais se aproxima da tragédia.

Devido a busca da edificação do ser humano pela personificação de atitudes boas e más do homem, além de outros recursos formais, a moralidade aproxima-se do drama litúrgico, porém dele se distancia ao incorporar vários elementos profanos e cômicos em seu conteúdo.

No que se refere ao cenário, não houve uma preocupação quanto ao espaço cênico para as primeiras moralidades, uma vez que bastava um pódio e uma dicção clara para que se realizasse o drama alegórico, moralizante. O figurino também era simples, sem a necessidade do luxo excessivo.

Por outro lado, na segunda metade do século XV, a peça alegórica-moralizante serve-se de todos os recursos cênicos e técnicos do auto da Paixão, igualando-se a ele "tanto na duração do espetáculo quanto na riqueza de conteúdo" (BERTHOLD, 2003, p. 262).

Em seu conjunto, essas representações dramáticas (mistérios, milagres e moralidades) são conhecidas como autos. Etimologicamente auto é um ato que, segundo Antônio Geraldo (1991, p. 81), deriva-se do latim actum- i, e significa solenidade, peça teatral; refere-se àquilo que se fez ou se faz, isto é, ação.

Conforme conceitua Luiz Vasconcelos (2001, p.25), em Portugal, no período medievo, o auto era designação genérica de qualquer tipo de peça de cunho religioso ou profano.Tanto na Espanha quanto em Portugal, o auto religioso era denominado de auto sacramental, sendo o auto profano considerado auto pastoril. Dentre essas modalidades dos autos medievais portugueses, os de Gil Vicente destacam-se, o que consagra o nome do dramaturgo, provavelmente, como o maior da dramaturgia medieval em toda a Europa. "No Brasil, Ariano Suassuna (1927) intitulou algumas de suas peças de auto, valendo-se do caráter religioso e popular de seu teatro, entre as quais o Auto da Compadecida (1957), uma das obras-primas da comédia brasileira" (VASCONCELOS, 2001, p.25).

O auto sacramental, assim conhecido em Portugal e na Espanha, tratava de peças religiosas, geralmente dramatizações relacionadas a idéias do sacramento da Eucaristia, embora houvesse autos alicerçados em eventos bíblicos ou na vida de santos. Esse tipo de peça religiosa é também denominado de Auto Pascal e de Natal.

De grande relevância didático-pedagógica, o auto sacramental usava do recurso da alegoria[1], quer seja como reafirmação dos valores e dogmas cristãos impostos pela Igreja, quer para esclarecer e explicar os mistérios dos sacramentos, mas esse recurso não era de uso exclusivo do drama religioso; foi também aproveitado nas produções profanas.

O germe da representação cristã na Igreja localiza-se no século IV, na Igreja do Santo Sepulcro, quando da celebração, pela primeira vez, da adoração pascal da cruz, a Adoratio Crucis. Do ritual puramente cultual, desenvolve-se a representação dramática, tendo como ponto de partida as celebrações litúrgicas da morte, paixão e ressurreição de Cristo, entrevistas na Páscoa.

Consoante Margot Berthold (2003, p.193), as 224 dramatizações pertencentes ao serviço pascal, recolhidas por toda a Europa e publicadas por Carl Lange em 1887, provam o quanto o desenvolvimento da liturgia, no que diz respeito à representação dramática, foi universal no conjunto do Ocidente.

O padrão básico da dramatização latina da celebração pascal foi estabelecido pela Regularis Concordia para todo o mundo ocidental. Escrita, por volta de 970, pelo bispo de Winchester, Etelvoldo, a Regularis Concordia instituia um roteiro de representação dramática da Visitatio Sepulcri, tornando-se o primeiro exemplo de direção de uma celebração cênica na Igreja.

Em França, a encenação sacra é de responsabilidade da Confréries de la Passion, em que ao clero competia escrever o roteiro das peças, empreendê-las, montá-las, encená-las, às vezes, financiá-las. Já, na Itália, a sacra rappresentazione é produzida, em Treviso, desde 1261, pela Confraternitá dei Batutti e pela Confraternitá del Gonfalone, fundada em Roma em 1264.

Fontes históricas dão conta de que, no século XIII, houve duas grandes inovações ligadas ao Auto Pascal, as quais contribuíram para o desenvolvimento do teatro ocidental. Primeira, a figura de Cristo, apenas simbólica, adquire dinamismo e forma. O Cristo, nesse momento, passa a ser representado por uma pessoa que fala e atua no palco. Segunda, o auto passa a ser encenado em linguagem vernácula, mais acessível, o que confere mais vida e dinamismo à rigidez dos textos litúrgicos.

Há, com isso, uma adaptação livre das cerimônias dramáticas que se ampliam. Ao Auto Pascal na Igreja são acrescentados fatos posteriores e, mais tarde, episódios anteriores à Páscoa, como a aparição de Jesus a Madalena na pessoa de um jardineiro ou a sua descida ao Inferno e a libertação de Adão e Eva do Limbo, a qual simboliza o primeiro ato de salvação.

Devido ao acréscimo de novas cenas nos autos, houve uma ampliação proporcional do espaço cênico. Os espaços utilizados nas representações deviam ser especificados no início da cena e identificados por cenários e acessórios próprios para a realização do drama. Em conseqüência disso,

A simultaneidade da ação e áreas utilizadas determinaram o futuro palco de todo o teatro medieval – seja em forma de uma disposição espacial sobre a superfície inteira reservada à representação, seja de uma justaposição ao longo de uma passarela estreita. Os espetáculos eclesiais desfilam os eventos bíblicos aos olhos do espectador com a mesma justaposição simultânea de um painel pintado (BERTHOLD, 2003, p. 196)

No teatro de Gil Vicente, essa justaposição forma pequenos blocos, quadros cênicos, cuja simultaneidade cênica, é uma característica amalgamada pela dramaturgia medieval, diferindo-o do modelo clássico que estabelece a lei das três unidades: ação, tempo e espaço. Essa ruptura, de certa forma, inaugura um tipo de peça teatral desprovida de verossimilhança, pois somente pelo conjunto de todo os quadros é que se estabelece a unidade semântica do texto representado.

De acordo com Lígia Vassalo (1973, p.38), uma das características do teatro medieval reside na sua função épica. Este deseja narrar tudo, desde a Criação do Mundo até o Juízo Final. Entretanto, nos mistérios, especialmente no início e até o séc. XIV, não se conta toda a história do mundo. Com isso, mostram-se apenas partes dessa história em peças relacionadas ao Natal e à Páscoa em consonância aos rituais litúrgicos. No caso dos milagres, narra-se a vida dos santos, demonstrando uma ruptura, ou melhor, um total desconhecimento ou ignorância das regras teatrais da Antiguidade.

Desse modo podemos notar que o desconhecimento das unidades cênicas de ação, tempo e lugar ilustra a vontade divina. Deus é o grande arquiteto do universo, daí a ação se repetir continuamente em um tempo sempiterno dentro do universo cristão (Terra, Céu e Inferno), cujo objetivo é demonstrar a queda do homem e sua redenção, ou seja, concretizar pela dramatização a Sagrada escritura, revelando-nos a história da humanidade e seu vínculo com o Arquiteto criador do universo.

A princípio todas as peças religiosas são escritas e organizadas exclusivamente pelo clero regular e secular. Algum tempo depois, encarregam-se da montagem dessas peças, professores de latim que dirigem seus alunos nos espetáculos referentes à Páscoa, a Pentecostes e ao Natal.

De exclusividade também clerical e dos eruditos são os papéis femininos até o século XV, mesmo nas representações do lamento da Virgem Maria aos pés da cruz. Esse monopólio clerical perde a sua força gradativamente por diversos fatores, dentre eles o acréscimo, no ritual litúrgico, de "reflexões sobre o texto bíblico, comentários lírico-épicos e responsórios [...] numa transição da atitude narrativa para teatral" (VASSALO, 1973, p. 38).

Por esse motivo o drama litúrgico torna-se semi-litúrgico, em que a comunidade, agora co-partícipe, faz parte do espetáculo, pois a peça é representada no adro ou pórtico da Igreja e não mais em seu interior.

Fora da comunidade encontram-se atores profissionais, na maioria, ambulantes, os jograis e os mimos ambulantes, os quais executam o teatro profano, desempenhando papéis burlescos ou cômicos, de judeus, de malvados, de diabos. Vale ressaltar que o diabo é caricaturizado de maneira cômica e através da mímica, sendo considerado o maior personagem das representações medievais.

Com a realização do drama nas praças, palácios, lugares públicos, há um deslocamento das personagens e público de acordo com a ação cênica. Esta passa-se no mundo terreno, no celestial, ou no infernal. Isso se explica pelo fato de as corporações profissionais terem assimilado as mudanças e criarem o seu próprio repertório.

Torna-se pertinente lembrarmos que, mesmo com a emancipação dos autos pascais e dos mistérios, o drama eclesiástico medieval não perde sua função pedagógica quando este ganha a rua e passa a preocupar-se com o conjunto dos cidadãos.

Em a História mundial do teatro, Margot Berthold (2003, p. 199) conclui que embora a corrente do teatro medieval possa, de modo geral, parecer uniforme no que diz respeito a suas raízes, suas aspirações, possibilidades de representação e sobretudo em suas origens na fé cristã, essa corrente divide-se em múltiplas correntes no delta de seu desenvolvimento.

Nessa divisão, além dos autos relativos à Paixão, destacam-se os mistérios e as representações das lendas, o auto de Natal. A origem deste advém do mesmo germe do auto pascal – uma pergunta dirigida às três Marias, no domingo de Páscoa: a quem buscais ?, sendo esta estendida aos pastores na noite do nascimento de Cristo, quando estes chegavam à manjedoura.

Inicialmente, o texto dessas encenações dos episódios de Natal aproxima-se muito do texto bíblico. Entretanto, "o officium litúrgico transformou-se em teatro no momento em que aparece um antagonista: o rei Herodes, a personificação do mal" (BERTHOLD, 2003, p. 234), que determina o massacre dos inocentes, ao saber que a profecia se realizou.

Com a expansão dos idiomas vernáculos, o aspecto dogmático da história natalina cede lugar às cenas populares do Menino na manjedoura, as quais mantêm-se vivas até hoje em festas, músicas e hábitos locais.

Acrescentam-se aos autos sacramentais (Pascal e de Natal) as peças de cunho alegórico, moralizante, ou seja, as moralidades, como já teorizado no início deste capítulo. Nessas produções, há a personificação de conceitos fundamentais da Igreja, em que se busca pela representação concreta das virtudes, dos vícios, da própria Igreja, moralizar a sociedade, fazendo-a refletir sobre os ensinamentos cristãos.

Convencionalmente, entende-se por alegoria um recurso da narrativa literária que consiste em personificar ou concretizar qualidades, vícios, conceitos ou valores abstratos. Entretanto, segundo Flávio Kothe (1986, p. 17) "é preciso recuperar a idéia inerente à alegoria, transcendendo a sua convencionalidade." Sob esse prisma, podemos conceituá-la como instrumento estilístico, metafórico, polissêmico, em que o sentido usual da figura alegórica ultrapassa o campo da literariedade, tornando-o mais amplo na representação, pela pluralidade significativa que ela carrega.

Para Massaud Moisés (1982, p. 15), a alegoria "consiste num discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta outra". Essa mesma compreensão tem Flávio Kothe (1986, p. 7) quando afirma que "alegoria significa, literalmente, 'dizer o outro' ."

A alegoria foi extensivamente utilizada no teatro medieval, sobretudo na moralidade, em que conceitos e valores morais como a morte, a caridade, boas ações e a luxúriaforam tomados como personagens. A freqüência desse recurso denota a reafirmação dos valores morais da Igreja e por extensão, do Estado, o que evidencia ser a alegoria um ''instrumento ideológico''. Sob a ótica de Flávio Kothe (1986, p. 24), "de certo modo, a alegoria nunca se pensa nem é pensada radicalmente até o fim, especialmente por ser um foco de irradiação ideológica".

Por sua função essencialmente didática, parte da crítica tem-na como limitadora da imaginação e da apreciação da obra de arte. Se antes as virtudes, os vícios, a própria Igreja, o mundo, serviam de "meros alicerces à superestrutura espiritual e religiosa," (BERTOLD, 2003, p.261) agora, tornam-se ativosprotagonistas da própria peça, diferindo-as dos autos pascais e das lendas, reflexo da postura ideológica dominante.

Nesse aspecto, conforme assevera Margot Berthold (2003, p.261) a temática alegórica somente tem função direta a partir do século XV, quando da produção, em 1431, de uma peça Le Concile de Bâle , por Georges Chastellain, cronista e diplomata na corte de Filipe da Burgúndia. Nessa peça, entre as figuras alegóricas, estavam a Igreja, Heresia, a Paz, a Justiça e até o Concílio de Basiléia (Bâle), todas elas protagonistas da peça.

Na verdade, a personificação alegórica da Igreja, da Sinagoga, da Hipocrisia e Heresia, como também do Céu, do Inferno, da Morte e da mais variada gama de virtudes e vícios, é um esforço em compreender e refletir o sentido da vida. Esse sentido traduz a essência e a existência humana, cuja base é ver por trás das coisas, das ações a relevância essencial das virtudes morais como pontes seguras para se chegar ao paraíso.

Desse modo, podemos compreender melhor o porquê do recurso da alegoria, no teatro medieval quer religioso, quer profano, pois a "fetichização da alegoria pretende garantir, através do convencionalismo semântico de sua linguagem, o caráter 'eterno' da 'idéia' que ela representa''(KOTHE, 1986, p. 21). Nesse caso, podemos observar que a Igreja vale-se da alegoria para manutenção de seus interesses subjacentes às idéias por ela difundidas, atribuindo-lhes um valor de verdade inquestionável.

Ainda que a alegoria seja recurso estilístico mais recorrente no auto medieval, por volta do ano 400, no final da Antiguidade, Prudêncio em sua obra Psychomachia, cujo tema refere-se à batalha das virtudes e vícios pela alma do homem, foi o primeiro a utilizá-la, personificando os conceitos fundamentais da ética cristã.

Mais uma vez confirmamos que a representação alegórica esboça um panorama fundamentado nos princípios éticos e morais difundidos pela Igreja Cristã, em que a representação tradicional de formas abstratas consubstanciam o tema das próprias peças. Isso será demonstrável, na análise proposta, uma vez que Gil Vicente e Ariano Suassuna utilizam essa representação no título e contexto de suas obras.

Segundo Cardoso Bernardes ( 2008, p.207) , nas obras de Gil Vicente, "as alegorias marcam sobretudo presença nas moralidades, de forma parcial ou exclusiva (…) , assim, em qualquer dos autos se verifica também a presença de personagens 'realistas'.

Le Goff (1994, p. 98) afirma que o espírito medieval inclina-se para "a abstração, ou, mais precisamente, para uma visão do mundo assente em relações abstractas". Assim, no palco, pela personificação das atitudes humanas, do mundo conceitual, o homem identifica-se; reflete seu comportamento inadequado; busca a perfeição pela fé e redime seus pecados, o que revela sua condição essencialmente humana contraditória: sagrado e profano, como o é a própria vida.

REFERÊNCIAS

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AQUINO, Tomás. Suma contra os gentios. Tradução de D. Odilão Moura O.S.B. Caxias do Sul: Sulina, 1990. v.1. Livros I e II.

___. Suma contra os gentios. Tradução de D. Odilão Moura O.S.B. Porto Alegre: Edipurs, 1990. v. 2. Livros III e IV.

BERNARDES, José Augusto Cardoso. Gil Vicente. Coimbra: Edições 70, 2008.

___.Sátira e Lirismo no teatro de Gil Vicente I e II. 2 ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 2006.

___.Revisões de Gil Vicente. Coimbra: Angelus Novus, 2003.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Paulo Ruanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.

CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos séculos: uma história da Igreja Cristã. Tradução Israel Belo de Azevedo. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 1995.

KOTHE, Flávio R. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986. Série princípios.

LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. 2 ed. Lisboa: Estampa. v.1 , 1995.

___. A civilização do ocidente medieval. 2 ed. Lisboa: Estampa. v.2 , 1994.

SARAIVA, Antonio Jose e LOPES, Oscar. Historia da literatura portuguesa, 17 ed,Portugal: Porto, 1996.

SPINA, Segismundo. Iniciação na cultura medieval. Rio de janeiro: Grifo, 1973. Coleção síntese. v.1.

VASSALO, Lígia. O teatro medieval. In. CASTRO, Manuel Antonio. Teatro sempre. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.




Autor: ROSÂNGELA DIVINA SANTOS MORAES DA SILVA


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