Historiografia e Ressurreição: Considerações Sobre o Debate Contemporâneo Acerca da Veracidade Histórica da Ressurreição de Jesus



Destituindo-nos de todos os nossos sentimentos e emoções religiosas, apologéticas, céticas e crítica, gostaria de questionar: Será se há como estabelecer a ressurreição de Jesus como um acontecimento histórico?

Essa questão possui bastante relevância para a História. No entanto, possui fortes implicações na fé. Cito-a porque está sendo objeto de disputa, especialmente entre Crossan (que defende que a ressurreição de Jesus é uma metáfora que depois foi transformada em lenda e mito) e N. T. Wright (que defende que a ressurreição é um acontecimento histórico)[1].

N. T. Wright, um estudioso britânico eminente, conclui, "como um historiador, eu não posso explicar a ascensão do Cristianismo primitivo a menos que Jesus ressuscitasse e deixasse uma tumba vazia atrás dele".

Já Crossan[2] afirma que:

O movimento do reino não era o movimento de Jesus, e removê-lo não era remover o Reino. Quando ele foi executado, aqueles que o acompanhavam perderam a coragem e fugiram. Não perderam a fé e o abandonaram. [...] A fé na Páscoa [...] não começou no domingo de Páscoa. Iniciou-se entre aqueles primeiros seguidores de Jesus na Baixa Galiléia, muito antes da sua morte e [...] poderia sobreviver e, de fato, negar a execução do próprio Jesus. É absolutamente insultante para aqueles primeiros cristãos imaginar que a fé começou no domingo de Páscoa através de aparições ou que, tendo sido temporariamente perdida, foi restaurada [...] naquele mesmo domingo.

Gerd Lüdemann[3] (no qual estou realizando uma tradução de um artigo muito importante sobre a Ascensão do Cristianismo Primitivo), Professor de Cristianismo Primitivo em Gottigen, Alemanha (e que foi proibido de lecionar Novo Testamento, por causa de suas "idéias radicais"), afirma que:

Para os discípulos de Jesus, a sua morte foi um choque tão grave que exigiu um processo de reconceitualização- que começou na Galiléia e foi marcada por experiências visionárias. Pouco tempo depois da Sexta-Feira Santa, Pedro tinha uma experiência visual e auditiva da presença de Jesus que deu início a uma extraordinária reação em cadeia. [...] Aparições post-mortem de Jesus - tanto a Pedro, que havia repudiado Jesus e depois desertado e para os outros discípulos que tinham fugido anteriormente - foram certamente tomadas com o significado de perdão, e naturalmente o conteúdo dessas experiências foi transmitido aos outros. Sem dúvida, os relatos enfatizam que, longe de abandonar a Jesus, Deus lhe tinha levado para o céu.

O interessante, só para acirrar este debate, é que Lüdemann faz essa declaração baseado no pressuposto de que narrativas do túmulo vazio não existiam na época de Paulo[4]. Ou seja, que os relatos dos evangelhos sobre a descoberta do túmulo vazio são criações dos evangelistas.

De fato, há um consenso entre os estudiosos que o túmulo vazio é criação recente, e não pertence às tradições cristãs antigas: "... O túmulo vazio é uma lenda recente, introduzida pela primeira vez por Marcos na narrativa"[5].

De acordo com Mann[6]: "... a narrativa do sepultamento em Marcos pertence à tradição da Paixão e é antiga. A visita ao túmulo é lendária"

No entanto, é Spong[7] que apresenta a critica mais casuística: "Eu posso assegurar que a história do túmulo vazio, com todos seus detalhes circunvizinhos, inclusive o cenário de Jerusalém, nada mais é que um recente acréscimo lendário à história da fé".

Thompson[8], por sua vez, resume a opinião dos estudiosos da seguinte forma: "Há um consenso de opinião entre estudiosos contemporâneos que as narrativas do túmulo vazio são acréscimos recentes às narrativas do evangelho e estão separadas dos relatos da paixão".

Martin Hengel[9] e outros afirmam que Paulo, em 1Co 15:4, com a expressão "ressuscitou ao terceiro dia" conhecia o Túmulo Vazio.

Já Vermes[10] afirma o contrário: "A tradição transmitida por Paulo ignora o túmulo vazio".

Borg e Crossan[11] também expressam a mesma opinião: "[...] Paulo não enfatiza um túmulo vazio. Pelo contrário, ele baseia sua confiança na ressurreição de Jesus, nas aparições de Jesus aos seus seguidores e, em última instância, no que ele próprio, Paulo, entende como visões".

Ou seja, a declaração de Lüdemann sobre as aparições do Senhor ressuscitado faz referencia apenas ao testemunho de visões em 1Co 15. De fato, se descartarmos a "tradição" do Túmulo Vazio, fica mais fácil tomarmos um partido nessa questão.

No que se refere à questão da natureza das aparições de Jesus - as quais, segundo Lüdemann, foram meras aparições, temos que tomar certas precauções. Primeiramente, "aparições" são eventos sobrenaturais, e como tais fogem do escopo do historiador.

Meier[12] enfatiza esse fato ao fazer a seguinte declaração:

'Deus fez um milagre nesta cura em particular' é na verdade um julgamento teológico e não histórico. Um historiador pode examinar alegações quanto a milagres, rejeitar aquelas que têm explicações naturais óbvias e registrar casos em que não há explicação natural. Um julgamento puramente histórico não pode seguir além disso [...] na Busca pelo Jesus Histórico, as "regras do jogo" não admitem apelo ao que é sabido ou sustentado pela fé; [...] a fé não pode ser usada como prova ou argumento nos limites extremamente restritos da pesquisa sobre o Jesus da história.

Desse modo, apelar para explicações externas ao relato sobre a ressurreição (como Lüdemann faz ao afirmar que se trata de alucinações), já sai do âmbito da história para o campo da especulação filosófica. O que a tradição cristã antiga alega, do ponto de vista histórico, é que os discípulos simplesmente acreditaram ter visto uma aparição de seu Senhor ressuscitado. Notem as palavras "alegaram" e "acreditaram".

O julgamento histórico precisa ser maduro e crítico:

1) "Alegaram" porque o testemunho é de segunda-mão. Não possuímos fontes diretas para saber se os discípulos realmente disseram ter tido tais visões;

2) "Acreditaram" porque nem sempre o pensamos termos visto é o que é: Como no caso das aparições dos Boto Encantados em Parintins, no Amazonas - todos dizem ser o Boto, mas será que Boto se transforma em gente mesmo?[13] Por isso, creio ser difícil tomar um julgamento nessa questão.

No entanto, também acredito que qualquer tentativa de se estabelecer a ressurreição como um fato histórico (como Willian Lane Craig e N. T. Wright propõem) está fadado ao fracasso. A questão ainda está em aberto.

Craig, que debateu com Crossan em 1998 sobre a ressurreição de Jesus[14], coloca quatro "fatos" que indicam, "historicamente", que Jesus, "realmente", ressuscitou dos mortos:

1) O Sepultamento de Jesus por José de Arimatéia;

2) O túmulo foi encontrado vazio por mulheres;

3) Desde muito cedo, os cristãos afirmaram terem experienciado aparições de Jesus ressuscitado;

4) Os discípulos vieram acreditar de repente e sinceramente que o Jesus foi ressuscitado dos mortos apesar do ter todo predisposição para o contrário.

Contra o fato 1, Crossan[15] afirma: "Considero José de Arimatéia como uma total criação de Marcos em nome, lugar e função".

André Chevitarese[16], professor da UFRJ, afirma que, para a maioria dos estudiosos, a figura de José de Arimatéia, é uma criação literária dos Evangelhos, sendo que o papel de José compreende os objetivos literários do escritor do evangelho de Marcos:

Camponeses como os seguidores de Jesus não teriam como se dirigir a Pilatos para exigir o corpo. Assim, os evangelistas [e primeiramente o de Marcos] têm o problema de explicar o sepultamento de Jesus e usam a figura de José de Arimatéia, que praticamente cai de pára-quedas na narrativa - sua única função na história é essa.

Por isso, o sepultamento por José carece de historicidade. No que se refere ao fato 2, Crossan[17] afirma que o relato das mulheres no túmulo não possui historicidade, não passando de uma criação marcana.

Crossan[18] afirma que o relato do túmulo vazio é fictício, tendo sido criado por Marcos, e carece de historicidade. Sendo que Marcos é severa e consistentemente crítico dos três principais discípulos nomeados, Pedro, Tiago e João, e que seu tema principal é: aqueles mais próximos de Jesus lhe faltam mais profundamente, para Marcos todos os seguidores de Jesus, masculinos e femininos, são importantes como modelos de falha. Marcos sempre os relata como falhando em relação a Jesus e esse seu tema é peculiar seu – não sendo encontrado nos demais evangelhos – e Marcos, dessa forma, distorce ou mesmo cria relatos para que suas intenções literárias sejam corroboradas em suas narrativas.

O relato do túmulo vazio é um modelo desse tipo de falha dos discípulos – agora, dos do sexo feminino. Sendo que Jesus tinha dito aos discípulos três vezes, e muito claramente, que seria executado em Jerusalém e que se levantaria depois de três dias, se alguém acreditasse nessas profecias, o fato das mulheres terem vindo com ungüentos não foi um ato de fé, mas uma falha de crença.

A mulher do vaso de alabastro (Mc 14,3-9) acredita em Jesus e sabe que, se ela não untá-lo para enterro agora, nunca será capaz de fazê-lo depois. O centurião embaixo da cruz em 14,39b: "Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!". Todos esses pessoas anônimas, mas os discípulos, para Marcos, nunca realizaram tais coisas.

Para Crossan, tudo isso é composição literária de Marcos e essa densidade teológica explica por que as mulheres que pretendiam untar o corpo são tão importantes para Marcos e por que a história do túmulo vazio é tão peculiarmente sua, própria.

Os demais evangelistas, ao copiarem para seus evangelhos a narrativa do túmulo vazio, seguiram Marcos apenas no relato, mas não no objetivo literário.

Desse modo, os fatos 1 e 2 podem ser descartados para a pesquisa histórica sobre a ressurreição, por serem acréscimos posteriores, correspondentes aos anos 70 d.C. em diante.

De fato, somente devem ser considerados os fatos 3 e 4 como pertinentes a pesquisa histórica sobre a ressurreição de Jesus e sobre o cristianismo pós-pascal.

Sendo que existe testemunho antigo alegando que os cristãos bem cedo acreditaram ter tido visões de Jesus ressuscitado, a única conclusão realmente histórica que podemos chegar é: Existe testemunho antigo alegando que os cristãos bem cedo acreditaram ter tido visões de Jesus ressuscitado. Só isso.

No que se refere ao fato 4, não creio que uma ressurreição real deva ser invocada como "única explicação" para um bando de discípulos desapontados possam ter levado o cristianismo aos quatro cantos do mundo, morrendo pela fé, como N. T. Wrigth afirma.

Notem que essa definição de Wrigth e Craig é errônea e limitada. Exemplos existem na história de grupos que continuaram mesmo após o líder ter sido brutalmente assassinado. Scardelai[19], afirma que:

A princípio, o fato de um herói popular, ou pretenso salvador, ser capturado e morto sem haver concluído sua missão, muitas vezes significava que seus propósitos, mais do que nunca, deveriam ser imediatamente retomados por sucessor fiel. [...] No caso de Jesus as evidências apontam para essa possibilidade.

Por isso, o fato 4 pode ser descartado, tendo em vista que o único "fato" histórico que conhecemos sobre a alegada ressurreição de Jesus seja o fato 3, ou seja, as aparições citadas em 1Corintios 15 por Paulo. Alegou-se que os discípulos acreditaram ter tido uma visão de Jesus ressuscitado. Essa é a única coisa que temos e a única que sabemos, do ponto de vista histórico, sobre a ressurreição de nosso Senhor.

Resumindo: Os cristãos realmente podem ter: 1) visto Jesus ressuscitado (Wrigth e Craig), ou podem ter tido: 2) alucinações extáticas (Ludermann), ou mesmo: 3) tratarem a ressurreição de Jesus de modo "simbólico" (Crossan), ou ainda: 4) poderiam estar mentindo. A história não pode fazer o julgamento sobre qual dessas três opções é a correta.

De fato, a única questão sobre a ressurreição de Jesus que importa é: Qual a natureza das visões dos discípulos de Jesus? No entanto, essa questão já foge o âmbito da pesquisa histórica, além de ser uma tarefa complicada. Afirmar terem sido alucinações, como Ludemann propõe, é oferecer apenas uma possibilidade, e mais nada. Da mesma forma, afirmar que ele realmente ressuscitou dos mortos é uma atitude acrítica e bastante problemática, sendo que não existem evidencias suficientes para se adotar essa posição.



[1] Cf. WRIGHT, Nicholas Thomas. The Resurrection of the Son of God. Augsburg: Fortress, 2003.

[2] CROSSAN, John Dominic. Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus. Tradução: Nádia Lamas. Rio de Janeiro: Imago ed., 1995, p. 243.

[3] LUDEMANN, Gerd. O que realmente aconteceu? A ascensão do Cristianismo Primitivo, 30-70 EC. Free Inquiry, Abril/Maio de 2007. http://www.secularhumanism.org/. (Tradução nossa).

[4] Cf. CRAIG, William L.; LÜDEMANN, Gerd; [et al]. Jesus' Resurrection: Fact or Figment. Downers Grove, IL: InterVarsity, 2000..

[5] FULLER, Reginald. The Formation of the Resurrection Narratives. Fortress: 1971, p. 52.

[6] MANN, C.S. Mark. New York, NY: Doubleday, 1986, p. 660.

[7]SPONG, John Shelby. Resurrection: Myth or Reality? San Francisco: Harper Collins, 1994. p. 180.

[8] THOMPSON, Mary. Mary of Magdala: What the Da Vinci Codes misses. New York: Paulist Press, 2006, p. 36.

[9] Cf. HENGEL, Martin; SCHWEMER, Anna Maria. Jesus und das Judentum. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007.

[10] VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 208.

[11] BORG, Marcus. J.; CROSSAN, John. D. Última Semana: um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 253.

[12] MEIER, J. P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Mentor. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 25, 153. (Vol. II, livro I).

[13] Sobre esse assunto, Cf. SLATER, Candade. A festa do boto: transformações e desencanto na imaginação amazônica. Tradução: Astrid Figueiredo. Rio de Janeiro: Funarte, 2001.

[14] Cf. CRAIG, William L ; CROSSAN, John Dominic. Will the Real Jesus Please Stand Up? A Debate Between William Lane Craig and John Dominic Crossan. Grand Rapids: Baker, 1998.

[15] CROSSAN, 1995. p. 202.

[16] apud, LOPES, Reinaldo José. Jesus é 'invisível' no registro arqueológico. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/0,,PIO7819-5603,00.html . Acesso em 14 de março de 2008.

[17] CROSSAN, 1995. p. 212-214.

[18] Ibid., p. 214-217.

[19] SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus, 1998, p. 263.


Autor: Francisco Chagas Vieira Lima Júnior


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