MERCOSUL E AS RESPECTIVAS NEGOCIAÇÕES: ALCA E UNIÃO EUROPÉIA



O ideal integracionismo da América Latina enfrenta atualmente três grandes impasses: a criação de uma zona de livre comércio (ALCA) entre os 34 países do continente[1], com exceção de Cuba, o fortalecimento do Mercosul e o acordo entre União Européia e Mercosul, também com o objetivo de formar uma zona de livre comércio.

Trata-se de situações que se pautam numa lógica mais econômica do que político-social, com foco no incremento das exportações e conseqüentemente, da participação no comércio internacional. Enquanto a União Européia almeja reforçar as relações políticas e econômicas com a América Latina, por meio do Mercosul, os EUA preferem, com a criação da ALCA, o desaparecimento do bloco do Cone Sul; e a obtenção de vantagens competitivas, a partir de uma integração assimétrica.

Na opinião dos professores Messias Pinto e Maria Helena Guimarães[2], existem quatro possíveis cenários para os entendimentos: ALCA, Mercosul e União Européia, de acordo com o quadro a seguir. Em face da abrangência e complexidade desse tema, a análise que será realizada a seguir pautar-se-á nos tratados constitutivos de tais blocos econômicos.

O primeiro cenário, pouco provável, supõe a inexistência da ALCA e a efetivação de um acordo de livre comércio entre União Européia/ Mercosul, para contrabalançar a expansão da política norte-americana no mundo.

A proposta de integração do Mercosul, que está prevista no preâmbulo do Tratado de Assunção (1991), expressa a vontade dos Estados-partes de ampliar seus mercados nacionais, como condição fundamental para acelerar o processo de desenvolvimento econômico e lograr uma adequada inserção internacional para os países-membros.

O estabelecimento de uma zona de livre comércio[3] entre o Mercosul e a União Européia revela exatamente estes objetivos. A partir da livre circulação de mercadorias e da eliminação das barreiras e restrições qualitativas ou aduaneiras, os Estados-membros poderão incrementar o intercâmbio comercial entre si e inserir num ambiente mais competitivo, sem, contudo, abster-se das próprias políticas comerciais com terceiros países.

Essa disposição dos dois blocos econômicos de liberalizar progressivamente o comércio é expressa por Garcia Júnior (1998, p. 49), da seguinte maneira:

No âmbito comercial, Mercosul e Comunidade Européia se comprometem a intensificar suas relações com o fim de fomentar o incremento e a diversificação de seus intercâmbios comerciais, preparar a ulterior liberalização progressiva e recíproca destes e promover a criação de condições que favoreçam o estabelecimento da Associação [transcontinental], tendo em conta a Organização Mundial do Comércio, sucessora do GATT 1947.

O interesse da União Européia em incrementar o intercâmbio comercial com o Mercosul reside na potencialidade desse mercado, cujas exportações somaram €18.340 milhões, em 2004, com destaques para máquinas e equipamentos de transporte (45%), produtos químicos (22,5%) e automóveis (12,3%) [4]. Além do interesse comercial, a cooperação econômica proposta pela União Européia estender-se-á à tecnologia e aos investimentos.

Atualmente, os europeus já são o segundo maiores investidores na América Latina, seguido dos norte-americanos e muito à frente dos japoneses, fruto da ampla participação de capitais nos processos de privatização das empresas públicas latino-americanas, e também da forte presença de bancos europeus nos programas de refinanciamentos. Cerca de 60% dos Investimentos Diretos Externos (IDE) europeus na América Latina, tiveram como destino o Mercosul, mais especificadamente a Argentina e o Brasil. Isso denota que a Europa comunitária tem um papel importante nesta região, e que os interesses da União Européia e dos EUA estão em concorrência, principalmente no que diz respeito a acesso de mercado.

Se analisado individualmente ou de forma a excluir a possibilidade da ALCA, num primeiro momento, o Mercosul teria condições de fortalecer sua integração regional e avançar nas negociações comerciais com outros blocos econômicos. Entretanto, a não concretização da ALCA no hemisfério ocasionaria uma explosão de acordos bilaterais e sub-regionais nas Américas, sobretudo pelos EUA, nos moldes que se apresenta atualmente na Europa e Ásia. A estratégia norte-americana, denominada "liberalização competitiva", é que se as rodadas da OMC e a ALCA falharem, a opção dos EUA será buscar uma multiplicidade de acordos bilaterais com os diversos países do mundo, colocando em risco o sistema multilateral de comércio.

O segundo cenário, também factível, supõe a existência da ALCA e a manutenção do Mercosul, porém sem a concretização do acordo União Européia/ Mercosul.

O projeto proposto pela ALCA, que envolve não apenas a livre circulação de bens, mas principalmente a abertura de setores como: serviços, investimentos e compras governamentais, proporcionará um mercado com aproximadamente 800 milhões de habitantes e um produto interno bruto (PIB) de USD 11,4 trilhões de dólares, situando-a no bloco econômico mais importante do mundo, a partir da inserção competitiva das economias do continente nos fluxos internacionais de comércio e investimento.

No entanto, os países latino-americanos reconhecem que a integração econômica proposta pela ALCA é um projeto complexo, ao integrar economias de tamanho e nível de desenvolvimento assimétricos, tornando difícil conciliar os diferentes interesses nacionais. Enquanto os EUA e o Canadá detêm mais de 82% do PIB hemisférico, Jamaica, Costa Rica, Honduras, El Salvador, Paraguai, Panamá, Guatemala Equador, Haiti e Nicarágua respondem, conjuntamente, por menos de 1%. O Brasil, maior economia da América do Sul, é responsável por 7,4%, e a Argentina, principal parceiro no Mercosul, responde por menos de 3% de toda a riqueza produzida no continente[5].

Apesar de o artigo 3, alínea "e", da minuta da ALCA, conferir um tratamento mais favorável a esses países:

o tratamento especial e diferenciado, considerando as amplas diferenças nos níveis de desenvolvimento e tamanho das economias das Partes, para promover a plena participação das Partes.

fica patente que a constituição desse superbloco econômico será conduzida em prol dos interesses norte-americanos.

Somente com a manutenção do Mercosul[6], que os EUA teriam seus interesses minimizados na região, já que haveria um bloco regional que poderia condicionar a sua influência econômica e até política no hemisfério.

Em relação à União Européia, o estabelecimento da ALCA ameaçaria reduzir a presença econômica européia na América Latina, especialmente no Mercosul, o que poderia acarretar em barreiras comerciais aos seus produtos.

Um terceiro cenário pressupõe o desaparecimento do Mercosul após a constituição da ALCA e, conseqüentemente, a inviabilização do Acordo União Européia-Mercosul.

Para exemplificar um provável desaparecimento do Mercosul diante da ALCA, recorreu-se ao ilustre exemplo do Benelux, que estabeleceu o livre comércio entre os países baixos (Bélgica, Holanda e Luxemburgo), com a formação de uma só unidade econômica, em 1958.Mais tarde, Itália, Alemanha e França também aderiram ao tratado, fato que contribuiu para o desaparecimento do Benelux e a criação da CEE (Comunidade Econômica Européia), que em 1992 foi substituída pela União Européia.

à medida que a integração européia se aproximou dos resultados previamente alcançados no Benelux, mesmo que ainda não os tivesse superado, este agrupamento sub-regional sofreu, de fato, um grau elevado de diluição no âmbito do processo regional mais abrangente[7].

Devido a essa experiência no passado, alguns estudiosos concluem queum acordo comercial de maior amplitude (ALCA, por exemplo) tenderá a absorver e a diluir o de menor abrangência (Mercosul). Na opinião do diplomata brasileiro João Clemente Baena Soares[8], a ALCA poderia anular o Mercosul, porque "estabeleceria uma circunstância de intercâmbio muito mais restrita e centralizada nos Estados Unidos". Idéia semelhante foi exposta pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que denunciou a ALCA como parte da tática de manutenção da hegemonia política e econômica dos Estados Unidos, "que realizariam seu desígnio histórico de incorporação subordinada da América Latina a seu território econômico e a sua área de influência político-militar" [9].

A percepção de que o Mercosul poderia se diluir na integração hemisférica justifica-se também pelo fato de que este bloco sempre privilegiou as negociações de acesso ao mercado de bens, evitando temas mais ambiciosos de uma integração econômica, como serviços, investimentos e políticas comuns.Por isso, a importância de aprofundar a integração sub-regional em campos não exclusivamente comerciais.

Num cenário marcado pela ausência do Mercosul e do Acordo UE-Mercosul, os EUA poderiam consolidar a ALCA facilmente, a partir de medidas ultraliberais (abertura unilateral das economias latino-americanas). O poder dos EUA na região seria reforçado também no sistema internacional, por contar com o apoio de 33 países reunidos em um único bloco.

O último cenário admite a existência da ALCA e do Mercosul e de um acordo de livre comércio entre União Européia / Mercosul, sendo a hipótese com maiores possibilidades de ocorrer.

De acordo com o artigo 3 (Minuta da ALCA, 2003), a ALCA poderá coexistir com acordos bilaterais e sub-regionais existentes (Mercosul) e com os que virem a serem criados futuramente (União Européia-Mercosul), à medida que direitos e obrigações decorrentes desses acordos tenham maior alcance que ela. Nesse sentido, caso a ALCA entrasse em vigor, com tarifa de zero por cento para todos os produtos comercializados nas Américas, o Mercosul efetivamente perderia sua identidade de área de livre comércio, como mencionado anteriormente.

Porém, caso os aspectos da integração sub-regional fosse além dos objetivos propostos pela ALCA, o Mercosul coexistiria com a criação do bloco hemisférico. Sob este aspecto, o Mercosul já se diferencia e ultrapassa o modelo previsto pela ALCA (zona de livre comércio), por ser uma união aduaneira (mesmo que imperfeita), com a adoção de uma tarifa externa comum aos países-membros, o que lhe assegura a manutenção de sua identidade nas relações comerciais com outros países/ blocos. Além da união aduaneira, o Tratado de Assunção estabeleceu que o objetivo primordial dessa integração fosse a formação de um mercado comum entre os seus membros, com a livre circulação de todos os fatores de produção[10] (Artigo 1°).

Para o ex-ministro das relações exteriores do Brasil, Luiz Felipe Lampreia:

o Mercosul é uma realidade de sucesso que veio para ficar, que reforça a identidade internacional dos seus membros e confere massa crítica ao projeto da ALCA. Não vai se diluir no hemisfério, nem constitui uma mera etapa de transição[11].

O senador norte americano Chuck Grassley[12] afirmou que a continuação da prosperidade e liderança no comércio mundial depende claramente das negociações da ALCA. Ressaltou ainda que a ALCA represente a única iniciativa econômica de ampla importância para a América Latina, desde que o presidente John Kennedy lançou a Aliança para o Progresso em 1961[13].

Opinião semelhante também foi compartilhada pelo ex-representante do comércio norte-americano, Robert Zoellick, em que o Brasil (representado pelo Mercosul) e os EUA têm metas similares que podem ser atendidas pelo trabalho da ALCA em conjunto com outros acordos e organizações de comércio. "O objetivo primordial dessas negociações é único: fazer esse processo avançar de forma a abrir mercados para ajudar no crescimento e no desenvolvimento regional", frisou. Isso poderá ser feito em diferentes fóruns: ALCA, acordo "4+1", que visa melhorar os laços comerciais entre os Estados Unidos e os quatro países do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), Mercosul e OMC.

Para a União Européia, esse cenário poderia salvaguardar os investimentos comunitários na América Latina e possibilitar o crescimento do fluxo de trocas com o Mercosul. Porém, a existência em paralelo da ALCA, traria mais prejuízos que benefícios aos europeus, pois teriam que se submeter aos novos padrões de inserção internacional definidos pelos EUA.


[1]Antigua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, El Salvador, Equador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.

[2] Maiores detalhes, ver artigo "O Mercosul e a ALCA: os interesses (irre) conciliáveis da União Européia e dos EUA", in Rev.Bras.Int. 48(1): 129-150 [2005].

[3]Conforme as discussões desenvolvidas no GATT/ OMC, uma zona de livre comércio deve abranger pelo menos 80% dos bens comercializados entre os países-membros.

[4]Segundo informações do Eurostat, março, 2005.

[5] Informações fornecidas pelo Banco Mundial, World Development Report, 2000/2001 e CIA World Factbook, 2000.

[6] De fato, o Mercosul tornou-se um importante ator internacional e um pólo de atração na América Latina, constituindo um instrumento fundamental para ampliar o poder de barganha do bloco.

[7] MELLO, Flávia de Campos. O Mercosul e a ALCA, in Relações Internacionais e sua construção jurídica, SÃO Paulo: FTD, 1998, p.64 (Coleção jurista da atualidade. Serie ALCA: v 2).

[8]Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 17/02/02.

[9] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A crise da Argentina e os objetivos dos EUA. Revista Espaço Acadêmico, ago.2002, ano II, n° 15.

[10]Ressalta-se que até o momento as negociações privilegiaram o acesso ao mercado de bens, e temas como serviços, investimentos e políticas comuns ainda não foram discutidos como um próximo estagio da integração (mercado comum).

[11] Discurso proferido durante a abertura da II Reunião Hemisférica de Vice-Ministros, em fevereiro de 1998.

[12] Pronunciamento realizado no Plenário em Apoio à Indicação de Robert B. Zoellick, para o cargo de representante de Comércio dos EUA, em fevereiro de 2001.

[13] Foi um programa de ajuda econômica e social dos EUA para a América Latina, efetuado entre 1961 e 1970.


Autor: Jaqueline Pasqual


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