Para Além da Ilusão: O Moderno Mercado de Fantasias das Escolas de Samba



No Brasil, o termo "fantasia" tem um duplo sentido, podendo representar a ilusão da realidade ou os costumes usados somente no carnaval (DaMatta, 1997:60). Esta ambivalência do termo, muito bem observada por DaMatta, talvez ajude a compreender o intenso debate que se forma em torno daqueles que, muitas vezes com sacrifícios, anualmente compram uma fantasia para desfilar numa escola de samba. Alguns dirão se tratar de uma forma de "alienação", ilusão que mascara momentaneamente o quotidiano sofrido através de um evento lúdico que, sempre numa quarta-feira, traz novamente a dura realidade. Outros, especialmente no mundo globalizado de nossa época, destacarão seus aspectos de resistência e preservação das particularidades culturais. Desfilar seria uma forma de ratificar as raízes, valorizar as origens com as armas disponíveis, ou seja, cantando, sambando ou mesmo no árduo trabalho de costura.

Seja como for, a verdade é que o desfile anual das 14 escolas do grupo especial[1] serve de base para um lucrativo mercado de fantasias[2], um negócio que movimenta elevadas cifras financeiras, cria empregos diretos ou indiretos, profissões especializadas e atrai a atenção de "consumidores" de várias partes do planeta. Neste trabalho, estaremos apresentando um pouco da organização deste mercado, que se formou como conseqüência das transformações das escolas de samba e do próprio carnaval carioca.

Do figurino à avenida
           Brincar fantasiado os dias de folia carnavalesca é uma tradição no carnaval carioca, provavelmente importada da Europa no decorrer do século XIX[3], e associado sempre a uma expressão de liberdade individual. DaMatta, por exemplo, ressaltou a diferença entre o "uniforme" e a "fantasia", pois, enquanto o primeiro igualaria e corporificaria, o segundo distinguiria e revelaria, já que cada um seria livre para escolher o que quiser (DaMatta,1997:60).Uma fantasia de escola de samba, contudo, não goza da mesma liberdade. Em suas exibições anuais, as agremiações apresentam um enredo, ou seja, um tema exposto visual e musicalmente. É o enredo que cria o contexto onde todos os elementos de uma escola de samba podem ser interpretados, dando coerência e unidade ao conjunto de fantasias, alegorias, adereços, destaques e ao próprio samba que embala o cortejo.

A consolidação das fantasias como parte fundamental do ritual das escolas de samba, segundo concepção de Fernandes (2001), remota ao ano de 1939, quando a escola de samba Portela, sob o comando de Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo da Portela, apresentou um conjunto de desfilantes fantasiados de alunos, interpretando desta forma o enredo "Teste ao samba", que exaltava a importância da educação e a valorização do professor[4]. Antes de expressar liberdade, desfilar fantasiado representa a adequação pessoal a um determinado planejamento. Entrar na avenida sambando é, mais importante que uma simples diversão, tomar parte num espetáculo meticulosamente detalhado e planejado, onde todos os elementos estão subordinados a apresentação de um tema. Assim sendo,a escola exerce rigoroso controle sobre cada fantasia que compõe sua apresentação, e o desfilante se torna um figurante de um grande espetáculo pré-concebido.

Uma fantasia de escola de samba surge, em primeiro lugar, nas pranchetas do "carnavalesco", artista contratado para desenvolver o tema e a parte plástica que a agremiação apresentará, ou de um figurinista por ele indicado ou contratado. Para descrever as várias partes do enredo, são desenhados entre trinta e quarenta "figurinos", que devem conter os elementos necessários para a "leitura", que é a possibilidade de interpretação do seu significado dentro do tema abrangente, e os materiais que fornecem a beleza necessária para o espetáculo, como plumas, paetês, penas de vários tipos entre outros. Uma boa fantasia deve conter o equilíbrio entre estes dois aspectos: a "leitura" e a "beleza".

Depois de apresentados e aprovados[5] pela direção de carnaval da agremiação, as propostas de figurinos são executadas por especialistas, que são os responsáveis pela criação dos "protótipos" [6], modelos das fantasias que serão posteriormente reproduzidas. O conjunto de protótipos geralmente é apresentado numa grande festa que reúne integrantes da própria agremiação, do "mundo do samba[7]" e da imprensa. Como num desfile de moda, uma passarela é montada para que a "coleção" de "protótipos" seja apresentada. Alguns sambistas se tornam "modelos", vestindo as fantasias e desfilando, quase sempre ao som da bateria. Um especialista, com seus anos de experiência e participação, faz sua análise identificando os materiais, avaliando a combinação de cores e a pertinência ao tema proposto.

O processo de venda das fantasias não é feito diretamente pela escola, e sim "terceirizado" pelas alas credenciadas[8], que, além do compromisso de colocarem um número mínimo[9] de desfilantes fantasiados, e da reprodução fiel[10] do modelo pré-determinado, pagam pelo protótipo o valor estipulado[11] pela agremiação. Nos ensaios do meio de semana, parte da quadra se transforma numa grande feira, onde as alas expõem fotos das fantasias que estão sendo comercializadas.

Embora possa gerar grandes lucros, gerir uma ala de escola de samba é um investimento de risco, em que o responsável, muitas vezes, é obrigado a ter prejuízo para cumprir o que fora acordado com a agremiação. Todos possuem histórias de anos em que grandes prejuízos foram amargados e outros lembrados como de fartura, isto é, de venda fácil. É consenso que para organizar uma ala é necessário dispor de uma considerável quantia financeira para investir, o que, por si só, já exclui os sambistas de menor poder aquisitivo do controle deste mercado. Veremos, a seguir, como o processo de comercialização dos desfiles desestruturou os antigos laços comunitários e se transformou no grande negócio impessoal dos dias atuais.



Autor: Fábio Pavão


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