A revelação divina no cristianismo primitivo: dialética entre tradição, escrituras e revelação



A visão moderna da cristandade fundamentalista é que a Bíblia ou "Sagradas Escrituras", contém toda a revelação Divina. Trata-se de uma coleção de Livros Sagrados que contém relatos desde a Criação do universo, até o que virá no Final dos Tempos. Foi através das Sagradas Escrituras que Deus se comunicava e se comunica até os dias de hoje com Seus Filhos para Se revelar, ensinar, guiar, repreender, exortar, instruir, encorajar, enfim para Se comunicar com suas Criaturas tão amadas. A Bíblia, quando utilizada em oração, é o diálogo com Deus.

João Crisóstomo, um dos Padres de Igreja, - diz a lenda – antes de ler o "Livro Santo", rezava a seguinte oração: "Senhor Jesus Cristo, abre os olhos do meu coração para que eu possa compreender e realizar a tua vontade... ilumina meus olhos com a tua luz". Do mesmo modo, nos aconselha Santo Efraim: "Antes de qualquer leitura, reze e suplique a Deus para que Ele se revele a ti". Poderíamos dizer que, para os Padres, a Bíblia é o Cristo em pessoa, pois, cada palavra sua, afirmavam, era capaz de colocá-los na presença de Jesus Cristo, como afirma Santo Agostinho: "Ele, Aquele que eu busco nos livros".

De fato, para esses cristãos, a Escrituras sagrada se caracterizava como a revelação de Deus aos homens – revelação essa que, muitas vezes, dispensava a necessidade de qualquer outra revelação.

O próprio Catecismo da Igreja Católica consagra à Sagrada Escritura a função de servir aos fieis como revelação divina:

102: "Por meio de todas as palavras da Santa Escritura, Deus profere uma única Palavra, seu Verbo único, a expressão total do seu ser" (cf. He 1, 1-3): "Lembrem-se de que é a mesma Palavra de Deus que se ouve em todas as Escrituras, é o mesmo Verbo que ressoa na boca de todos os escritores sagrados, ele que, sendo no início Deus, junto de Deus, não tem necessidade de sílabas, por não estar submetido ao tempo". (Santo Agostinho, Sl 103, 4,1: PL 37, 1378).

Do mesmo modo, os cristãos primitivos, mesmo na época em que ainda os primeiros escritos da literatura cristã – como as cartas de Paulo – ainda não existiam, reverenciavam as Escrituras judaicas como uma manifestação de Deus e como sua revelação aos homens.

Para Paulo, passagens das Escrituras judaicas como as de Isaias 9.2, 42.6 e 49.6 significaram uma grande revelação divina. Não se tratava apenas de colher informações das Escrituras e aplicá-las. Para Paulo, o texto era uma revelação pessoal de Deus para a igreja. Desse modo, Paulo viu na revelação das Escrituras judaicasuma autorização divina para a proclamação de que todos os povos, todas as 'tribos", todas as cidades, todas as comunidades, etc., e em geral, todas as pessoas são chamadas a se aproximar de Jesus, tendo-o como o único mediador da nova aliança de Deus com os homens, sendo que Jesus é capaz de realizar uma ligação entre o crente e o criador. Para Paulo aquilo havia sido uma notícia maravilhosa. Mas, segundo ele, tal verdade tinha ficado vedada, e foi revelada a ele como apóstolo, através de uma grande dedicação ás Escrituras. Isso é chamado de "mistério de Cristo" em Efésios 3.4.Para Paulo, isso só veio a ter sido revelado recentemente (na época dele).

Paulo não teve somente esta "revelação" especifica das Escrituras, mas uma outra talvez ainda mais importante: qual a natureza e a missão de Jesus. Tendo conhecimento desses dois itens, poder-se-ia saber quem foi, e é, Jesus Cristo. Assim, várias passagens das epistolas de Paulo nos oferece indícios de que, para Paulo, Jesus e sua missão eram um "mistério", o qual somente poderia ser revelado através das Escrituras judaicas.

Em Romanos 16.25-26, Paulo afirma que

[...] aquele que é poderoso para vos confiar segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério guardado em silêncio nos tempos eternos, e que, agora, se tornou manifesto e foi dado conhecer por meio das pelas Escrituras proféticas, segundo o mandamento do Deus eterno, para obediência da fé, entre todas as nações.

A exegese paulina reflete a o uso das Escrituras judaicas daqueles primeiros cristãos, que pensavam poder encontra nas Escrituras toda a revelação que precisavam. Nesse contexto, três características básicas dos cristãos primitivos se uniam: o gosto pela tradição histórica recebida, a leitura exegética das Escrituras e a atenção especial a revelação progressiva. Foi a leitura exegética das Escrituras judaicas o que produziu o vinculo entre a tradição histórica recebida e a revelação progressiva. Desse modo, houve um momento em que as Escrituras passaram a exercer a função da revelação.

Os primeiros cristãos possuíam memórias sobre a vida, a mensagem e principalmente sobre a morte de Jesus. Não importa como eram tais memórias: quando procuramos identificar no Novo Testamento as tradições e memórias sobre Jesus, sempre nos deparamos com o fato das mesmas estarem inexoravelmente vinculadas as Escrituras judaicas. O fato da tradição de Jesus ter sido vinculada a passagens das Escrituras trouxe novas revelações para aqueles cristãos.

Os cristãos primitivos davam uma ênfase especial a "revelação progressiva" - uma espécie de continuidade histórica entre a revelação divina e a comunidade – fator esse que permitiu que a imagem e a mensagem de Jesus se modificassem de acordo com novas reflexões e experiências.

Essa idéia de revelação progressiva implicava que os seguidores de Jesus não precisavam sempre voltar os olhos para o passado (lembranças) para caminharem em direção ao futuro. Foi nesse contexto que as Escrituras, juntamente com as revelações sobrenaturais, seria utilizada como guia e desempenharia um papel importante.

Já em, em 1Co 15:1-8, Paulo já proclamava a morte de Jesus de uma forma especial: ele não precisava recorrer a tradição recebida para se certificar do fato; as Escrituras judaicas eram a principal testemunha da paixão de Jesus: "Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que foi ressuscitado ao terceiro dia, segundo as Escrituras;".

Tal texto, como demonstra a Alta Crítica, corresponde a um credo bastante antigo, indicando que o ato de fundir as memórias sobre Jesus com as Escrituras começou bem cedo. Nesse contexto, é lógico que as memórias perderiam força diante das Escrituras, pois as Escrituras ofereciam algo muito mais importante que os fatos brutos sobre a vida de Jesus: elas ofereciam o significado desses fatos. Essa reelaboração da vida e principalmente da morte de Jesus, moldada a partir de uma exegese bíblica ao invés de uma recapitulação histórica, por sua vez, permitiu não somente uma nova interpretação dos fatos mais marcantes e significativos da vida de Jesus, mas também uma nova idealização e uma arquitetação mais complexamente colorida, teologicamente mais significativa e mais condizente com a visão que a comunidade gostaria de ter do que uma visão histórica dos fatos. Assim, a tradição recebida cedeu espaço para a construção de novos fatos, uma tradição divina (escrituristicamente) revelada.

A ressurreição de Jesus havia sido um das primeiras manifestações dessa revelação progressiva. Mediante a idéia da ressurreição, a mensagem de Jesus foi inteiramente reinterpretada e seu papel na terra foi não apenas reformulado, mas também passado a segundo plano. Assim, a execução de Jesus deixava de ser relembrada para ser lida.

A morte de Jesus passou a ter um significado cósmico e sua ressurreição a esperança do cristão. Diante de um quadro cristológico e teológico bem complexo como este, pouco lugar restava para a tradição de Jesus – a qual sobrevivia na medida em que era modificada de acordo com as novas concepções emergentes.

Por isso, pode-se dizer que o cristianismo primitivo se caracterizou não como uma religião da tradição, mas como uma religião da revelação – revelação essa que poderia ser oriunda tanto das Escrituras quanto das reuniões extáticas dos primeiros cristãos. De fato, é possível que os primeiros membros do cristianismo primitivo estivesse envolvidos com rituais de transe extáticos, assim como os pentecostais da nossa época atual.

Provavelmente, a experiência pessoal de Paulo da visão sobrenatural que ele teve - e que, segundo ele mesmo diz, lhe deu todo o subsidio para se tornar um líder da comunidade cristã e levá-la a "novos horizontes" - não foi uma experiência isolada que se remontava somente a ele.

É muito provável que grande parte das doutrinas centrais do cristianismo tenham sido concebidas mediante essas "revelações" e que mais tarde os evangelhos tenham postos as mesmas na boca de Jesus. Agora, determinar o que tenham sido essas revelações é tarefa complicada.

É fato que a narrativa da paixão relatada nos evangelistas é uma releitura moldada no Antigo Testamento. Eles contam a história da morte de Jesus de modo que ela confirme as profecias sobre o Messias - que seria enviado por Deus para morrer e salvar os homens de seus pecados. A visão da morte de Jesus como um acontecimento redentor foi uma reinterpretação do papel martiriológico de Jesus.

Marcos, que compartilhava do ideal paulino de morte redentora de Jesus, procurou nas Escrituras judaicas os detalhes ocultos da morte de Jesus.

A ênfase de Paulo de que Cristo morreu pelos pecados, foi sepultado e foi ressuscitado ao terceiro dia, segundo as Escrituras, reflete o mesmo pensamento de Marcos: que a vida de Jesus era um livro aberto nas Escrituras judaicas.

Foi isso que deu toda a motivação e autorização para Marcos (ou a fonte dele) criar os relatos da Paixão de Jesus a partir de citações avulsas nas Escrituras judaicas. Desse modo, vemos a dialética "Escritura versus revelação" se fundindo uma na outra, fazendo com que a Escritura se torne o principal veiculo de revelação da igreja.

Ainda que os detalhes da Paixão de Jesus como narrativa, só tenham surgido na época de Marcos, é bem provável que antes mesmo de Paulo os cristãos já julgava receber detalhes da morte redentora de Jesus mediante a leitura (reveladora) das Escrituras.

Até os dias atuais os cristãos estão familiarizados com o termo "revelação bíblica", que carrega a idéia de que as Escrituras "revelam" possui o mesmo poder de revelação que uma visão sobrenatural.


Autor: Francisco Chagas Vieira Lima Júnior


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