A NOVA REDAÇÃO DO ARTIGO 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO E OS PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL CONSTITUCIONAL



A teoria do bem jurídico e o modelo de crime como ofensa a um dado bem jurídico afirmaram-se, ao longo do tempo, nos Estados Democráticos de Direito, como critérios de delimitação não só da matéria de incriminação, como dos próprios contornos da respectiva tutela penal. Nesse contexto, começa a discutir uma técnica legislativa assumidamente casuística, que tende a considerar o Direito Penal cada vez mais como instrumento de controle acessório ao Direito Administrativo, é o chamado princípio da subsidiedariedade do Direito Penal. Porém, hodiernamente, em via reversa, no Brasil o legislador vem inovando na criação de crimes, levando ao nível, condutas que sequer cause perigo concreto à população e ao Estado, são as chamadas condutas de perigo abstrato. Começa-se, dessa forma, antecipar uma tutela penal, incriminando uma conduta que sequer cause dano à bem jurídico algum, pelo contrário, incrimina porque eventualmente pode ocorrer. Assim, discute-se a inconstitucionalidade do artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro, por ferir o princípio subsidiariedade do Direito Penal, da intervenção mínima do Estado, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CF), a igualdade (artigo 5º, caput, da CF), o devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, da CF), a estrita legalidade (artigo 5º, inciso XXXIX, da CF), a proporcionalidade (artigo 5º, §2º, da CF) entre outros, além do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput, da CF). Dessarte, pretende-se fazer uma análise profunda em consonância com a nossa Carta Magna. Justificando-se na vontade de debatermos e fiscalizar o Poder Legislativo, na criação de normas inconstitucionais. Este trabalho foi objeto de ação de inconstitucionalidade, argüida por meio difuso, desenvolvida pelos autores, sendo fruto de extensa pesquisa bibliográfica.

Desde os primórdios da história humana, o homem, para que possa viver em comunidade, sente a necessidade de impor regras para a sua convivência. Ao longo de sua história, não poucas vezes, nos deparamos com a edição de normas para ordenar a convivência social, com o fim de tornar a vida em sociedade ou em comunidade mais harmônica. Para isso, o homem sacrificou algumas liberdades individuais de que gozava para então gozar de segurança e tranqüilidade.

As limitações postas aos membros de determinada comunidade foram evoluindo e chamadas, posteriormente, de leis, conforme explicá-nos Cesare Baccaria (1999, p. 27):

Leis são condições sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservá-la. Parte dessa liberdade foi por eles sacrificada para poderem gozar o restante com segurança e tranqüilidade. [...]

As leis postas, em determinadas épocas, não atingiam a totalidade de pessoas de determinada comunidade, deixando de incidir sobre algumas pessoas, ferindo a igualdade existente entre os seres, foi a época chamada de absolutismo. Porém, com a extinção do absolutismo, as leis passaram a ter eficácia contra todos, iniciando-se, assim, um Estado de Direito.

Nessa época, o Direito Penal sofre um grande abalo, pois antes do Estado de Direito as normas de natureza penal não eram aplicadas a determinadas pessoas, com o advento do Estado de Direito, passou a ser aplicada indiscriminadamente aos indivíduos.

Com o tempo, surgiu a figura do Estado Democrático de Direito e, com este, a teoria do bem jurídico e o modelo de crime como ofensa a um dado bem jurídico. Esta teoria, por sua vez, propaga que determinada conduta só poderá ser elevada ao status de crime se ofender algum bem jurídico, ou seja, causar dano ou perigo concreto. Assim, afirmaram-se como critérios de delimitação, não só da matéria de incriminação, mas os próprios contornos da respectiva tutela. Essa teoria refuta modelos de estados autoritários, permitindo-nos afirmar a legitimidade do Direito Penal no Estado Democrático de Direito. É um sistema que vai além da simples imposição das leis a todos, não se resumindo apenas na instituição formal da divisão de poderes, implicando mais do que mero Estado de legalidade. O referido modelo deve corporificar em si a proteção da liberdade e do desenvolvimento pessoal e político dos cidadãos e a moderação e juridicidade de todo o exercício do poder público. Daí deduz-se que a norma penal apenas é justificável na medida da sua necessidade à proteção das condições de vida de uma sociedade estruturada sobre a base da liberdade e da dignidade, com os bens fundamentais ao ser humano, que na dicção de Fernando Capez (2006, p. 7):

Do Estado Democrático de Direito partem princípios regradores dos mais diversos campos da atuação humana. No que diz respeito ao âmbito penal, há um gigantesco princípio a regular e orientar todo o sistema, transformando-o em um direito penal democrático. Trata-se de um braço genérico e abrangente, que deriva direta e imediatamente deste moderno perfil político do Estado brasileiro, a partir do qual partem inúmeros outros princípios próprios afetos à esfera criminal, que nele encontram guarida e orientam o legislador na definição das condutas delituosas. Estamos falando do princípio da dignidade humana (CF, artigo 1º, III).

Por dignidade humana, núcleo axiológico do constitucionalismo contemporâneo, há divergências em sua definição, alguns compreendem como um termo vago, impreciso, porém hábil para proteger qualquer ser humano de atos desarrazoados e tratamentos desiguais. Outros declaram como termo variável, dependente da concepção ideológica de quem trate de aproximar-se do conceito, as circunstâncias e os valores sociais postos em jogo.

Contudo, Marcelo Novelino Camargo (2008, p. 210-211) define:

A dignidade da pessoa humana não é um direito, mas um atributo que todo ser humano possui, independente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro requisito. O ordenamento jurídico não confere dignidade a ninguém, mas tem a função de protegê-la contra qualquer tipo de violação.

Por outro lado, a liberdade é o maior bem do homem, depois, é claro, da vida, e qualquer norma que venha ameaçar a liberdade, deve ser vista com ressalvas e cautela, pois esta é ínsita da dignidade da pessoa humana, conforme salienta Fernando Capez (2006, p. 7-8).

Com isso, pode-se afirmar que a norma penal em um Estado Democrático de Direito não é somente aquela que formalmente descreve um fato como infração penal, pouco importando se ele ofende ou não o sentimento social de justiça; ao contrário, sob pena de colidir com a Constituição, o tipo incriminador deverá obrigatoriamente selecionar, dentre todos os comportamentos humanos, somente aqueles que realmente possuam lesividade social.

Dessarte, o Estado, como órgão exclusivo de criação de normas incriminadoras, não pode criar tipos penais a seu bel prazer, mas deve criar delitos somente para aquelas condutas humanas mais lesivas para a sociedade ou para o Estado, delimitando ao máximo a intervenção deste e a noção de bem jurídico.

A par da referida constatação quanto à função de delimitação da noção de bem jurídico, são conhecidos os impactos trazidos pela denominada sociedade de risco no âmbito jurídico-penal, em especial no que se refere à antecipação da tutela de bens jurídicos supra-individuais de cunho econômico, ambiental, tecnológico ou de consumo, por meio da tipificação crescente de crimes de perigo abstrato, mormente sob a forma de crimes de cumulação e de mera desobediência.

Adotou-se, assim, uma técnica legislativa assumidamente casuística, que tende a considerar o Direito Penal, cada vez mais, como instrumento de controle acessório ao Direito Administrativo, demonstrando-nos que a política criminal caminha em uma direção diversa do princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Nessa linha, os tipos penais assemelham-se, na sua forma, às normas de intervenção da Administração Pública, distanciando dos requisitos clássicos da generalidade e da abstração. As normas penais transformam-se em instrumentos de administração de situações particulares, de "emergências" concretas.

Prontamente ganha corpo o questionamento sobre a configuração do bem jurídico, que perde sua densidade. Chega-se a discutir, na atualidade, a própria importância do conceito do bem jurídico na configuração do injusto e, assim, no estabelecimento da função do Direito Penal.

Nesta perspectiva, com intuito de criar uma barreira nas arbitrariedades do Estado e em sua política criminal, criou-se entre a doutrina dominante, o chamado princípio da intervenção mínima, que nada mais é que a extensão do princípio da legalidade. Explica-nos o eminente jurista Cezar Roberto Bitencourt (2004, p. 11-12):

O princípio da legalidade impõe limites ao arbítrio judicial, mas não impede que o Estado – observada a reserva legal – crie tipos penais iníquos e comine sanções cruéis e degradantes. Por isso, impõe-se a necessidade de limitar ou, se possível, eliminar o arbítrio do legislador.

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como 'ultima ratio', orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. [...] Por isso, o Direito Penal deve ser a 'ultima ratio', isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.

O Estado, dessa forma, não deve elevar à condição de delito a conduta de pessoas só porque abstratamente põe em risco bem jurídico, mas criminalizar tão-somente aquelas condutas que trazem perigo concreto, pois só deve trazer para o campo do Direito Penal as ações ou omissões humanas que cause um grande prejuízo para um determinado bem jurídico, ante o perigo de estarmos antecipando a tutela penal antes mesmo do injusto penal ocorrer, o que fere o Estado Democrático.

O Direito Penal, em um Estado Democrático de Direito (CF, artigo 1º, caput), no qual a dignidade humana é fundamento (CF, artigo 1º, III), não se admite que a tutela penal seja preferencial, mas sim subsidiária, só devendo incidir onde outros ramos jurídicos não comportarem, ou seja, nas condutas mais lesivas para o Estado e para a sociedade.

Neste diapasão, entra, no Direito Penal, o sub-princípio da intervenção mínima, conhecido por alguns, como princípio da fragmetariedade, que no entendimento do eminente professor Luiz Flávio Gomes (2004, p. 113) significa:

duas coisas: a) somente os bens mais relevantes devem merecer tutela penal; e b) exclusivamente os ataques mais intoleráveis é que devem ser punidos penalmente. Como se vê, o Direito tem condições de oferecer aos bens uma proteção diferenciada, que pode ser civil, administrativa, penal etc.

Desse modo, no ordenamento jurídico-penal, consoante o princípio da estrita legalidade, consubstanciado no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, não deve penalizar condutas que sequer cause ameaça ou lesão a algum bem jurídico, mas exclusivamente aquele que cause ofensa ou perigo concreto de dano, consoante o princípio da ofensividade, pois nesse Estado de prevenção dos riscos sociais, que conflita diretamente com o Direito Penal do fato, expande-se a esfera de discricionariedade das próprias decisões judiciais, que assumem caráter programático e político semelhante às leis.

Entende-se, por princípio da ofensividade, que para que se tipifique algum crime, em sentido material, é indispensável que haja, pelo menos, um perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido. Somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado, caso contrário afronta o Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, a estrita legalidade, o princípio da fragmetariedade e o princípio da intervenção mínima.

Fernando Capez (2006, p. 8) assevera:

É imperativo do Estado Democrático de Direito a investigação ontológica do tipo incriminador. Crime não é apenas aquilo que o legislador diz sê-lo (conceito formal), uma vez que nenhuma conduta pode, materialmente, ser considerada criminosa se, de algum modo, não colocar em perigo valores fundamentais da sociedade.

Noutro norte, surge o princípio do devido processo legal, verdadeira extensão do Estado Democrático de Direito e do princípio da dignidade da pessoa humana, positivado no artigo 5º, inciso LIV, da Lei Maior, orienta-nos no sentido que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

A doutrina moderna o considera como "cláusula de segurança" do sistema jurídico, salienta o ilustre jurista Edilson Mougenout Bonfim (2008, p. 39-40), identificando dois distintos aspectos ínsitos no princípio do devido processo legal:

a) devido processo legal formal e;

 

b) devido processo legal material.

Este último interessa-nos.

O devido processo legal em sentido material ou substancial (substantive due process of law), nas palavras de Marcelo Novelino Camargo (2008, p. 332) "se dirige, em primeiro momento, ao legislador, constituindo-se em um limite à sua atuação, que deverá pautar-se pelos critérios de justiça, razoabilidade e racionalidade". Refere-se ao direito material de garantias fundamentais do cidadão. Representando, portanto, uma garantia na medida em que protege o particular contra qualquer atividade estatal que, sendo arbitrária, desproporcional ou não razoável, constitua violação a qualquer direito fundamental.

Nesta esteira, ensina Edilson Mougenot Bonfim (2008, p. 40):

Assim, o Poder Judiciário, provendo a sociedade com o devido processo legal, poderá proferir juízos acerca da própria razoabilidade ou proporcionalidade de determinado dispositivo normativo, mitigando sua aplicação ou mesmo determinando sua inaplicabilidade a partir de seu prudente arbítrio. Trata-se, pois, de um instrumento amplo para flexibilizar a atuação do poder judiciário do Estado de acordo com parâmetros de racionalidade ou do princípio da proporcionalidade.

O princípio do devido processo legal não alcança apenas o processo judicial, mas também o processo legislativo, de criação das normas jurídicas, sobretudo a penal.

Há nos últimos tempos, uma tendência, diga-se inconstitucional, do legislador em criminalizar condutas de perigo abstrato, que não lesa ou causa perigo concreto de lesão, de qualquer bem jurídico, conduta esta, desproporcional e desarrazoada. Logo, manifestamente inconstitucional, ante a afronta dos princípios constitucionais do devido processo legal e da proporcionalidade e razoabilidade.

O princípio da razoabilidade e proporcionalidade, na feição de baliza para a norma incriminadora, é uma verdadeira extensão do princípio do devido processo legal material, pois vem impor limites ao legislador ao criar tipos penais desproporcionais, que não lese bem jurídico e que não exponham pessoas a riscos concretos, tudo para preservar o Estado Democrático de Direito.

Celso Antonio Bandeira de Mello (2006, p. 105) ao explicar a função do princípio da proporcionalidade e razoabilidade na administração, que neste caso lê-se o Legislativo, aduz:

Enuncia-se com este princípio que a Administração [o Legislativo], ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas – e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis -, as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei [Constituição] atributiva da discrição manejada.

Com efeito, o fato de a lei conferir ao administrador [legislativo] certa liberdade [...] não significa, como é evidente, que lhe haja outorgado o poder de agir ao sabor exclusivo de seu libido, de seus humores, paixões pessoais, excentricidade ou critérios personalíssimos, e muito menos significa que liberou para manipular as regras de Direito de maneira a sacar dela efeitos não pretendidos nem assumidos pela lei [Constituição] aplicada.

Se até mesmo, as normas de caráter privado, como as cíveis e comerciais ou mesmo de natureza pública como tributárias devem ser razoáveis, como mais razão deve ser a norma de natureza penal, pois esta, volta-se diretamente ao maior bem do ser humano, depois da vida, que é a liberdade.

Ainda no princípio da proporcionalidade e razoabilidade comenta o notável advogado e doutrinador Luís Roberto Barroso (2004, p. 373):

Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionaridade dos atos do Poder Público [...]. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravosopara chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito).

Observa-se que Luís Roberto Barroso atribui três requisitos e/ou sub-princípios do princípio da proporcionalidade e razoabilidade para a norma ser válida. A saber:

Da adequação entre o instrumento empregado e o fim perseguido, que neste caso, não há, pois o fim perseguido é a segurança da população e prevenção de acidentes de trânsito causados por pessoas embriagadas, sendo que o instrumento empregado foi descompassado com o fim a que se persegue, pois tipificar a conduta como delito, somente se faz em casos extremos, conforme orienta-nos o princípio da intervenção mínima, da exclusiva proteção dos bens jurídicos, da ofensividade e da fragmentariedade. No caso em comento, não há sequer perigo concreto, ou seja, o legislador incrimina uma conduta pelo simples fato dele prevê um acontecimento. Usa-se assim, a presunção, que em Direito Penal deve ser rechaçada, ante a colisão clara com a presunção de inocência.

Em seguida, Barroso menciona o sub-princípio da necessidade, que no caso não se faz necessário existir a tutela criminal do fato, porque como é sabido, o Direito Penal só tutela as condutas que causa maior prejuízo a vida em comunidade (princípio da subsidiariedade do Direito Penal), ausente está a necessidade de levar ao patamar de crime a conduta de dirigir alcoolizado, uma vez que uma simples pena administrativa, como a aplicação de multa, já bastaria.

E, por último, menciona o ilustre doutrinador o sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se ganha com a medida deve ser de maior relevo que aquilo que se perde. O caso em discussão, não há ganho, haja vista que a simples redução de acidentes de trânsito poderia ocorrer com maior fiscalização por parte do Poder Público. E o que se perde – a liberdade – é o bem maior que o ser humano pode ter, depois da vida. Observa-se aí, que o Poder Público, diante de sua ineficiência, transfere sua responsabilidade de fiscalizar o trânsito e aplicar pena administrativa, para a seara criminal, fazendo, por via transversa, uma política de terror, pois ao criminalizar a conduta de dirigir alcoolizado estaria, em tese, diminuindo as pessoas que transitam nas ruas e rodovias sob o efeito de álcool o que, consequentemente, diminuiria os acidentes. O que não é verdade, isso é apenas um discurso, diga-se, daqueles demagogos, que visam ganhar aval de uma população desinformada, impondo-lhes ainda, uma política do terror, ante a ameaça constante de ser levado à prisão caso venha ingerir bebida alcoólica e dirigir sob seu efeito.

O artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro, não tem bem jurídico a ser tutelado, ou ele é inexpressível diante do direito à liberdade. Portanto, o delito previsto no artigo 306, do CTB, nas palavras de André Luís Callegari (2008, p. 14) "representa um retrocesso do legislador, tendo em vista a natureza material da antijuricidade e também a moderna visão do Direito Penal implica em levar em conta não só o desvalor da ação, mas, também, o do resultado".

Nesta perspectiva, comenta o prodigioso doutrinador Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2006, p. 396-397):

Não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica desses bens. Embora seja certo que o delito é algo mais – ou muito mais – que a lesão a um bem jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade. É por isto que o bem jurídico desempenha um papel central na teoria do tipo, dando o verdadeiro sentido teleológico (de telos, fim) à lei penal. Sem o bem jurídico, não há um "para quê?" do tipo e, portanto, não há possibilidade alguma de interpretação teleológica da lei penal. Sem o bem jurídico, caímos num formalismo legal, numa pura "jurisprudência de conceitos".

No mesmo sentido são os dizeres de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, citados por Fernando Capez (2006, 663), ao comentar os crimes de responsabilidade fiscal:

A dificuldade em se estabelecer o bem jurídico tutelado no tipo penal referido decorre do fato de que a lei trata de incriminar a conduta sem especificar a lesão que dela possa advir. Descreve, tão-só, a ação e o requisito normativo pertinente à prévia autorização legislativa. Isso permitiria, à primeira vista, afirmar, segundo os parâmetros do velho Direito Penal formalista, tratar-se de um crime de mera conduta. No entanto, já não é aceitável conceber a existência de delito sem que haja a produção de um resultado jurídico (CP, artigo 13, que exige resultado em todo delito), justamente porque nenhum crime pode exaurir-se no simples desvalor da ação.

Com efeito, o direito não serve para tutelar mesquinharia ou simplesmente condutas imorais, sobretudo o Direito Penal, que, na sua essência, tem caráter subsidiário, tutelando apenas as condutas mais desprezíveis.

Neste Prisma, Luiz Flávio Gomes (2004, p. 112-113), invoca o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos para nos explicar que:

O Direito Penal não serve para a tutela da moral, de funções governamentais, de uma ideologia, de uma religião etc.; sua missão é tutelar os bens jurídicos mais relevantes (vida, integridade física, patrimônio, liberdade individual, liberdade sexual etc.). É preciso que o bem jurídico-penal esteja contemplado na Constituição expressamente? Não. Fundamental é que o bem jurídico não conflite com o quadro axiológico constitucional, isto é, com os valores que a Constituição contempla.

Álvaro Mayrink da Costa (1992, p. 320-321) assinala que "só o perigo real ou concreto pode ser evento jurídico do crime podendo entender-se também como a potencialidade causal da ação".

Quanto à inconstitucionalidade da nova redação do artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro, tem-se que este é de perigo abstrato, e quanto aos crimes de perigo abstrato, Celso Delmanto (2007, p. 43) é direto:

Quanto aos crimes de perigo abstrato, entendemos que em um Estado Democrático de Direito são eles de questionável constitucionalidade, em face dos postulados constitucionais da intervenção mínima, da ofensividade e da proporcionalidade ou razoabilidade entre a conduta e a resposta penal (ínsitos ao conceito de substantive due process of law). Verifica-se, assim, que a mera subsunção do fato ao tipo penal – antijuricidade formal – não basta à caracterização devendo-se sempre indagar acerca da antijuricidade material, a qual exige efetiva lesão ou ameaça concreta de lesão ao bem juridicamente protegido, requisitos esses que constituem verdadeiro pressuposto para a caracterização do injusto penal.

No mesmo sentido é o posicionamento de Cezar Roberto Bitencourt (2004, p. 20):

são inconstitucionais todos os crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do direito penal de um estado democrático de direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bemjurídico determinado.

A redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro fere, ainda, o princípio da igualdade quando deixam encarceradas pessoas que não possui condições de pagar fiança, pois é sabido que no Direito Brasileiro a figura da igualdade vem da visão aristotélica, onde trata-se os iguais de forma idêntica e os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades.

O artigo do Código de Trânsito Brasileiro em análise cria uma fenda de desigualdade, diga-se, sem motivo, que o torna inconstitucional. Vejamos a seguinte hipótese:

Um médico que ganha cerca de R$ 8.000,00 (oito mil reais) mensais é preso dirigindo alcoolizado; ao chegar na delegacia, a fiança é arbitrada no valor de R$ 4.000,00 (quatro mil reais); em seguida o valor é pago – nota-se que o valor é metade da renda mensal auferida pelo agente. Em outra hipótese, se for preso um cortador de cana dirigindo alcoolizado, que recebe em média R$ 415,00 (quatrocentos e quinze reais) mensais e for arbitrada fiança de R$ 500,00 (quinhentos reais) este valor torna-se impossível de pagamento no momento do arbitramento. Logo o médico será liberto e o cortador de cana ficará preso.

Há uma desigualdade flagrante, visto que mesmo a fiança arbitrada ao médico ser 8 (oito) vezes o valor da fiança arbitrada ao cortador de cana, aquele tem capacidade financeira de efetuar o pagamento no momento, já este que lhe é arbitrado um valor inferior, em razão de sua hipossuficiência financeira, não há condições de arcar com o valor arbitrado.

Porém, muitos cogitam que há o instituto da liberdade provisória, mas, no entanto, na maioria das vezes este instituto não preenche a lacuna da desigualdade deixada pelo artigo 306, do CTB, pois até que se peça a Liberdade Provisória e que é expedido o Alvará de Soltura, levam-se mais de 05 (cinco) dias da data da prisão até a soltura, vislumbrando-se ainda mais a desigualdade, uma vez que no exemplo, um ser humano sai antes e o outro fica detido.

Na fatispécie, não há causa que justifique a segregação de uma pessoa que não possui condições financeiras de arcar com o valor da fiança e a liberdade de outro que pague o valor arbitrado em fiança, mesmo que este valor seja superior àquele que possui mais condições de arcar e menor com aquele que não possui condições de arcar.

Ademais, o procedimento para as pessoas que declararem hipossuficientes financeiramente deveria ser o mesmo do requerimento da justiça gratuita, assim, ao declarar hipossuficiente, deveria ter-se como paga a fiança e ser posto imediatamente o preso em liberdade.

No mais, vige no Brasil a presunção de inocência, no qual presume-se inocente até a condenação definitiva.

Assim, o crime cuja pena é de detenção, em última hipótese, se o agente for condenado, será em regime semi-aberto, tornando-se desnecessária sua prisão quando pego em flagrante, pois no exemplo do cortador de cana, certamente ficará preso mais de 07 (sete) dias até que seja julgado o pedido de liberdade provisória.

Além do mais, sete dias, em média, até que seja expedido Alvará de Soltura parece pouco para alguns, mas não é, pois a liberdade é o bem mais precioso que nós temos, depois da vida e, qualquer restrição a está, seja até mesmo um dia, não deve ser levado como período insignificante.

Novamente, vem a baila a afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, do devido processo legal, da proporcionalidade e da igualdade, bem como ao Estado Democrático de Direito, devendo tal dispositivo ser declarado inconstitucional.

E, para quem não vislumbra nenhuma força nos princípios, Celso Antônio Bandeira de Mello citado por Fernando Capez (2006, p. 8) menciona:

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. È a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa ingerência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

O Direito Penal é muito mais do que um instrumento opressivo em defesa do aparelho estatal. Exerce uma função de ordenação dos contatos sociais, estimulando práticas positivas e refreando as perniciosas e, por essa razão, não pode ser fruto de uma elucubração abstrata ou da necessidade de atender a momentâneos apelos demagógicos, mas, ao contrário, refletir, com método e ciência, o justo anseio social.

O Direito Penal não se presta a servir de instrumento exclusivo de garantia de funções do Direito Administrativo, mas continua a ser inferior e complementar à finalidade maior de tutela subsidiária de bens jurídicos.

Portanto, mesmo diante do desenvolvimento social atual e das tentações voltadas a novas incriminações, a existência de um bem jurídico e a demonstração de sua lesão ou colocação em perigo constituem, ainda, pressupostos indeclináveis do injusto penal. De forma mais direita: o bem jurídico ainda é irrenunciável, como núcleo negativo e crítico do Direito Penal, conferindo lhe sua missão.

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Autor: Alcemir da Silva Moraes


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