Explosão de Intolerância



O artigo do ex-governador de São Paulo vem causando indignação e repulsa entre a população ateísta brasileira pelo seu forte esbanjamento de intolerância e preconceito por demonstrações de puro desconhecimento da história mundial e da realidade religiosa brasileira. O senhor em questão (por pouco) não usou o velho estereótipo de "adoradores do diabo", mas insiste em dizer que nós descrentes somos hedonistas, arrogantes, materialistas no mau sentido, antropocêntricos e muitos outras desqualidades.

Para uma sociedade ainda tão apegada à religiosidade, e portanto suscetível a opiniões que corroborem que "só Jesus salva e quem não crê nele não presta", esforços destrutivos desse tipo vêm contribuindo para alimentar ódio e irracionalidade na relação da maioria das pessoas com quem não tem religião. Para quebrar tal agressão e deixar claro que nós ateus merecemos respeito, convém desmascarar cada ponto errôneo e calunioso levantado naquele texto e dar as devidas respostas, embora procurando não tornar recíproca a raiva transmitida pelo senhor Lembo.

Primeiro, o artigo chamou de "espectro" o processo de secularização, desmonte da cristandade e crescimento da irreligião – incluindo o ateísmo. Os dicionários não falam nada bem do verbete "espectro" no sentido que o senhor intolerante escreveu:

"Espectro" segundo o Houaiss eletrônico: 1. suposta aparição de um defunto, incorpórea, mas com sua aparência; fantasma. 2. evocação obsedante.

Segundo o Aurélio Século XXI: 1. Fantasma; 2. Figura imaterial, real ou imaginária que povoa o pensamento; sombra, fantasma; 3. Aparência vã de uma coisa; 4. Aquilo que constitui ameaça.

O crescimento do ateísmo foi denominado como um "fantasma", uma "ameaça", algo "obsedante". Mal vê ele que sua própria religião cristã, de sua oficialização como crença oficial de Roma até antes das revoluções incitadas pelo Iluminismo, portou-se de uma forma que tornaria suas acusações anti-ateístas meros xingamentos de "feio" e "bobo".

Mortes aos milhões, genocídios, torturas extremas, destruição de culturas pagãs em todo o mundo, perseguição de cientistas, atraso científico, imposição totalitária de dogmas... Mesmo as aulas de História do Ensino Médio já são suficientes para pôr a cristandade no banco dos réus. Ainda hoje, crimes de intolerância religiosa espalham-se em praticamente todos os países onde o cristianismo se faz presente com poderes políticos.

E o ateísmo ainda é que é o "espectro"? Cristãos geralmente não têm moral para acusar o ateísmo de malignidade.

Em seguida, exagera o ateísmo na Hungria, onde, em vez dos não comprovados 70% ditos pelo autor, é apenas uma porção de uma porcentagem que, segundo sites estatísticos, varia de 14,5% (Hungarian Central Statistical Office, 2001) a um máximo de 46% (Adherents.com) de pessoas sem religião. Teria sido de muito bom grado se Seu Lembo dissesse de onde tirou seu dado.

Respondendo a mais um impropério, interessa ressaltar que culpar o Iluminismo por incitar o antropocentrismo é desconhecer que foram, na verdade, cristãos como René Descartes que inseriram o homem no centro do universo, mais de um século antes do primeiro raiar de luz da Razão iluminista, precedidos pela própria ideia cristã de que o ser humano é imagem e semelhança da divindade governante de todo o universo. Quer antropocentrismo mais óbvio que essa arrogância e soberba de raízes religiosas?

Quanto ao Marxismo, convém perguntar: o que o faz achar que acusar a religião de manipulação de massas (disse Karl Marx: "A religião é o ópio do povo.") é necessariamente um esforço de pôr o humano em posição dominante perante todo o mundo natural? Não seria de bom grado inserir ao menos uma citação de Karl Marx afirmando que o humano é o centro de todo o universo, o que corroboraria sua alegação?

Retorno então para as frases "Um combate contínuo contra a figura de Deus. Certamente, originário do pensamento iluminista" e reflito o ataque: o que mais fez o cristianismo durante o Baixo Império Romano e a Alta Idade Média além de atacar ferozmente as figuras das divindades pagãs?

Vale lembrar também que a devastação das civilizações pré-colombianas pelos católicos espanhóis no século 16 consistiu, entre outras atrocidades, em ultrajes imperdoáveis às divindades locais, de forma extremamente mais hedionda do que a suposta agressividade da contestação racional e científica da mitologia de Jesus pelos ateus e agnósticos. Quer um ataque pior contra uma figura divina do que derreter uma estátua sagrada de um deus para transformá-la em moedas, ação tão comum na invasão dos "Spaniards"?

Parto para o trecho "Com o passar dos séculos e o surgimento do consumismo sem limites, o ateísmo ingressou na consciência das pessoas comuns". Mais uma "informação" para lá de distorcida, quando consideramos que o consumismo veio como princípio do Capitalismo, tendo sido este, segundo Max Weber, decisivamente impulsionado em seus berços, a Europa e os Estados Unidos, pela ética protestante. Esta, por sinal, longinquamente distante do pensamento ateísta.

Além disso, se estudarmos com seriedade, ainda que um pouco, perceberemos que não foi o consumismo que impulsionou a secularização e o desmascaramento da ilusão da crença para parcelas importantes da população europeia, mas sim a Razão, os avanços científicos, o pensamento crítico legalizado pelo advento dos Estados laicos, a denúncia das atrocidades históricas do cristianismo, a descoberta de absurdos e contradições na mitologia judaico-cristã através da leitura da Bíblia sob um olhar racional, munido de senso crítico e livre de inspirações passionais.

É verdade que não importa mais para nós a aproximação com uma entidade que simplesmente não existe e foi usada por séculos para as mais diversas atrocidades oficiais e crimes contra a humanidade. Mas o que isso tem a ver com "consumir e aparecer"? Convido o senhor Lembo a observar, por um pouco que seja, os Estados Unidos, país lotado de cristãos ferrenhos que, adivinhe, vêm fazendo justamente o que ele vem imputando aos ateus: consumindo e aparecendo! E o meio ambiente e as sociedades mais pobres do mundo vêm sofrendo muito com isso.

Aliás, não só os Estados Unidos, como também as metrópoles do próprio Brasil.Sugiro ao senhor preconceituoso que analise o comportamento da maioria da população. Que vá a alguns shoppings, esses templos do hábito de "consumir e aparecer" e faça uma pesquisa com uma quantia relevante de seus frequentadores, então terá uma conclusão que lhe será aterradora: uma imensa maioria dessa população crê em Deus e rejeita o ateísmo como alternativa de pensamento e visão de mundo.

Outra informação exposta com a qual eu concordo, mas não vejo absolutamente mal nenhum, é que somos senhores de nós mesmos e não aceitamos nada além da História. Que mal há em se ter um senso de justiça, ética, compaixão, solidariedade e outros valores positivos sem precisar de uma divindade que diga que isso é certo?

Onde está o erro em considerar que é muito melhor fazer o bem e contribuir para um mundo melhor por altruísmo e senso natural de dignidade e bondade do que promover boas ações interessado em recompensas de bênçãos terrenas e morada num paraíso celestial ou simplesmente porque seu deus mandou fazer?

E, fora a História e a Ciência, o que seria bom de aceitarmos? Mitologias? Contos fantásticos em que nem as pessoas nem seus valores evoluíram?

Quanto às universidades de fora da Europa que vêm experimentando o crescimento da irreligião, isso, muito diferente de algo negativo, é um avanço libertador. Representa a derrubada dos vieses, entraves e limites filosóficos impostos pela crença cristã ao desenvolvimento da ciência, a abertura das janelas acadêmicas ao livre pensamento e ao uso total das propriedades do pensamento racional-científico.

Se as elites intelectuais de nossas sociedades continuassem pensando como Claudio Lembo, destilando repulsa ao pensamento livre e desatrelado da imutabilidade da religião, as universidades ainda hoje seriam meros recintos de repetição de dogmas teológicos e de estudos científicos limitados e proibidos de suplantar antiquíssimas convenções. Anunciar ao mundo a descoberta de fatos naturais que contrariassem os dogmas cristãos continuaria a ser uma contravenção punida com a morte ou a prisão perpétua. Que o digam Giordano Bruno, Galileu Galilei e o temeroso Nicolau Copérnico.

Retornando a caminhada sobre a Rua do Preconceito pavimentada pelo ex-governador, observo um absurdo reducionismo no apontamento das causas da queda da religiosidade pelo Terceiro Mundo. Meu caro, não é simplesmente a injustiça social que está levando a isso, mas também o flagrante dos mais diversos absurdos perpetrados pela cristandade em todo lugar e outros motivos a serem ditos mais adiante.

Intolerância verbal quase generalizada – como a do senhor autor da "explosão" de verborragia preconceituosa –; extorsão de pessoas humildes e desamparadas – embora muito religiosas! – que não têm a quem recorrer; estelionato; associação a regimes ditatoriais de direita – que o digam a Argentina de Videla e o Chile de Pinochet, ditadores apoiados pela Igreja Católica –; crimes de ódio contra minorias não-cristãs – no caso do Brasil, espíritas e afrorreligiosos... É disso que uma porção crescente da população meridional vem fugindo, desertando, pondo-se em oposição.

Os outros motivos, que eu prometi acima citar, envolvem a já citada abertura de olhos de populações que vêm, aos pouquinhos, acordando do pesadelo do domínio cristão, da ilusão de que há um deus único zelando pela humanidade e um paraíso esperando por quem seguir fielmente o que a tão contraditória Bíblia não consegue ensinar. "Zelo" divino esse que vem falhando miseravelmente em casos como o desabamento do templo da Renascer em Cristo e tantos acidentes de trânsito envolvendo romeiros devotíssimos.

Relevo em seguida o trecho "Nota-se, pois, o encontro de duas vertentes nos países latino-americanos. Aquela que leva ao materialismo pelo excesso de consumo e de benesses e a outra que aponta para a carência dos bens mínimos para a sobrevivência." E pergunto: certo, mas o que tem a ver com a ainda pequena desconversão da população? Até onde eu sei, essa dualidade sempre existiu nas ex-colônias das antigas potências da Idade Moderna, havendo inclusive a presença de uma generosa quantidade de ferrenhos católicos, protestantes e judeus na elite que o que mais fazia era promover o comportamento materialista.

Que o digam os católicos escravocratas do Brasil Imperial, a cúpula maçônica e católica que dominava a política brasileira na mesma época – e nada fazia para reduzir a "carência dos bens mínimos para a sobrevivência" da grande maioria dos brasileiros – e os judeus e protestantes magnatas de multinacionais onipresentes em países como Brasil e México.

O trecho onde se fala do Brasil e se tenta forçosamente "protegê-lo" do avanço dos "ateus maus, perversos e imorais" é no mínimo de fazer rir, se não de fazer balançar a cabeça para os lados perante tamanho desconhecimento da história das religiões no país. Tenta o senhor ex-governador desesperadamente estender ao cristianismo das igrejas a miscigenação cultural que marca a sociedade brasileira quando a história nos revela aos ouvidos que sincretismo, influência de crenças estranhas, sempre foi um palavrão para o cristianismo no Brasil.

O autor erroneamente deixa a entender que as crenças cristãs aqui teriam absorvido elementos politeístas – incluam-se afrorreligiosos e indígenas –, quando um pouco de estudo nos revela que foi exatamente o contrário. Foram os candomblecistas e os indígenas que tiveram que, numa questão de vida ou morte, incorporar elementos cristãos em seus credos. Ou melhor, pôr uma roupagem cristã nas suas crenças tradicionais. O tal sincretismo foi uma via de mão única e sua adoção foi necessária para se evitar explosões de violência religiosa e até massacres.

Que o digam os negros que foram obrigados a trocar o nome dos orixás por santos católicos para preservar a existência de suas crenças. Os muitos indígenas que, convertidos à força, diziam "Areruya", sotaque indígena para Aleluia, para não enfrentar a fúria dos católicos portugueses. Todos aqueles que, ainda hoje, têm seus deuses insistentemente chamados de demônios e não podem sair na rua ostentando um fio de conta ou um colar de pentagrama sob pena de serem severamente hostilizados e taxados de satanistas, ímpios, servos do mal.

Convém falar também da imposição oficiosa do cristianismo nas instituições públicas que deveriam servir a brasileiros de todas as crenças e descrenças. Tribunais e câmaras legislativas com crucifixos católicos são tão comuns quanto lâmpadas fluorescentes de fabricação chinesa. Denominações evangélicas angariam importantes posições políticas, possuindo inclusive uma bancada no Congresso Nacional, e esforçam-se em fazer a manutenção da imposição da crença em Jesus e atravancar importantemente debates sobre questões como aborto, eutanásia humana e células-tronco embrionárias.

Contrasta com essa hegemonia cristã a ausência praticamente total de representação política para outras religiões. Nada de pentagramas, despachos, Om hindus, estrelas-de-davi, luas crescentes, não há nada que simbolize outras religiões nas repartições públicas.

Cadê o "sincretismo", seu Lembo?

Voltando um pouco, aponto para a afirmação dele de que "a crença no divino é inerente à formação brasileira". Grande coisa. Isso não quer dizer absolutamente nada de necessariamente positivo ou negativo. A religiosidade, o apego profundo a uma divindade suprema também foram algo de raízes extremamente profundas na Europa medieval e no mundo islâmico, e nem por isso aquelas regiões experimentaram harmonia social, respeito aos direitos humanos, zelo sacralizado ao meio ambiente. Muito pelo contrário, pelo que a História nos ensinou.

Mais uma afirmação muito contestável é a de que "a natureza é traço marcante destes cultos. Ela se mostra por inteiro na forma de viver dos brasileiros. Convivem com natureza em seus vários aspectos. A exibição desinibida dos corpos é um deles." Bonita é essa contraditória nostalgia que Sua Ex-Excelência tem da época anterior a quando os europeus chegaram e, em nome de Deus, puseram abaixo esse naturalismo religioso.

Há outro ponto questionável nesse ponto de vista: se é verdade que a veneração da natureza oriunda das crenças indígenas foi incorporada à cultura contemporânea brasileira, por que, em vez de demonstrações generalizadas de respeito ao meio ambiente, estamos vendo a dizimação das florestas, o extermínio de animais para os mais variados interesses humanos e o crescimento da poluição, além de uma despreocupação quase generalizada de se cuidar do ambiente onde se vive?

Cadê o respeito pela natureza por parte dessa vasta população teísta que, contrariando as impressões do autor anti-ateu, abraçou apaixonadamente o consumismo e a ambição por acúmulo de riqueza material e vem consequentemente proporcionando tamanho caos ambiental?

O senhor Lembo diz que "a militância dos descrentes não terá êxito entre os brasileiros". Então ele marcou um inesquecível gol contra, uma vez que sua intolerância, seu preconceito, ao contrário do que ele almeja, vem despertando a insatisfação de cada vez mais pessoas com os tais valores religiosos, e é esse um dos motivos que vêm fazendo tantas pessoas minimamente instruídas se desiludirem com a religião.

A posição reacionária e intolerante do cristianismo em relação a outras formas de ver o mundo, a outras crenças, à descrença religiosa, aos avanços científicos e à gradual afirmação dos homossexuais que estão perdendo o medo de sair do armário e os crimes cometidos pela cúpula espiritual da cristandade, como o estelionato pentecostal e a incitação ao ódio contra não-cristãos, somados ao avanço do livre pensamento nas instituições de ensino mais respeitáveis, vêm encorajando crescentemente as pessoas a abandonarem a submissão a um deus que não só permite, como encoraja tudo isso de acordo com a Bíblia.

Afirma em seguida que compartilhar a descrença é própria de gentes "frustradas e deprimidas" e implica pensamentos niilistas. Quero ver ele dizer isso a ateus e agnósticos como Chico Buarque, Oscar Niemeyer, José Saramago, Dráuzio Varella, Richard Dawkins, Bill Gates, Woody Allen, Jodie Foster, Jack Nicholson, Keanu Reeves e muitos outros que vêm contrariando essa opinião profundamente preconceituosa.

Lembremos também de grandes nomes que já morreram e não lembravam em nada esse ridículo estereótipo negativo, como Paulo Autran, Jorge Amado, Paulo Francis, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carl Sagan, Albert Einstein, Charles Darwin, Douglas Adams, Bruce Lee e tantos outros que deram contribuições inestimáveis ao mundo e amavam a vida sem precisar de "referências" imaginárias.

Claudio Lembo por acaso conhece a biografia de todos os citados para considerá-los "frustrados e deprimidos"? Ele já fez uma pesquisa com ateus e agnósticos para concluir que são desprovidos de valores?

Ao contrário do que esse senhor que destilou intolerância, preconceito e obtusidade no seu artigo escreveu para tentar convencer de que o ateísmo é maligno, nós descrentes temos muitos bons valores e muito amor pela vida, pela natureza, muito respeito ao próximo que nos respeita. E não precisamos de divindades que nos digam o que fazer e que valores adotar como bons.

Atitudes como a desse autor extremamente preconceituoso nos faz ver como ser religioso pode induzir alguém a falar tantos impropérios e adotar como algo bom valores profundamente nocivos e destrutivos. Seu Lembo, se o senhor quiser desfrutar do lado bom de sua crença, que desfrute, não temos nada a ver com isso. Mas saiba que sair agredindo quem não adota crenças religiosas o faz muito mais repulsivo e nocivo ao mundo e aos valores humanos do que a pretensa imagem do ateísmo e dos ateus que o senhor tenta passar.


Autor: Robson Fernando


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