Historiador: Herói ou Vilão?



A função do profissional de História é a de investigar as ações humanas que se desenvolvem ao longo do tempo, atuando criticamente diante do seu objetivo de estudo. Compreendendo e interpretando os fatos históricos para descobrir sua importância, conseqüências e significados. Há muito que a História está, no Brasil, confinada à prisão das escolas e universidades. Encontra-se, pois, afastada de sua principal finalidade: levar o ser humano a refletir sobre as formas de vida e de organização social em todos os tempos e espaços, procurando compreender e explicar suas causas e implicações. E uma vez que presente e passado estão indissociavelmente ligados na História, o ensino e o estudo dessa disciplina se tornam imprescindíveis para o perfeito entendimento dos tempos modernos.

Sobre as concepções de história, Jacques Le Goff, que marcou a historiografia contemporânea com as suas idéias e com as suas obras, explica o trabalho do historiador segundo as relações entre esses utensílios da reflexão histórica que são a memória e as oposições passado/presente, antigo/moderno, progresso/reação, numa perspectiva que é simultaneamente uma história da história e das teorias da história e um ensaio de metodologia histórica através de alguns conceitos chave. uma busca das continuidades e das similitudes na evolução do espírito histórico, da Antiguidade aos nossos dias, no conjunto das civilizações, incluindo aquelas das sociedades que resultaram mais da etnologia do que da história, mas também das mutações e das rupturas que constituíram tantas modernidades sucessivas. Talvez, queira ajudar os historiadores e o público a melhor compreenderem o trabalho histórico, a melhor pensar a história, a melhor "fazer a história".

Quantos livros didáticos de História, principalmente os publicados na década de 70, que abrimos e ao lermos nos perguntamos sobre determinado fato: — Será que eles namoravam? — Existiam crianças no seu meio? — Compareciam a festas? Sonhavam?... Correspondem a um relato cansativo de guerras, ascensão e derrocada de soberanos, exaltação de heróis... Esta é uma leitura ao meu ver Positivista da História que faz do leitor um mero reprodutor dos fatos, com o devido cuidado cronológico, sem perceber o seu papel enquanto "sujeito e objeto da História" (Barbosa e Mangabeira, 1982,11ª ed.). Na Antigüidade, com os gregos e os romanos a glorificação dos feitos militares abria perspectiva para a marcha expansionista do Estado, durante a Idade Média a História faz parte do "plano de Deus", com uma visão maniqueísta é sucumbida pela concepção teológica do período, com as Cruzadas há um deslocamento para o plano  político, que perdura até os nossos dias.

"Homem de poder ao lado do poder, o historiador tece as continuidades do espaço político que organiza a nova sociedade. Essa função do historiador, a reprodução do poder, vai perdurar durante muito tempo, até o começo do século XX, adaptando-se aos diversos regimes políticos." (Dosse,1994,p.254)

Nos meados do século XIX conformam-se as orientações teóricas Marxista, partindo do materialismo histórico dialético, compõe leis de análise da sociedade, baseadas na organização Capitalista do período contemporâneo, a explicação é economicista, inclusive para as civilizações da Antigüidade. Resistindo  a mera explicação política dos fatos históricos e ampliando as análises econômicas surge o movimento dos Annales, que lança sua revista em 15 de janeiro de 1929, intitulada Annales d'histoire économique et sociale, tendo como fundadores os historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre. Seus textos correspondiam aos períodos da História Antiga e Medieval, avaliando, seguindo o anunciado no título, questões econômicas, sociais e do quotidiano. A partir deste movimento surge a corrente teórica do estudo da História denominada Nova História ou História Nova. A cronologia tradicional (séculos, decênios...), tão enaltecida pelo Positivismo, não será relevante para as elaborações da História Nova, por outro lado, seu caráter humano será valorizado. Marc Bloch  afirmava ser a história  "ciência dos homens no seu  tempo", que a História pode "compreender o passado pelo presente" ."O  passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da história." ( Le Goff, 1990,p.24)

O seguidor de Bloch e Febvre, Fernand Braudel, por sua vez, incorpora uma outra forma de divisão do tempo histórico denominando períodos de curta duração aqueles vinculados a determinadas conjunturas sociais, as conjunturas enquanto sínteses de múltiplos momentos de caráter econômico, político, social, cultural, sendo a continuidade temporal destas sínteses denominadas de períodos de longa duração, ou seja, estruturas.

"Meu grande problema, o único problema a resolver, é demonstrar que o tempo avança com diferentes velocidades."(Braudel in Burke, 1991, p.52) Sendo as estruturas passíveis de transformação, mesmo que de forma lenta, gradual, tardia em relação aos fatos de curta duração e as conjunturas estabelecidas. O pensamento humano faz parte desta "lentidão", as mudanças  na moral, costumes de uma determinada sociedade não acompanham o avanço tecnológico, as transformações na esfera do trabalho, pois as categorias comportamentais, regras de conduta são, na sua maioria, repassadas pela família, pela oralidade, sendo de lenta modificação. A História Nova propõe uma compreensão dos fatos históricos na sua totalidade, não restringindo fontes ou abordagens, ampliando as possibilidades de comprovações a partir de documentos, sendo estes devidamente catalogados (hoje com ajuda do computador) e questionados quanto a sua origem, contexto onde foram redigidos. "...ampliou-se à área dos documentos, que a história tradicional reduzia aos textos e aos produtos da arqueologia, uma arqueologia muitas vezes separada da História. Hoje os documentos chegam a abranger a palavra, o gesto. Constituem-se arquivos orais; são coletados etnotextos."( Le Goff, 1990, p.10)

A partir das décadas de 60 e 70 serão privilegiados estudos ligados a História das Mentalidades, assuntos marginalizados até então pela historiografia.

"... a história das mentalidades não se define somente pelo contato com as outras ciências humanas e pela emergência de um domínio repelido pela história tradicional. É também o lugar de encontro de exigências opostas que a dinâmica própria à pesquisa histórica atual força ao diálogo. Situa-se no ponto de junção do individual e do coletivo, do longo tempo e do quotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral"( Le Goff, 1976, p.71)

Estudos demográficos, métodos quantitativos na história cultural, abordagens antropológicas da História, narrativas, retorno à análise das esferas políticas, infância, morte, uma História Psicanalítica, imaginária... São alguns assuntos do campo de reflexão do período, que reafirmam a fragmentação da História Nova, entre os historiadores temos os franceses Le Goff, Àries, Delemau, Duby, Vovelle, De Certeau, Chartier... Esta geração influenciou os não franceses: Eric Hobsbawm, Paul Veyne, Peter Burke, Ciro Flamarion Cardoso (brasileiro)... Conformando outras frentes de investigação para a História, atribuindo outras funções? Interpretações: História-problema, História comparativa, História Psicológica, geo-história da longa duração, história serial, antropologia histórica. Ocorre uma renúncia da divisão marxista denominada infra-estrutura e superestrutura, sendo buscadas as representações históricas das realidades estudadas. Para Duby (1993) a História pode ser vista como um gênero literário, já que são construídos romances baseados em períodos históricos, Veyne  considera um romance na medida em que é feita de intrigas. Por outro lado, a História é também uma disciplina incorporada ao currículo, com uma prática pedagógica, utilização de recursos didáticos. A prática de sala de aula embasada nas elaborações teóricas da História Nova, relatam algumas experiências possíveis que identificam o aluno enquanto sujeito e objeto da História e não como uma mera "esponja" absorvendo o conteúdo.

O caráter ultrapassado desse tipo de abordagem da História aponta o exagero de alguns livros e concepções historiográficas em relação a esse aspecto. Devemos, contudo, olhar para a História como uma ciência em construção levando o homem a percepção de que ninguém pode fazer algo sozinho e não na visão de que os heróis, apesar do talento e da capacidade individual de muitos, são incapazes de sozinho fazer a História. Cabe ao historiador fazer o registro da História, mas cabe também a função de desmistificação dos mitos. Nesta tentativa constante de trazer para a atualidade a importância da História, pois cada historiador elabora as suas próprias questões em relação à História e essas dependem bastante da interpretação que cada historiador faz dela mesma.


Autor: Jades Daniel Nogalha


Artigos Relacionados


Função Do Historiador

O Resgate E A ValorizaÇÃo Da ContaÇÃo De HistÓria

Da Poética Libertadora

HistÓria E Verdade

MemÓria Coletiva E HistÓria CientÍfica

Livro Aberto

Pensamenteando...