Indiciarismo - o triunfo da historiografia ginzburgiana sobre o relativismo histórico do discurso pós-modernista



Carlo Ginzburg se caracteriza como um dos mais ferrenhos críticos ao pós-modernismo e ao relativismo cultural, ressaltando que o relativismo cultural é um tipo de "preguiça intelectual, moral e de reconhecimento", e enquadrando o "pós-modernismo" como um "positivismo as avessas", pois este, ao postular que a "verdade não existe ou é relativa", acaba por proclamar uma espécie de "verdade absoluta": que a verdade é relativa.

Rechaçando o discurso relativista de que a História se resume a narrativa, a qual, por sua vez, se resume ao discurso, o que significa que um texto histórico não é capaz de fornecer a realidade dos fatos, mas apenas realidades discursivas que se separam do real pelo imenso abismo denominado "linguagem", Ginzburg propõe novas abordagens.

Segundo o ponto de vista relativista, a narrativa histórica "forja" o real sobre o discurso, sendo que todo discurso historiográfico se articula no real perdido (passado), o qual é reintroduzido em um texto fechado, como "relíquia". Assim, a realidade "se exila na linguagem", como dizia outro proponente do relativismo histórico, Michel de Certeau (1982, p. 51).

Isso significa que decifrar a "verdade" que supostamente habita no corpo do documento histórico mediante a determinação acurada do significado das palavras e expressões usadas é uma tarefa fadada ao fracasso. No máximo, o que se consegue eliciar disso é a forma subjetiva com que o autor do documento experimentou o fato relatado ou a forma idiossincrática com que quis interpretá-lo ao descrevê-lo. A análise do documento histórico é a análise da subjetividade da pessoa do autor do documento, e não uma análise objetiva da realidade dos fatos históricos ocorridos.

Ginzburg vê em Nietzsche o precursor dessa abordagem relativista da história. A crítica nietzscheana da verdade, e mais especificamente da linguagem, é a base das teses céticas sobre o conhecimento histórico:

[para Nietzsche] a pretensão do homem de conhecer a verdade, além de ser efêmera, é também ilusória. Ela tem as suas raízes na regularidade da linguagem, mas, "nas palavras, [segundo Nietzsche] a verdade nunca tem importância e nem mesmo expressão adequada. Caso contrário, com efeito, não existiriam tantas línguas". (GINZBURG, 2002, p. 23):

Desse modo, a incapacidade das palavras de oferecem uma "expressão adequada" da verdade e da realidade rechaçaria toda a possibilidade de conhecimento. Essa incapacidade, característica intrínseca e inexorável da linguagem, destituiria a razão de ser de qualquer tentativa de expressar a realidade com palavras: "[Para Nietzsche existe um] abismo que separa as palavras e coisas: [por isso] a linguagem não pode dar uma imagem adequada da realidade" (2002, p. 28),

As origens da aversão nietzscheanas às palavras e a linguagem remontam aos seus estudos históricos sobre o Novo Testamento bíblico.

Nietzsche declarou que o seu antigo interesse pela teologia estava vinculado exclusivamente ao "aspecto filológico da crítica aos Evangelhos e da pesquisa das fontes neo-testamentárias". [...] [Nietzsche disse:] "Na época eu imaginava ainda que a história e a pesquisa histórica pudessem dar uma resposta direta a certas questões religiosas e filosóficas" (2002, p. 27).

De acordo com Ginzburg, foi a decepção de Nietzsche para com o cristianismo que fomentou seu interesse na crítica da linguagem. Essa interpretação faz todo sentido, haja vista que Nietzsche afirmara que: "Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...".

Ginzburg também demonstra que a aversão nitzscheana à linguagem é derivada da própria noção teológica existente no Evangelho de João 1.1: "No princípio era o Verbo [Logos]...".

Nietzsche havia baseado suas críticas à linguagem no livro de von Humboldt, que comenta que "a linguagem é espírito". No entanto, esse comentário remete ao pensamento religioso de Lutero sobre o "Verbo de Deus", Jesus Cristo, de modo que o espírito identificado com linguagem nada mais é que o Espírito Santo.

Lutero dizia: "os retóricos mundanos se ufanam de dispor as palavras de tal modo que dão a impressão de comunicar e tornar visível a própria coisa: essa é mesmo a característica de Paulo, isto é: do Espírito Santo". (p. 31).

Para Nietzsche, tanto os retóricos, ao usarem as palavras para passar a impressão de se estar comunicando a realidade, como os cristãos, que usam o Espírito Santo para transmitir "verdades eternas" de um mundo metafísico, não comunicam nada mais que ilusões.

Quando Lutero afirma que própria redenção humana, feita pó Cristo, é entendida graças a um tropo, a metáfora, Nietzsche proclama sua aversão a verdade contida nas palavras:

O que é a verdade? Um exército móbil de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo: uma suma de relações humanas que foram reforçadas poética e retoricamente, que foram deslocadas e embelezadas e que, após um longo uso, parecem a um dado povo, sólidas, canônicas e vinculatórias [...] o verdadeiro significa servir-se das metáforas usuais. (apud Ginzburg, 2002, p. 24).

De acordo com Ginzburg, a hostilidade de Nietzsche ao cristianismo nasce velada nessa frase, em sua crítica a verdade, reduzida a linguagem.

Ginzburg (2002, p. 31) também comenta que "o Verbo que é verdade, o Verbo mediante o qual tudo o que existe se criou, o Verbo que se comunica por meio de tropos retóricos: estes temas foram recuperados e desviados por Nietzsche para uma direção radicalmente cética".

Por isso, sua aversão de Nietzsche as "palavras" (logos) reflete sua aversão ao próprio cristianismo e em especial a figura de Jesus – que foi chamado de "Logos", ou "Palavra", no Evangelho de João.

No entanto, a crítica à linguagem como representação da realidade já estava sendo discutida bem antes de Nietzsche por outros filósofos, inclusive por iluministas.

No século XVIII, o filosofo escocês David Hume, no desenvolvimento de sua idéia da Causalidade, que desmoronou o argumento da "Primeira-Causa" da existência de Deus, criticou veementemente um dos pilares das metafísicas racionalistas vigentes de então: o principio da conexão necessária. Segundo esta crítica, se, por exemplo, toma-se o juízo causal "a pedra esquenta porque os raios de sol incidem sobre ela", constata-se que a primeira e a última partes ("a pedra esquenta" e "os raios de sol incidem sobre ela") são duas inquestionáveis impressões sensíveis, uma tátil e outra visual. Porém, constatou ele, a vinculação expressa na palavra "porque" não possui base alguma no mundo sensível. Qual seria a sua origem então?

De acordo com Hume, as relações de causa-efeito possuem uma natureza puramente subjetiva, sendo que o fundamento da mesma se encontra no sentimento de crença, algo muito diferente dos processos intelectuais da inferência lógica. Segundo Hume, "a causalidade não é mais do que uma crença baseada na ação do hábito sobre a imaginação". Mal sabia Hume, ao adentrar ainda mais no terreno filosófico das idéias, que uma possível explicação para tal fenômeno estaria nas relações existentes entre linguagem e psicologia humana, mais especificadamente nos modelos de implicação e pressuposição lingüística, sendo que a palavra "porque" se caracteriza linguisticamente como um conector de implicação causal.

Nesse contexto, palavras como "porque", "quando", "e", "enquanto", entre outras, podem ser caracterizadas como recursos que a humanidade criou para agilizar a comunicação e, dentro desse contexto como parte daquilo que Hume considerou como "frutos da imaginação humana". Tais palavras não possuem objeto análogo algum com nada que exista no mundo real. No entanto, "passam a ilusão" de que os objetos dos quais se referem estão relacionados um ao outro.

Trazendo esse raciocínio para o campo histórico, os relativistas apregoam que a narrativa histórica "forja" o real sobre o discurso, sendo que todo discurso historiográfico se articula no real perdido (passado), o qual é reintroduzido em um texto fechado, como "relíquia". Assim, a realidade "se exila na linguagem" (CERTEAU, 1982, p. 51).

Sendo que a linguagem não pode dar uma imagem adequada da realidade, não existiria diferença entre uma narrativa histórica e uma narrativa de ficção.

Ginzburg (2008 [online]), em sua entrevista a Euro Maganize, rejeita essa tentativa de reduzir a história à narrativa e o relato histórico ao relato fictício:

O fato de que uma escrita histórica às vezes se desenrola até uma ficção e que, mais ainda, ela seguidamente baseia-se em modelos literários, não deveria nos surpreender. Uma aproximação mais desafiadora – tanto para a história quanto para a literatura – é partir do fato que ambas disciplinas dividem uma obrigação para com a verdade e ver como esta relação tem sido feita em épocas diferentes. Eu considero o modernismo literário, antes de mais nada, como uma tentativa de descobrir novas formas de verdade, incluindo o plano formal. Neste aspecto ele é totalmente relevante para mim como historiador.

Desse modo, ainda que aceitemos a idéia de que "a realidade esteja exilada na linguagem, Ginzburg comenta que "Cada obra literária – seja um texto ficcional ou histórico – torna a realidade visível em sua própria maneira, transmite sua visão de realidade. Poderia ser dito que formas lingüísticas específicas são relacionadas a formas específicas de verdade".

Enquanto os relativistas afirmam que o conhecimento da realidade é impossível, pois a realidade objetiva é inacessível aos seres humanos, Ginzburg afirma que ainda assim o ser humano é capaz de decifrar essa realidade: "Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem decifra-la" (Sinais, p. ?).

De acordo com Ginzburg (2002, p. 44): "as fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes".

Se por um lado o positivismo via nas fontes históricas um portal para a realidade objetiva dos fatos, no outro extremo o relativismo se apresenta com a concepção de que as fontes históricas obstruem o caminho para a realidade objetiva por causa da natureza subjetiva, narrativa e discursiva dessas fontes. Por isso, Ginzburg (2002, p. 45) afirma que "o conhecimento (mesmo o conhecimento histórico) é possível".

As "raízes" do Paradigma Indiciário

Entendemos o foco metodológico de Ginzburg nos "sinais" e nos "indícios" não apenas como uma forma de contrapor o relativismo pós-modernista em História, mas também como uma forma de advertência a respeito da necessidade de uma mudança epistemológica tanto no campo do saber historiográfico como no próprio conceito de ciência, o qual precisa ser redefinido.

Para isso, Ginzburg enfatiza não apenas a necessidade de uma análise minuciosa de cada detalhe, chamados "sinais", mas também põe em prática essa idéia em todas as suas pesquisas. Frequentemente, tais detalhes mínimos são os fatos mais negligenciáveis na pesquisa. Em contrapartida, portam as respostas mais abrangentes.

As bases da prática indiciária são bastante antigas, antecedendo, inclusive, a própria criação dos paradigmas científicos. Na Pré-História, os homens se empenhavam na decifração do mundo e deles mesmos a partir de indícios, como na caça, na pesca e noutras práticas de sobrevivência, buscando retirar de detalhes uma realidade complexa. O grande mérito de Ginzburg é ressaltar que a análise minuciosa dos "sinais" esteve presente desde os primórdios da história humana.

No ensaio intitulado "Raízes de um Paradigma Indiciário", Ginzburg aponta as características comuns de três personagens históricos, que foram os principais contribuintes para o fomento de métodos de foco indiciário no campo do conhecimento no mundo contemporâneo: Freud, Morelli e Conan Doyle. Morelli aperfeiçoou a análise de quadros de artes ao observar as características mais negligenciáveis como, detalhes na orelha e detalhes nos dedos, ao invés de observar os quadros através de características óbvias de cada autor. Com esse procedimento, conseguiu identificar falsificações e peculiaridades antes desconhecidas.

Freud, por sua vez, introduziu na psicanálise elementos analíticos bastante parecidos com os de Morelli, baseando-se na idéia de que poderia fazer suposições sobre o indivíduo mediante a observação de suas atitudes inconscientes. Por último, Conan Doyle, ao dar vida ao seu personagem Sherlock Holmes, apresenta diversos exemplos em seus romances policiais da demonstração desse paradigma, ao enfatizar que a chave para a descoberta do crime complexos reside na análise minuciosa de pistas que passariam desapercebidas aos olhos comuns.

Desse modo, Ginzburg traça os elementos comuns desses três indivíduos: "Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes) signos pictóricos (no caso de Morelli)".

Ginzburg revela que, enquanto o paradigma galileano (predominante nas ciências hoje chamadas de exatas) se fundamenta na quantificação e repetibilidade dos fenômenos, o paradigma indiciário se fundamenta na qualificação e na individualidade dos fenômenos.

Fontes:

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Trad. de Maria de L. Menezes; rev. técnica [de] Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

GINZBURG, Carlo C. No lado negro da história. Disponível em: < http://www.eurozine.com/articles/2005-07-20-ginzburg-pt.html > Acesso: 14 dez. 2008.

GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GINZBURG, Carlo. "Sinais: raízes de um paradigma indiciário" In: Mitos, emblemas, sinais:. Morfologia e História. São Paulo:Companhia das Letras, 1989.


Autor: Francisco Chagas Vieira Lima Júnior


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