Apontamentos as representações do mito da Ave Fênix: indícios na Historiografia antiga, no imaginário na Antiguidade oriental e clássica, nas Escrituras Hebraicas e no Cristianismo antigo



A mais antiga referência a ave mitológica Fênix, vem de textos antigos que datam de mais de quatro mil anos. Os Textos das Pirâmides, que se constituem os mais antigos textos do Egito, gravados nas paredes internas das pirâmides da 5ª e 6ª dinastias (2400-2200 aprox.) fazem alusão a ave mitológica Fênix, chamada de "Benou":

"Ó Atum-Khepri, culminaste no montículo, tu te ergueste como a betila no palácio da Fênix, em Heliópolis"[1].

Nesse trecho, há um jogo de palavras entre betila (ben-ben) e Fênix (benou). A betila era uma pedra sagrada de forma piramidal que simboliza o montículo primordial que emergiu das águas do caos na criação do mundo. A Fênix, desse modo, estaria relacionada não somente à criação do universo, mas também a água, segundo os antigos egípcios. Tal associação deve-se às enchentes do rio Nilo, que eram símbolo do caos primordial e da criação. Por isso, a ave, que recebia o nome do Benou, se relacionava elementos que o vinculavam à regeneração e a vida – e, por conseguinte, à Ressurreição.

Para os egípcios, a alma dos mortos abandonava o corpo e aguardava o dia de sua ressurreição. Mas para isso, eram necessário que se realizassem determinados ritos e cerimônias, para que o defunto alcançasse a natureza do Fênix e renascesse para uma nova vida.

Por outro lado, a associação dessa ave ao Sol era inegável. A cidade egípcia de "Junu" (também chamada de "Om" pela Bíblia) foi chamada pelos gregos de "Heliópolis", que significa "cidade do Sol", pelo fato de que nessa cidade eram erigidos monumentos era honrar o deus-sol Rá e outros cultos solares. Por esse motivo, o elemento fogo se tornou tão característico dessa ave.

Praticamente todos os comentaristas gregos e latinos que fizeram alusão a Fênix, jamais deixaram de acrescentar que esta ave, ou pelo menos sua mitologia, procedia do Egito e, mais especificamente, do templo que estava situado em Heliópolis. De fato, essa tradição foi transmitida a partir dos egípcios aos gregos e daí ao mundo latino.

Contrabalanceando as inúmeras referências a essa ave com seu caráter tipicamente mitológico, não se pode determinar ao certo se essa ave é inteiramente mitológica ou se esse mito possui algum fundo factual[2]. O fato é que a lenda dessa ave rapidamente chamou a atenção de outros povos, inclusive dos gregos, incluindo nessa lista historiadores.

O historiador grego Heródoto[3], por exemplo, não deixa de ficar fascinado pelas notícias sobre essa ave que ele mesmo tivera em suas viagens, a descrevendo da seguinte forma:

Existe outro pássaro sagrado, também, cujo nome é fénix. Eu mesmo nunca o vi, apenas figuras dele. O pássaro raramente vem ao Egito, uma vez a cada cinco séculos, como diz o povo de Heliópolis. É dito que a fénix vem quando seu pai morre. Se o retrato mostra verdadeiramente seu tamanho e aparência, sua plumagem é em parte dourado e em parte vermelho. É parecido com uma águia em sua forma e tamanho. O que dizem que este pássaro é capaz de fazer é incrível para mim. Voa da Árabia para o templo de Hélio (o Sol), dizem, ele encerra seu pai em um ovo de mirra e enterra-o no templo de Hélio. Isto é como dizem: primeiramente molda um ovo de mirra tão pesado quanto pode carregar, então abre cavidades no ovo e coloca os restos de seu pai nele, selando o ovo. E dizem, ele encerra o ovo no templo do Sol no Egito. Isto é o que se diz que este pássaro faz.

Esse relato de Heródoto deixa clara a natureza originalmente oral do que se sabia e que se entendia pela Fênix. Eram histórias passadas de boca a boca e transmitidas por ser uma lenda maravilhosa e admirável.Também deixa clara a exitação desse historiador ao confirmar essa lenda como certa. No entanto, a mitologia clássica, a ave Fênix era considerada como algo mais que um mito poético ou uma ingênua lenda inventada e aperfeiçoada pelo imaginário popular; o imaginário da Fênix e toda sua mitologia estavam arraigados no subconsciente coletivo, rompendo as fronteiras geográficas e tornando-se um mito universal nascido do vetor mais de uma tradição egípcia, mas que também possui manifestações de incrível similitude na Índia e China.

Tacido[4], historiador romano, por exemplo, mesmo admitindo a existência de elementos fabulosos nas histórias sobre a Fênix lenda, endossa o caráter "histórico" dessa lenda:

No consulado de Paulo Fábio e L. Vitélio, depois de um longo decurso de anos, apareceu no Egito a fênix, maravilha que foi matéria para doutas dissertações dos naturais e dos Gregos da época. Sobre alguns pontos são todos acordes, sobre outros falam com incerteza, como vou contar, pois vale a pena saber. Essa ave é consagrada ao sol, e pela forma e natureza das plumas é diferente de qualquer outras: nisto concordam os que a descreveram; mas a respeito do período de ano de seu reaparecimento variam as opiniões. Ficam geralmente o ciclo de quinhentos anos, e alguns pretendem que seja de mil quinhentos e sessenta e um, pois que as primeiras foram vistas nos reinados de Sesósides, de Amásis e mais tarde no de Ptolomeu, terceiro dos reis macedônios, tendo elas voado para a cidade de Heliópolis, com grande acompanhamento de aves, admiradas de sua estranha figura. Não há certeza, porém nos fatos da antiguidade: entre Ptolomeu e Tibério, decorreram menos de duzentos e cinqüenta anos; e por isso alguns pensaram que não era esta a verdadeira fênix, nem procedente da Arábia, nem semelhante às de que rezam as antigas memórias. Portanto, conforme a tradição, quando, completo o número de anos, se avizinha a morte, a fênix faz em sua terra um ninho, que ela fecunda, e donde nascerá um filhote. Apenas cresce este, seu primeiro cuidado é sepultar o pai. Não o faz, porém, de qualquer maneira, mas, tomando certa quantidade de mirra e experimentando suas forças, quando se acha capaz de com o peso vencer a viagem, carrega o corpo do pai para o altar do sol e ali o queima. Tudo isto, entretanto, incerto e aumentado de fábulas, mas não se duvida de que às vezes esta ave é vista no Egito.

A Fênix é descrita por muitos autores clássicos com uma incrível precisão, ainda que as descrições não sejam completamente coincidentes. Entretanto, uma série de características são comuns. Praticamente todos coincidem, por exemplo, nos brilhos desprendidos pelo corpo da ave e sua plumagem, que admitem ser da cor de ouro avermelhado.

Apesar da nítida associação existente entre a Fênix e a cidade de Heliopolis, os autores antigos sabiam que esta ave não procedia do Egito, e jamais entraram em acordo sobre verdadeira morada deste ave. Para Tácito e Heródoto, seu lugar de residência é a Arábia; os poetas Ovidio[5] e Marcial a situam em Assíria. Arístides e Ausonio, por outro lado, afirmam ser essa ave procedente da Índia.

Apolônio de Tiana, na narrativa de Filóstrato[6], relaciona o mito da ave Fênix aos hindus da seguinte forma:

E a fénix, ele disse, é o pássaro que visita o Egito a cada cinco séculos, mas no resto do tempo ela voa até a Índia; e lá podem ser visto os raios de luz solar que brilham como ouro, em tamanho e aparência assemelha-se a uma águia; e senta-se em um ninho; que é feito por ele nas primaveras do Nilo. A história do Aigyptos sobre ele é testificada pelos indianos também, mas os últimos adicionam um toque a história, que a fénix enquanto é consumida pelo fogo em seu ninho canta canções de funeral para si.

De acordo com autores latinos, a Fênix está associada a uma ave solar hindu chamada "Cátedro", cujo canto se equipara ao da Fênix. Pousada no alto de uma árvore, sua musicalidade é tão alta e clara que se escuta do bosque inteiro. Na China antiga, foi inventado o "cheng", instrumento musical em forma de Fênix, na tentativa de reproduzir o canto da ave.

Seja como for, tais opiniões divergentes mostram o quando a lenda da ave Fênix estava difundida no mundo antigo, e que para os antigos não havia outro animal nem ave igual a Fênix. Essa mitologia, por sua vez, iria, de igual modo, influenciar tanto o imaginário judaico quanto o imaginário cristão.

A ave Fênix na mitologia hebraica

As Escrituras hebraicas fundamentam-se sob um arcabouço de um imaginário rico em mitologias pertencentes as mais diversas culturas do Oriente Próximo. (karen armstrong). Tais mitologias se tornam patentes nos primeiros capítulos de Gênesis, o primeiro livro da Tanakh: "Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo, que o Senhor Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?" (Gênesis 3.1).

Originalmente, tal serpente não era concebida como o "diabo", mas era, como o texto deixa bem claro, um "animal astuto" que Deus havia criado. Tal serpente era apenas uma entre as várias espécies de animais fantásticas que habitavam nesse mundo, na imaginação dos povos primitivos.

Entre os muitos animais fantásticos presentes nas páginas do Antigo Testamento, o Beemote:

"Contemplas agora o beemote, que eu fiz contigo, que come a erva como o boi. [...] O seu rabo levantado é duro como um galho de cedro [...] Ele é obra-prima dos caminhos de Deus [...] Só eu, o seu Criador, sou capaz de vencê-lo. (Jó 40.15,17,19).

Essa criatura fantástica por vezes é traduzida como hipopótamo. No entanto, de acordo com a descrição apresentada no texto, cabe-nos indagar: qual hipopótamo possui a cauda dura como o cedro? Qual hipopótamo é tão poderoso que só Deus é capaz de matá-lo? Até mesmo para os homens na época de Jó, era possível matar um hipopótamo.

Há também referência a "Sátiros" - Criaturas mitológias, metade homem, metade bode:

"Mas as feras do deserto repousarão ali, e as suas casas se encherão de horríveis animais; e ali habitarão os avestruzes, e os sátiros pularão ali" (Isaías 13.21).

E a serpentes voadoras (Basilisco):

"Não te alegres, tu, toda a Filístia, por estar quebrada a vara que te feria; porque da raiz da cobra sairá um basilisco, e o seu fruto será uma serpente ardente, voadora" (Isaías 14.29).

E ao "Tannîn", um monstro mitológico babibônico e ugarítico, muitas vezes traduzido para "dragão".

Entre tais seres mitológicos, mas de forma muito mais obscura, se encontra uma referência bíblica ao pássaro mitológico chamado "fênix". O livro de Jó 29.18, diz que:

"No meu ninho expirarei, multiplicarei os meus dias como a areia".

A palavra hebraica usada nesse texto para areia é hôwl (ou chol), que é escrita com um "het", um "vav" e um "lamed".

O significado dessa palavra é ambíguo. De acordo com o Dicionário de Grego e Hebraico Strong (disponível na internet), essa palavra tem como seu sentido ordinário a significação de "areia".

No entanto, o Dicionário Strong também afirma que existe uma variação dessa palavra, cujo sinal massorético no "vav" indica uma outra palavra, e afirma que existem cópias Babilônicas que trazem essa variação.

De acordo com algumas traduções bíblicas e com a tradição judaica, a palavra chol, em Jó 29.18 não deve ser traduzida como "areia", mas sim como "Fênix".

Desse modo, o livro de Jó estaria fazendo uma referência a ave mitológica que, segundo o imaginário da época, renascia de suas próprias cinzas.

Vamos analisar agora o significado dessa palavra de acordo com algumas traduções. A tradução dos padres da Bélgica é a seguinte: "Eu dizia: Morrerei em meu ninho, meus dias serão tão numerosos quanto os da fênix".

Verificando o mesmo versículo em outra tradução da Bíblia, a edição de 1917 da Sociedade Publicadora Judaica, encontramos seguinte redação: "Então eu disse: 'vou morrer com o meu ninho, e eu vou multiplicar meus dias como a Fênix'".

Já a Vulgata latina, traz uma tradução confusa: "Dicebam que in nidulo meo moriar et sicut palma multiplicabo dies" = "E eu disse: vou morrer no meu ninho, e como uma palmeira devo multiplicar meus dias".

O interessante é que em vários comentários judaicos e traduções realizadas por judeus trazem a palavra "Fênix" ao invés de "areia".

Um dos mais populares e influentes desses comentaristas judeus foi o judeu francês e estudioso exegeta e Rabino Shelomo Yitzhaki, ou Rashi, que viveu no século XI. Este estudioso judeu foi amplamente lido não só por judeus, mas também por cristãos hebraístas e comentaristas bíblicos.

Os comentários de Rashi sobre essa palavra foi o seguinte: "Esse texto faz referência a um pássaro cujo nome é Chol, e a morte não tem poder sobre ele, porque não experimentou do fruto da árvore do conhecimento. No final de mil anos renova-se, e retorna à sua juventude".

Em um dos Midrashim judaicos, o Bereshit, em Amã (19:5), encontramos o seguinte comentário ao Gênesis 3:6: "[Eva] deu ao gado, as feras e as aves o de comer [o fruto proibido da árvore do conhecimento]. Todos a obedeceram e comeram, todos exceto certo pássaro chamado Col, como está escrito: 'Então eu disse: vou morrer com o meu ninho, e eu vou multiplicar meus dias, como o Col [isto é, 'Phoenix']' (Jó 29.18)" .

No Talmude Babilônico, no tratado Sanhedrin (108), afirma que a ave que Sem, o filho mais velho de Noé, soltou foi a Fênix, apesar de usar a palavra "urshina" ao invés de Col (ou Chol).

Uma das explicações para que Jó 29.18 seja traduzido como Fênix ao invés de "areia" é o fato de que, analisando a estrutura do versículo em questão, se tratamos as duas metades do verso como paralelos, concluímos que a palavra "Ninho", na primeira parte do versículo é uma justaposição para a segunda parte. Desse modo, todo o versículo faz alusão ao pássaro, ao invés da primeira parte, que cita "ninho".

A ordem das duas partes do versículo sugere que a alusão a Fênix é a correta, sendo que, de uma forma não muito lógica, Jó primeiro fala de morrer, e depois, de multiplicar os seus dias. É evidente que muitos seres vivos não são capazes de morrer em seus ninhos e depois multiplicar os seus dias, mas de acordo com a antiga lenda, é exatamente o que podemos dizer da Fênix.

Outro interessante versículo paralelo, se encontra em Salmo 103:5: "Sua juventude se renova como a da águia" . Não é só um simbolismo do versículo. A menção a um pássaro que de certa forma pode voltar a sua juventude - mostra um surpreendente paralelo com Jó 29.10 e apóia o entendimento da tradicional judaico sobre esse texto.

Clemente I (30 -100), bispo de Roma, em sua Primeira Carta aos Coríntios[7] (c. 96 d.C.) usa um argumento curioso em defesa da ressurreição. Ela cita três "ocorrências naturais" para mostrar a razoabilidade da noção de ressurreição: o dia que segue a noite, a semente que cai ao chão e morre para renascer como uma planta, e a Fênix, pássaro árabe lendário, que morre e renasce de suas próprias cinzas a cada quinhentos anos:

Vamos considerar este maravilhoso sinal [semeion] [de ressurreição] que acontece nas terras orientais, isto é, na Arábia e países adjacentes. Há um certo pássaros que é chamado Fênix. Este é o único de sua espécie e vive quinhentos anos. E quando o tempo de sua dissolução mostra que sua morte está próxima, constrói por si só um ninho de olíbano, mirra e outras especiarias, no qual, quando é chegada a hora, entra e morre. Mas a medida que a carne se decompõe, um certo tipo de verme é produzido, que sendo alimentado pelos fluidos do pássaros morto, produz penas. Então, quando adquire força, ergue o ninho em que estão os ossos de seu pai e, carregando-os, vai da Arábia para o Egito, para a cidade chamada Heliópolis. E, num dia de céu limpo, voando à vista de todos os homens, deposita-os sobre o altar do sol, e feito isto, apressa-se em voltar à antiga residência. Os sacerdotes, então, inspecionam o registro das datas e descobrem que ele retornou exatamente o qüingentésimo ano ser completado.

Dito isto, o autor exclama: "É tão surpreendente que o Criador do universo ressuscite aqueles que o serviram em santidade e em certeza de boa fé, quando ele ilustra com um simples pássaro a grandeza de sua promessa"?

Clemente, ao comparar a ressurreição à lenda da Fênix, e fazendo da Fênix, o emblema de nossa ressurreição, usa um mito como "evidência" da ressurreição de Jesus.

Se Clemente escrevia para uma igreja cristã (a principal igreja cristã, já que se localizava no núcleo do Império Romano) e sua carta seria lida e repassada em todas igrejas. É óbvio que os cristãos daquela época acreditavam na Fênix, já que Clemente jamais iria colocar uma idéia pagã em sua carta que fosse constranger aos demais irmãos.




Autor: Francisco Chagas Vieira Lima Júnior


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