Gente tem preço?



Wilson Correia*

É muita a burrice televisiva que o nosso controle remoto desconhece. Contudo, há instantes da televisão que se agigantam imponderáveis sobre nós, qual pedra imensurável de Sísifo a nos achatar no chão em pó de que não podemos fugir. É quando a tragicidade niilista da existência nos leva para o reino daquelas coisas que não damos conta de nomear, nem de exprimir. Apenas tentamos, por vias de garatujas gráficas e vocais, buscar a sensibilidade compreensiva, onde quer que ela possa se encontrar.

Senti isso como um raio a me partir ao ver uma repórter brasileira num país africano. Ela enfocava a maneira diabólica como as crianças de lá são usadas pelos genitores feito mercadorias baratas em face da penúria de recursos que amargam e do completo pauperismo que vivenciam em termos de alimento, roupa, calçado, remédio, moradia, transporte, e sei lá mais o quanto de que a pessoa humana necessita para estar de pé.

Após o relato nu e cru de um garoto, de menos de dez anos, sobre como ele próprio havia sido violentado e dilacerado sexualmente por um turista, ao preço de 60 dólares (dez foram dados pelo silêncio do guri), a repórter depara com uma menina linda, de aproximadamente 5 anos vividos, que o pai quer vender por 50 dólares. Ele a oferece na "caradura" à jornalista. A repórter anseia por colher o drama após a proposta paterna.

O que começa como sugestão por parte do pai diante do silêncio da inocente ("Você irá viver no Brasil, ganhar dinheiro e nos ajudar", "Por que você não diz que vai?") acaba em terrível imposição: "Sim, você vai para o Brasil!". A cada mediação do intérprete que faz a repórter compreender a fala absurda daquele pai, a tensão se avoluma e o terror seqüestra a menina. Fragilizada ao extremo, ela só teve forças para balbuciar um impotente "Não!", cavando amparo físico num e noutro dos presentes ao negócio.

A mãe da garota, desde o início titubeante entre o "sim" e o "não" ao que o marido lhes ordenava, terminou por se retirar, também triste, desolada e niilizada, para deixar as lágrimas lavar-lhe o resto, há muito golpeado por outras tantas e várias bofetadas.

A intransigência do pai calou todas as vozes e congelou os humanos que presenciavam a pequena trama, pateticamente indigesta e cruel. A repórter veio abaixo, horrorizada.

Então, sentada na cepa à cadeira, mantendo a menina à esquerda, apoiada entre a coxa e os braços, fez a pequena recostar em suas costelas, amparando-a. Dos olhos da jornalista desceram lágrimas que não podiam lavar aquela atrocidade, mas que revelavam o ponto a que o drama humano pode chegar e como o mundo humano pode ser vil.

Após acalmar a criança, dizendo-lhe que ela, menina, não viria para o Brasil, que não era esse o propósito em questão, e não pagando os 50 dólares exigidos por aquele pai, a jornalista ganhou tempo e se recompôs para nos reportar: "Saímos dali sem pagar o que nos foi pedido, para que ela, a criança, pudesse saber que gente não tem preço".

Essa é uma daquelas "cenas-limite" que a televisão pode veicular. Não há como ficar indiferente, ou fingir que "não é comigo". É conosco sim. Aquela criança viveu, sozinha, na mais terrificante solidão, toda a densidade do drama surdo que, em certa medida, existe em cada um de nós: como é crucial o senso da pertença e quão dolorosa é a alienação despoticamente imposta ao alheamento de si próprio vivido no próprio ser!

Que animalesco! Que abandono! Que desamparo! Que triste! Que horror! Que inferno!

Como é dilacerante a dor de não ter a quem recorrer?! E a quem pertencer?!

Que o mundo pudesse criar vergonha e mostrar, por meio de atos, atividades e atitudes, o que aquela repórter foi levada a nos comunicar: "Gente não tem preço!" Tem?


Autor: Wilson Correia


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