A única constante (2)



A única constante (2)


Dia 14 – Em virtude da tempestade de ontem, tive de mudar o acampamento de lugar. Um lugar mais alto. Parte da floresta ficou alagada. A água chega até a copa das árvores.

Dia 15 –  Daqui de cima tem-se outra visão. A fauna parece diversificada.“A velocidade da luz é uma constante não porque haja um valor absoluto nos 300 mil km/s, mas porque nenhum corpo material pode alcançar essa velocidade. (Um corpo material cuja massa aumente com sua velocidade)”.

Dia 16 – Começo a questionar a real utilidade de contar os dias. Peixes tomam conta da floresta alagada e se banqueteiam com frutas, sementes e flores. Talvez esteja na hora de aprender a pescar.

Dia 17 – Mais uma noite em claro, incerto sobre o dia de amanhã. E se tiver de mudar o acampamento de novo? Ao dormir, “o homem entra no estado de consciência-sonho e escapa das falsas limitações egoístas que constituem sua moldura diária. Tem uma demonstração recorrente da onipotência de sua mente”.

Dia 18 – “Nós somos 3, tu és 3, tem piedade de nós”, cantarolam os eremitas, cuja ilha permaneceu incólume. “A consciência do eu não esgota seu objeto. A alma e a consciência não são dois termos adequados. Eles não se ajustam, pois não tem igual extensão.”

Dia 19 – O caminho até a aldeia tornou-se duplamente complicado.

- Você tem gordura sobrando? – perguntou-me um dos poucos aldeões que fala a minha língua. Não tive tempo de responder, primeiro por não ter compreendido, segundo porque ele continuou falando:

- É como o peixe tal. Ele se empanturra dos frutos das árvores durante meses, e quando as águas baixam ele consegue voltar ao seu lugar de origem. Por causa da gordura acumulada, compreende?
Fiz que sim com a cabeça e ponderei se estou condicionado pelos mesmos parâmetros do tal peixe: acumular, para depois partir.

Dia 20 – Há grasnidos e grunhidos periódicos, além da cacofonia de aves e insetos. “A criação é, ao mesmo tempo, luz e sombra. Se a alegria fosse ininterrupta, o homem dificilmente trataria de recordar que abandonou seu lar eterno. A dor é o aguilhão da reminiscência. A via de escape é a sabedoria. A tragédia da morte é irreal”.

Dia 21 – Embora a água esteja turva, de repente há um chapisco por cima. De repente, vários. São peixes pequeninos que vem e vão. Estou decidido a conhecer os eremitas. Amanhã farei isso. “Só um corpo material cuja massa fosse infinita poderia igualar a velocidade da luz”.

Dia 22 – O trajeto até eles foi calmo, quase um deslizar, pediram-me que esperasse um pouco, pois iriam conversar com um forasteiro que ali chegara, em busca de auxílio. O forasteiro era jovem e seus dentes muito brancos apareciam, quando ocasionalmente sorria. Parecia perturbado, sentou-se numa pequena pedra e os eremitas a circundá-lo. Após um breve silêncio o forasteiro exclamou:

“- Senhor ! Estou morto ou vivo?  
Um ofuscante jogo de luz encheu todo o horizonte. Uma vibração suavemente rumorejante modulou-se em palavras:

- Que tem a vida ou a morte a ver com a luz? À imagem de minha luz Eu te fiz. As relatividades da  vida e da morte pertencem ao sonho cósmico. Contempla teu ser, sem sonhos! Desperta Meu filho, desperta!”

Dia 23 – Consegui no vilarejo uma rede, semelhante a que se usa para caçar borboletas, com o intuito de também pegar os frutos que estão boiando. A resposta dos eremitas ainda ecoa na minha mente. Foram muito amáveis e me ofereceram um chá verde. Perguntei se poderiam rezar por mim. Entreolharam-se e sorriram, dizendo que isso não seria problema algum. No entanto, um deles me disse:

- Reze você mesmo, Deus adora ouvir uma voz estranha.

 

 


Autor: Bernard Gontier


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