RUA DONA MARGARIDA



RUA DONA MARGARIDA

 

            Em l968, em Porto Alegre,  num certo trecho da rua Dona Margarida, a uma quadra e meia da avenida Farrapos, à direita de quem sai da Capital, havia uma ruela transversal com casas de madeira onde habitavam famílias de imigrantes.

            Numa dessas casas morava a minha amiga Lari Brum, funcionária da White Martins.  Havia também duas famílias italianas.  Uma dessas famílias tinha um açougue e a outra uma feira de legumes, frutas e verduras.  Não se davam, esses italianos, por uma rixa atávica, e costumavam insultar-se quando se viam, na frente de seus estabelecimentos.  Não podiam enxergar-se na calçada, embora morassem lado a lado.  Era divertido observá-los de longe, um deles era baixote e loiro e o outro alto, esguio e moreno. Eu me dava muito bem com eles, e apesar de não se relacionarem entre si, não discutiam na minha presença, quando ambos, ao mesmo tempo, talvez por birra ou inveja um do outro, inventavam de atravessar a rua para vir conversar comigo, que trabalhava num escritório em frente. Talvez o sentimento de amizade que ambos me devotavam neutralizasse os seus conflitos, pois se mostravam alegres e palradores comigo, ignorando-se mutuamente. Eu costumava freqüentar aquelas casas e conversar com seus moradores, que eram gente humilde, simples, boa e hospitaleira.

            Como eu morava na avenida Farrapos, a duas quadras dali, no Hotel De Conto, costumava nos fins de tarde sair com meu chimarrão em direção à ponte do Guaíba, onde sempre encontrava a Larissa e meus vizinhos.  Ficávamos debruçados na parte elevadiça da ponte, contemplando a paisagem, à espera do pôr-do-sol e da passagem de algum navio, para ser içados, com aquele setor da ponte, para dar espaço às torres e chaminés, e olharmos lá de cima aquelas fortalezas que passavam lá embaixo, verdadeiras cidades náuticas que deslizavam na água do rio, sob nossos pés, rumo ao cais do porto, e que, por uma ilusão de ótica, às vezes produziam a sensação de que nós é que estávamos em movimento.

            Depois, já ao anoitecer, descíamos pela ponte, e nos detínhamos a admirar a Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, banhada em luz, esplendorosamente, por milhares de lâmpadas.

            Durante a semana freqüentávamos os cursos noturnos do antigo D.C.E. (Diretório Central de Ensino), ali na Otávio Rocha, com seus professores esquerdistas e com aquela esbelta professorinha francesa, de francês, de longos e sedosos cabelos, olhos verdes, nariz delicado e boca de lábios carnudos e sensuais, que usava mini-saia e expunha suas lindas pernas morenas, sentada sobre a mesa, enquanto com uma longa régua, que na verdade era um taco de bilhar, nos ia indicando as frases no quadro, com o seu sotaque da Ilha de Guadalupe, onde nascera, e que sentia prazer em nos acompanhar a uma pastelaria que funcionava naquelas imediações ...  Aos sábados de noite, eram os carreteiros no restaurante Dona Maria, em frente à praça Quinze; aos domingos pela manhã, os passeios de bondes da carris pela cidade, ao preço de um tiquet, que dava o direito de ir e voltar; de tarde, as excursões de barco pelas ilhas do Guaíba; à noite, um chope com “panchos” e “chivitos” com bifes, ovos e alface do mestre Don Ramón, ali na esquina da Marechal Floriano, sem falar nas sessões populares do teatro de arena.

            De repente sobreveio a longa noite dos tempos, que durou trinta anos ...

            E hoje, retornando àquele lugar em busca de velhos amigos, percorri aquele trecho da rua Dona Margarida, lá no bairro Navegantes, e não encontrei mais aquela ruazinha transversal de chão batido, com seus chalezinhos de madeira, nem rastros de seus antigos moradores ...  Em seu lugar, um contexto de edifícios, estranhos e hostis, com seus habitantes anônimos e desconhecidos.

 

                                                                          

Luciano Machado – Cronista e Escritor.  


Autor: Luciano Machado


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