O Cínico



"Defuncti injuria ne afficiantur" E. A. Poe

Em homenagem ao meu pai. Hoje, dia 16 de Janeiro de 2009 faz cinco anos que ele faleceu, lembro como se fosse hoje e minha capacidade humana me faz relembrar tal dor, a esta capacidade de autoflagelação do ser humano dedico este texto. Uma das homenagens que devo prestar a este homem, mesmo que seja amadora, é o meu máximo potencial até o dia de hoje. (O autor).

Em vida não fui um homem bom. Fui demasiadamente voltado para conseguir as coisas que envolvem o usurpar o outro, a tratá-lo como animais, como objetos que devo usar para me destacar. Enfim morri de uma morte bem calma na minha cama, se é que uma morte pode ser calma esta foi a minha, com muitos remédios, com minha agora bela, viúva e rica esposa ao meu lado, e como isto me revolta ter que abandonar toda esta riqueza para ela, com meus dois filhos e meu precoce neto que tanto amei que nunca neguei apesar da minha avareza. Um velório onde fui aclamado como homem sábio, como homem de bem, como bom pai, como bom filho, como bom marido, o cheiro de flores de plástico, o café e tudo era muito bonito, apesar de inútil, a beleza do meu funeral foi impressionante, muitas pessoas, muito choro, muitas rezas, muita inutilidade no final das contas. Meu caminho fora traçado no primeiro dia em que abri meus olhos para o mundo, quando descobri a sua maldade e resolvi me tornar ainda mais mal que este, apesar de tudo fui fiel seguidor de deus, indo semanalmente a igreja católica e a outras igrejas, dando meu dízimo, ajudando as famílias pobres, mas era mal, pois não conseguia me desligar das coisas que não eram eternas como as pessoas que me cercavam e fora as pessoas que ajudava, e ajudava com desdém, como quem dá comida a um cão faminto, tratava todo o resto como objetos, sobretudo os meus empregados e colegas de trabalho. Tive apenas uma amante, uma pequena senhorita de origem humilde que paguei faculdade e ajudei a arrumar um bom emprego, era bem tratado pela família dela e por decisão de minha esposa, não puderam ir para o meu funeral, mas tudo bem, lampejos de bondade e maldade em um só ato afinal sou humano! Enfim não sou perfeito logo não pude ser herdeiro do reino dos céus fui condenado pelo barqueiro a seguir para o inferno através de um caminho sinuoso.

A entrada é um buraco estreito, onde somente se pode passar rastejando, cavado na terra como se fossemos puxados por debaixo do caixão [sinto pena dos que foram cremados ou deixados para serem devorados pelos animais terrestres ou marinhos], e com o avançar a terra desaba atrás de você impedindo a volta e indicando que é um caminho sem volta e a partir daí comecei a ficar com medo, pois em toda a minha vida nunca gostei de estar preso a uma situação que não tivesse volta e as evitei conscientemente mesmo que as tenha procurado inconscientemente.Arrasto-me na lama, certa parte está úmida e me sujo ainda mais, parece que passei perto de um lençol freático ou que começou a chover lá em cima [se é que estou embaixo] e a partir daí a minha locomoção se tornou ainda mais difícil e o túnel começou a se parecer com aquelas longas caminhadas que fazemos, onde os músculos, a vista, a cabeça, onde tudo dói e parece que nunca vamos chegar. E de que importa chegar se suplícios ainda piores me esperam no fim deste túnel? E se não houver fim, se o inferno for justamente isto, preso debaixo da terra por toda a eternidade, a como desejo estar no fogo com muitos dos meus amigos e familiares! Como disse várias vezes, meu pai e meu padrinho que se foram antes de mim eram homens de bem e segundo as leis de um deus que todos acreditam ser o certo eles foram mandados para o inferno, para a danação eterna onde o fogo não cessa, onde existem as trevas exteriores e os vermes se deliciam para todo o sempre de nossa carne, queria ter seguido uma vida virtuosa como estes homens para quando morrer estar ao lado deles mesmo no inferno, me seria uma honra mas, agora estou sozinho neste buraco me movimentando até a exaustão, não mereci estar ao lado deles e agora que não há mais volta, como o próprio buraco faz questão de mostrar, começo a chorar como uma criança. De repente, quando chorei e me humilhei para um deus o suficiente, pedindo perdão, o buraco acaba simplesmente desaparece sobre meus pés e eu apareço em outro ambiente.

Este novo ambiente é demasiadamente agradável: Um casarão central com portas bem abertas com um tom de receptividade, do lado direito um jardim com belas estátuas em marfim, brancas como a neve, imperecíveis retratos das musas e valquírias, das mais belas mulheres, dos mais sábios e belos homens de todos os tempos, assim julgados pelo dono da casa, belas e perfumadas flores das mais variadas cores e perfumes e mesas com confortáveis assentos embaixo da sombra das árvores para um belo piquenique ou uma boa leitura no final de tarde. Do lado direito um belo restaurante onde as pessoas comem o que desejam, da forma que desejam e são servidos por belas senhoritas e belos rapazes com uniformes impecáveis [sendo a saia das moças ligeiramente curtas], tudo o que desejares sendo feito da melhor forma, café, almoço e janta todos os pratos do mundo. De tão bom muitos dos que chegaram a muito tempo ainda estão aqui, comendo o que podem já que não existem contas e não existe pressa já que a divida infernal será paga por toda eternidade um tempo o outro, o cobrador nem o cobrado possuem pressa em nenhum destes quesitos. Apesar dos lugares que se apresentam, decido ir para a mansão ao centro, quero conhecê-la por dentro, quero ver se encontro algum conhecido ali a fim de conversar e ficar interado sobre como ocorre a minha nova vida. A entrada principal, bem ao centro, é ampla e os portões estão sempre abertos e seus mistérios interiores nos levam quase instintivamente a adentrar. Decorada por belos quadros, com grandes quartos iluminados e bem mobiliados, banheiros sempre limpos, já que, de fato ninguém os usa, de certo um ato de ironia do arquiteto, talvez um morto, recém defunto que ainda tivesse saudades desses atos ou talvez esta casa seja a copia de uma casa na "terra" e o administrador infernal seja ou preguiçoso ou genioso demais para modificar esta parte da estrutura. Pois bem, ali numa sala, enquanto olho a todas de forma curiosa e espantada – Seria isso o inferno? Meus olhos enchem de lágrimas ao perceber feições que me são demasiadamente familiares: os olhos negros, os cabelos escuros com as proeminentes entradas (um calvície que nunca chegou), o velho sorriso cativante e a barba devidamente aparada: ali está meu pai, sentado e lendo um livro, com uma bengala encostada na mesa (ainda lhe afligem as doenças de quando era vivo?). Está me chamando com uma das mãos, em silêncio, na verdade mal tira os olhos do livro, apenas me chama e aponta para a cadeira a sua frente indicando que eu me sente. Enquanto caminho em sua direção, percebi como sou seu oposto: meu forte pai, com seu rosto decidido e sábio, uma mistura de potencia juvenil com sapiência dos velhos, suas atitudes de verdadeiro líder na nossa casa, no trabalho e até mesmo com os amigos em suas pescarias se transmutou graças à genética e a minha própria fraqueza em um ser menor, mais calvo, com um olhar trêmulo e sem graça (o mais sem graça dentre todos), com uma liderança instável, sendo líder em apenas alguns grupos, em algumas estruturas mais maleáveis, um ser menos inteligente e menos sagaz, e tudo isto me envergonha, apesar de que tenha tentado inúmeras vezes ter colocado a culpa nas estruturas sociais, no "passar do tempo" (doce ilusão que me fizera dormir tranquilamente por muitos anos, mas que foi diluída anos antes de minha morte), na minha criação e em outras coisas. Mas todas estas tentativas foram em vão, no inferno, nosso eterno juiz, que não é Deus e sim nossa própria consciência, é extremamente dura em suas decisões e nos cobra justamente pelos atos cometidos, por nossa fraqueza e por nossa soberba. Quando o libertino Conde Jonh Wilmot se arrepende no seu leito de morte, questionando a existência de Deus, indo a auxilio do rei, ele se arrepende e pede perdão a sua consciência e Deus, Moral, Lei são apenas dores da consciência do homem ao denegrir um igual, o medo de ser o próximo, afinal de contas, rei, mãe, esposa são pesos carregados na vida e no inferno todas estas coisas e principalmente Deus te abandonarão a tua própria consciência, teu verdadeiro juiz.

Trêmulo, como nunca fui antes, aproximo-me da cadeira e sento arrastando pesadamente a mesma para frente, provocando reclamações dos leitores que estavam ao meu redor. Tentei ter forças para levantar minha mão e tocá-lo, mas apenas chorava e as forças, mais uma vez, me foram tomadas. Antes que uma saudação mais amistosa pudesse ser feita, pai começa a falar de forma violenta:

- Te falei, te avisei, mais de uma vez e toda vez que tu ias dormir! Seres de nossa espécie não deveriam ser reproduzir! Por mais que tu tenhas tentado encher a terra de meus descendentes pensando que me alegraria com isso, te aviso que aqui isso não faz diferença nenhuma, nem sei por que estou a falar com vossa senhoria.

Uma pausa e volta a ler, meu choro se transmutara em um olhar espantado, meu coração voltara a palpitar como quando era criança e iria receber uma bela surra, uma surra daquelas! E, não conseguindo se concentrar na leitura volta a me atacar do mesmo modo decidido e com a mesma expressão que atacava seus inimigos em vida:

- Não é fácil, não foi fácil ter que abandonar aquelas pobres crianças que eu amei em tão pouco tempo e como podes tu, cometer a mesma loucura? Amar as crianças que em breve tu deverias abandonar? No fim, senhor estranho, todos devem abandonar a todos. Mas, me responda como estão as pobres criancinhas?

Ainda atordoado, com dificuldades de organizar o pensamento, respondo:

- Estão bem. Sua mãe é muito dedicada, como o senhor a ensinou, tem seus três empregos, esta a estudar e segue sua vida apesar de que eu não tenha a visitado muitas vezes, mesmo sendo sangue do meu sangue, morri sem visitá-la e as suas pobres criancinhas. A menina está se tornando numa bela moça, parecida com sua mãe quando mais nova (nesta hora ele suspira saudosamente) e o rapaz tem o mesmo olhar que nós. Mas, quem sabe o que o futuro destina a eles, quem sabe? Choraram muito no seu enterro e talvez tenham chorado no meu, ouvi poucas coisas, só uma confusão.

Interrompe:

- Não ensinei nada a ela do que ela fez! Mais uma vez, pobre iludido senhor desconhecido, suas lágrimas em meu enterro (quanto tempo faz? Cinco anos? Seis?) não eram para minha pessoa, eu não as necessitava mais! Foram todas para ti as lágrimas de meu funeral, foram lágrimas de medo da solidão, de estar desprotegido sem teu velho e poderoso pai, como tu me consideravas. Mas não te julgues fraco, pois assim são todos os seres humanos (como me humilha ser chamado de humano), não dão valor a proteção que tem e quando a perdem, se desmontam a chorar. Sei que todas as noites tu te agonias ao lembrar-se do beijo que me negaste, eu doente e cambaleando em uma perna me abaixei em teu encontro para tu se virar e me negar o beijo e mesmo assim, com um belo sorriso te deixei dormir ainda mais, me abaixei ainda mais para ter dar um beijo no ombro, como doeu na minha doente perna e na minha doente mente, já fraca pela doença, ter um beijo negado pelo filho. E tu querias que eu te tratasse bem aqui por tuas ações depois que eu morri? Elas pouco importam! Mas por falar nelas, ainda tenho muito a reclamar e muito a falar, primeiro pelo esforço que fiz para te seguir depois de minha morte e depois porque além deste esforço tive que ver tuas burradas se concretizarem! Não te ensinei a errar, senhor estranho.

Continua:

- Graças a sua capacidade reprodutora, em breve teremos mais pessoas para nos preocuparmos e veremos mais desgraças da terra. Meu... (iria me chamar de filho, mas desistiu por motivos claros para mim), senhor estranho, o seu primeiro erro foi ser ingênuo e deste erro compartilho minha culpa. Eu morto, você solto no mundo, os lobos que nos cercam iriam te devorar com toda certeza e foi doloroso para eu ver estes lobos matarem a minha mais bela ovelha e devorar a outra a vomitando em seguida em um lobo ainda pior, ainda mais deformado que é você. Meu terceiro bisneto foi concebido em meio a uma ilusão: a de que eu voltaria para perto de ti tu sendo pai e não mais filho. Ledo engano: agora vemos ambos que o correto seria que tu deixasses de ser meu filho e passasses a ser filho de ninguém, com raras exceções temporais sendo um filho para tua mãe e nem isso conseguiu ser. Deste teu erro nascera teu primeiro filho e como é bela a pobre criança, que nada tem a ver com teu erro e me inspira muito mais pena do que raiva ou amor. Ainda mais por ter um pai distante e relapso como você e mais, meu ódio, meu amor e minha pena nada influenciariam a ela, mas vejo nos teus olhos que a ti sim, por isso falo com tanta raiva, para te punir, como fazia antigamente.

Levanto com falta de ar, levanto e cambaleio para cair, quero correr dali, sair de perto de quem outrora eu tanto amara e ainda faltam muitas verdades! Não quero ouvi-las mais! Olho para frente, atrás daquele homem e posso ouvir barulho de água corrente, vou em direção a ele mesmo sabendo que não há para onde correr, mesmo vivo isto já me consumia e agora que não tenho amigos, namoradas ou familiares? Restará somentea dor? O inferno que tanto falava não é formado por trevas exteriores, por vermes que não morrem e por fogo, mas sim por um agradável lugar, pessoas lendo bons livros, um clima agradável e a pessoa que tanto quis rever me torturando! Corro em direção ao rio, há mais o rio é o local que ele tanto amara! Corro, apesar de não haver para onde correr.

De águas límpidas, com pequenos peixes vagueando de um lado para o outro, árvores que proporcionam sombras e deixam o sol passar na proporção certa, é assim o rio. Toco a superfície da água com um dos dedos e pequenas ondas se formam, sinto um calor que percorre todo o meu corpo, molho as mãos, os braços, levanto-me e entro um pouco, molho os pés, a temperatura da água é agradável, começo a esquecer o que acontecera como se fosse possível. Os pensamentos ruins gostam de aparecer junto com o sol de manhã cedo e desaparecer somente no momento que fechamos os olhos para dormir, bem tarde da noite, vão engano pensar que a morte é como um eterno sono, ela é como um eterno estar acordado, um eterno lembrar e sofrer. Então, as águas em torno de mim começam a escurecer, como um sangue podre, como o liquido que escorre do lixo e começa a tomar conta de todo o rio, os peixes bóiam mortos, as arvores murcham e começam a cair perigosamente ao meu lado e adiante, fico apavorado, tento correr para longe, mas não é possível sequer mover um pé em direção a margem.

Sou tragado repentinamente para dentro de um túnel, ingerindo aquele liquido e ouvindo as grandes mentiras que sempre ouvi e a maior delas é: Eu te amo! Quando se ama se faz tudo pela outra pessoa! Não existe amor maior! Da próxima vez iremos fazer melhor! Evolução! Os homens são bons! Eu acredito nos homens! Destino! Todas os milhares de mentiras, principalmente as ditas no púlpito ecoaram e zuniram no meu ouvido por um tempo que não pude contar e que, por mais que fosse somente um segundo, seria extremamente insuportável esta situação, sobrevivi pela simples convenção de não poder morrer, aqui, as coisas se tornam em certos pontos mais fáceis quando se aceita.

Apareço em outro ambiente, uma versão corrompida do anterior, o jardim é feito de vegetais mortos ou morrendo, do lado direito somente as cadeiras permanecem sujas de velhas e fedidas folhas, nenhum leitor, nenhum garçom, no centro da casa a porta entreaberta estando uma de suas metades caída ao chão. Dentro da casa, os quadros são de excelente 'qualidade', qualidade aparente, pois são como as obras de arte que não querem dizer nada a não ser declarar a vontade de autor de acumular ainda mais capital, palavra e objeto demasiadamente inútil aqui, os quartos estão desarrumados e algumas camas sujas de sangue, os moveis velhos e mordidos e no ultimo quarto encontro um inesperado morador.

A bela dama de preto, pele alva, cabelos louros e lábios pálidos, deixa aparecer uma de suas coxas, os seios se destacam no decote do vestido e seu cabelo está formatado em uma bela e longa trança, sentada na beira da cama, me chama com sua voz fina e decidida enquanto que com uma das mãos me faz sinal que se aproxime a outra se encontra no meio de suas pernas, ela se masturba e não o faz com freqüência, faz porque sentiu meu cheiro, sentiu minha aproximação. Deita-se rapidamente, voltando seu rosto para o outro lado, deixando sua mão cair para fora da cama e seus dedos quase tocam o chão. Corro desesperadamente e seguro seu braço, que começo a beijar. Submisso, começo a tocar temerosamente seu corpo e fico excitado, não por minha carne, que não existe mais, mas pelo fato de tão bela mulher estar se oferecendo tão docemente a minha pessoa, personificação de minhas musas, de todas elas, estou inebriado por sua presença e em meu olhar e no meu toque, começo a admirá-la. Rapidamente ela se vira e desfere um golpe com as pernas me afastando para longe, caindo de costas no chão e batendo a cabeça, levanta-se e coloca um dos pés sobre minha barriga, encarando-me e pronunciando tais palavras:

- Porque te humilhas tanto a mim? De certo gosto do que tu fazes? E tu? Não sou quem tu procuras e não sou objeto ou tesouro para que tu possas me guardar em um baú e trancar este com chaves de tua vontade. Na verdade, sou eu que te escravizo com a força que possuo no meio de minhas pernas, pobre escravo... Libertino? És um coitado que pensas que estás liberto ou destruindo prisões, confessa: gostas mesmo é de estar bem preso a uma vagina, de poder gozar dentro dela e nela ficar preso. Teus textos serão apenas textos enquanto tiveres medo de se libertar, principalmente de minha bela vulva.

Sou tua maior e eterna prisão, o gozar. Os maiores homens sempre se renderam a mim e porque tu não o farias sendo um pobre homem que acorda todos os dias lembrando-se de um pobre passado, pobre em todos os aspectos você é, coitado. Se os reis, os deuses, os papas, os governadores o fazem, porque tu não farias? Estás agora a pensar que é diferente destes porcos imundos, entretanto devo te dizer que as coisas não são bem assim, a nossa verdade: você é ainda mais covarde que estes, ainda mais fraco e ainda mais desprezível, pois se vangloria de não querer ser grande entre os homens e querer ser grande entre os super-homens, mas não passa de um homem que a nada conquistara, a diferença entre tu e um seguidor fanático é apenas que mal os levara a cegueira. A diferença entre tu e o revolucionário de tua época é que tu sabes que é um derrotado e ele finge não saber, ambos possuem a mesma natureza.

Atordoado mais uma vez, por suas palavras e por ela permitir enquanto me falava que eu pudesse ver sua vulva com os pêlos bem desenhados, de tão escravo que sou, ouvi poucas palavras e prestei mais atenção do que deveria. Fala a mulher:

- Entretanto sou generosa, deixarei você morder meu pescoço, deixarei você beijar meus lábios, morder minhas orelhas, arranhar minhas costas, me colocar de quatro e me penetrar por trás e gozar rapidamente, irei olhar para trás e fingir estar satisfeita, eu sou uma deusa generosa. Você demorou menos que dez minutos para fazer todas estas coisas, como você é desprezível.

Ah, como é horrível o inferno. Primeiro sou hostilizado pelo pai que sempre chorei por tê-lo perdido, agora sou humilhado pelo ideal de mulher que sempre esperei, ela tanto me desprezou que me deixou possuí-la. "Como você é desprezível" são palavras que ecoam em minha cabeça. Corro, sempre correndo mesmo estando sentado em uma cadeira. Tropeço e ouço um grito de dor, um homem deitado no chão, nu, com um cigarro na boca fuma sem se preocupar se alguma alma que passasse fosse tropeçar nele. Ele se levanta, tira a areia somente das nádegas, dá um leve sorriso e começa a falar mexendo seu bigode enquanto o faz:

- Meu caro amigo, porque te perdes com aquela mulher? Vê, agora mesmo estava a transar com ela por muito mais tempo que você, me deixa lembrar, umas duas horas para ser mais exato, sempre medi meu apetite sexual por duas horas exatas que pagamos ao entrar em um motel, ah, sem contas extras! Ela não é digna de teu tempo e de tua humilhação, para que aprenda, nenhuma é, nem homem nem mulher, seja livre e pobre, mas não seja mais uma alma para alguém, é meu primeiro e ultimo conselho de amigo que te dou, já que não seremos mais a partir de agora. Já que estás aqui e como gosto de contar minhas histórias para quem menos gosto, deixa te contar uma, de forma resumida, para que possas ir mais rápido é claro e elas com certeza te distrairão um pouco de tua agonia. Comecei escrevendo para conquistar as garotinhas, ainda no ensino fundamental e funcionou de fato, iniciei o curso sendo o esquisito e terminei sendo o poeta que ganhara todos os concursos de poesias da escola. Os meus professores viam em mim um futuro vagabundo caso seguisse em tal caminho, poesia não dá dinheiro como criar gado, pensavam, quiseram fazer de mim um criador de bois. Por ser mais um criador de bois e não 'O poeta' de minha família logo comecei a escrever a fim de impressioná-los e magoar aqueles parentes menos queridos, logo passei a fazê-lo na faculdade, depois no trabalho, fui demitido, tomado como louco e todos que tiveram coragem de me ler me chamam assim, de 'O louco'. E por falar em mulheres, já ganhei algumas por causa de minha poesia, e outras perdi. E por falar nelas, conheci duas belas damas em minha vida, uma que muito amei, muito mesmo, se é que uma pessoa como eu pode amar, ah se Deus permitisse o homem amar, como seria bom e belo o homem, mas um dia ela veio andando para perto de mim dizendo que amava o que escrevia que era perfeito, divino. Parei de gostar na mesma hora dessa mulher, como pode ela chamar aquilo de perfeição e ainda mais diminuir ao chamar de divino? Até a mais esdrúxula das poesias merece um nome melhor: a de suave mentira. Fui à casa de sua mãe e falei para ela que não queria mais se casar com ela e mesmo que não fosse mais de meu direito devolve-la eu o faria de qualquer jeito e se ela tivesse grávida eu pagaria pensão, afinal já era um homem morto mesmo, tinha uma doença que me mataria em poucos anos que com a graça de Deus este tempo se reduziria com as muitas horas de trabalho, trabalharia como um feliz condenado à espera da forca. E assim foi quase como quis, eu, minhas leituras e meus textos, mas conheci outra dama, que me encantara com seu olhar.

Assim que me despedi da outra, viajei para uma grande cidade e passei a morar em uma vila universitária onde ali, com o convívio com outros escritores amadores a minha arte se desenvolveu, escrevi vários belíssimos textos, comecei a escrever para mim e não para alguém e isto me fez um melhor escritor, passei a ler muito alguns dias e não ler nada em outros, e esta alternância me ajudava em um aspecto ou outro, comecei a passear nos finais de tarde apenas com um livro e o por do sol como companhia, ali, naquele curto espaço de tempo podia sentir Deus de verdade, ela apareceu como aquele raio de sol, dê licença para ser repetitivo e meloso em minhas palavras, pois quem vos fala ainda é um homem comum e apaixonado, em seus cabelos loiros, curtos na altura do pescoço e lisos, bem escorridos, era uma mulher alta e um pouco magra, mas não fora isso que inicialmente me encantara e sim seus olhos felinos e seu sorriso nada delicado, só quem viu como eu a vi pode descrever como são belos seus olhos e são tão belos assim somente em certos momentos, quando ela quer e isso a torna ainda mais atraente: só é charmosa assim quando quer. Pensei que queria desvirginar aquela mulher, no corpo e na alma esta ultima sendo o que desejava violar com mais vigor, mas para mim ela era como a verdade para o filósofo, pura e inalcançável, coisas familiares a afastavam de minha boca. Mesmo assim ela se entregou, apenas por uma noite, me dominou e me deixou sonolento, uma única noite antes de se matar pulando do prédio que trabalhava. Amou-me apenas por desejo ou por ter me amado também? Por qual motivo o fizera? Para se eternizar em minhas palavras? Escrevi sobre ela por muitos anos até que a doença me matou e agora estou aqui dividindo minha experiência com quem não precisa mais! Siga meu ex-amigo e descobrirá coisas piores que minha história resumida. Siga até a beira do rio.

Sigo o conselho de meu ex-amigo que realmente faz jus ao seu nome 'O louco', mas o que sobraria de loucura aqui no inferno e na terra? Sigo para o rio onde uma mulher segura uma bandeja com uma cabeça depositada que muito fala a todos que passam, um corpo joga água na cabeça de indivíduos que fazem fila na beira da água e dentro do rio. É o João que batiza, aquele que batizou um velho barbudo há poucos anos atrás e continua a realizar seu oficio! Todas as almas que morrem sem batismo são logo levadas pelas outras para serem batizadas pelo mais ilustre dos João que batiza e estas se sentem ainda mais consagradas que as que foram batizadas por padres 'Zé ninguém', a maioria dos padres são 'Zé ninguém' no inferno. Continuo andando e a cabeça me fala:

- Por favor, me salvem! Mas, quem pode me salvar dos desígnios do Altíssimo? Segurar minha cabeça era para ser o castigo eterno dessa dançarina de pedidos tão maliciosos, mas se tornou o meu tormento eterno ter segura a cabeça por ela. Certas vezes, quando não tinha ninguém por perto ela me colocou no meio de suas pernas e me obrigou a passar minha língua em seu órgão e por mais que eu fosse um homem santo, no inicio por pressão e depois porque comecei a gostar, passei a satisfazê-la. E o meu corpo jaz sem um toque feminino e é impossível para ele deixar o rio e é impossível para esta mulher se voltar para meu corpo sem cabeça. Porque fui condenado a estar aqui? Unicamente por tua pessoa. Porque tu creres em um pai altíssimo e ignoras o Deus Verdadeiro que há n'outro ao teu lado, quando ele reconhece isso, quando dois reconhecem a divindade d'outro é que se manifesta o que chamamos de amor, quando a divindade supera a morte, quando supera o passado, quando supera o medo do que vem. Não reconheces a capacidade do 'homem' em recriar e destruir as teias que sustentam a realidade mesmo que seja mais fácil aceitar, não vês divindade nisto? Ou algo que se tenha inventado o posto de divindade? Não vês que essa mulher não pode me entender e ao menos pode me jogar no chão com a raiva que ela sente agora porque tu não achas aceitável que ela jogue? Jovem homem, este inferno é teu inferno e eu só estou aqui por ser tua construção, teu pensamento tomando forma e todas as agonias e medos são todos teus.

A jovem meretriz, como eu a imagino esta menina capaz de tal crueldade interrompe ao pronunciamento da cabeça como querendo me esconder o que ele ainda havia para falar:

- Tu pensas que somente por estar ainda com teu corpo e cabeça juntos és diferente deste pobre homem? Tu és ainda mais dependente de mim do que ele. Enquanto que, por castigo divino, este homem é obrigado a me satisfazer por toda a eternidade sem que possa ser satisfeito, o Senhor Ninguém corre atrás de mim como se eu fosse o maior tesouro da terra. Homem Livre? Liberdade? É o maior escravo que existe: O que pensa estar livre quando na verdade não é. Pensei bem, porque levantei minha saia ou porque botei uma camisa mais decotada você se atirou e atirou seu dinheiro em minhas pernas. Lembra-se, eu era tão pequena e tão inocente, mas te satisfazia na cama como ninguém... Ainda me lembro como tu fingias acreditar em mim, ainda era uma pobre menina virgem quando o rapaz de minha rua me fez mulher, me fez orifício e deposito de coisas jogadas na terra, ainda me lembro quando tu me olhaste com aqueles olhos de pena e me acolhestes em teus braços como se a menina de todos fosse somente tua menina e assim tu pensavas que poderia dormir em paz. Mas logo começou a acordar de madrugada, as crises de ciúmes, as passageiras fases depressivas e as curtíssimas fases de autoconfiança. Sim, todos os homens antes de você deveriam morrer, tu me tratavas tão bem e eles não, mas mesmo assim preferi, em atitudes simples, ficar com eles ao invés de ficar com você, 'Senhor Bobinho'. Ainda me lembro como tu ficavas acordado e ficava me vendo dormir e eu estava fingindo! [Ela sorri docemente] E me divertia muito com você. Mas, tudo que é bom demais não é bom o suficiente para mim e por isso parti.

João que batiza a interrompe, a cabeça e a mulher se entreolham com raiva, ela se cala e ele continua a falar:

- Uma dica para você, meu querido criador. Você só existe para uma coisa: Fale para seus amigos, fale para seus familiares, para teus amores que você só existe para Criticar as coisas que consegue perceber, caso contrário, se tu fosses somente aceitar o que te é imposto não estaria aqui a falar comigo. Não se esqueça de para que estava sendo utilizado o batismo no tempo que vossa senhoria era vivo: Para o renascer, para a conversão, para a renovação e confirmação de certas verdades. A partir de agora deves renascer para outras muitas e mutáveis verdades, conceitos que não serão bem aceitos como verdade, mas no fundo tu saberás que por um segundo só tu dissestes a verdade mesmo que no outro segundo tu saibas que era tudo mentira. E que nossa vida não passa de uma sucessão de sim e não, de verdades e mentiras, de amores e ódios e de muitas outras sucessões, "processo dialético" na vida e por último: Não se prenda tanto as tuas correntes, um dia eles se partirão e tu cairás enfraquecido no chão, sem amigos e sem amores, é o momento de tua morte, a morte de teu espírito livre.

As palavras de João me foram confortantes, mas, o que poderia me confortar num lugar como este? O que poderia confortar minha alma num lugar onde todos que amo me despreza e desconhecidos me proferem palavras confusas? Só me resta um lugar, voltar para a tumba e lá ficar até que venha o fogo que desejo com tanta vontade. No jardim a direita encontro uma tumba aberta com um confortável e bonito caixão dentro, ainda reluzindo como se tivesse sido depositado hoje. Deito-me suavemente para não perturbar o companheiro de sofrimento e penso se para ele seria uma agonia também estar ali. Começo a pensar nas coisas que a meretriz me disse, porque sou assim, porque gosto de acolher as pessoas que não deveria acolher, porque para mim todos devem ser acolhidos? É um sinal de minha fraqueza querer acolher esperando ser acolhido, imaturidade e fraqueza, características que apregoava docemente as pessoas que eu odiava, sim, as pessoas são como espelhos, vemos nelas os nossos maiores defeitos e ainda somos capazes de cegamente acusa-las! Como fui imbecil e humano. Enquanto penso, sinto e ouço barulhos vindos do caixão, saio do buraco e sento em sua borda vendo a tampa se levantar, lá de dentro vejo ficar em pé meu querido familiar e P******* que tanto amei e que falecera depois de meu pai. Que conselhos este me daria? Confortar-me-ia da forma que espero ou espero que minha mãe morra para receber tal conforto? [para dizer a verdade, a muito tempo que o conforto de minha mãe não me é suficiente] Com seu sorriso, meu segundo pai começa a falar, começa a me falar com sua voz forte e decidida:

- Porque não o suicídio? Era possível quando ainda não sabias que de nada sabias. Quando tu eras jovem, as coisas já eram difíceis para você, suas forças já minguavam para trabalhar, estudar, comer e até mesmo se divertir, pouco a pouco as coisas começavam a perder a graça para você, primeiro os objetos mais próximos, depois as construções, as pessoas de tua sala de aula, as pessoas de teu trabalho, não existia felicidade para ti a não ser quando estava com o que restara de tua família e quando estava com uma bela guria em teus braços [ o que era raro até então devido a tua timidez] e eu vi esta tua tristeza se transformar em potencial, em potência e vontade de destruir todas as coisas mas, cego como estavas, não percebeu que o que mais tu destruías era tua pouca vontade restante, teus textos, tuas poesias, teus discursos e tudo mais era um movimento de destruição de tudo ao teu redor, tu eras como uma dinamite explodindo ao teu redor e a si mesmo. Ainda pensastes em voltar atrás, mas como bem sabes agora, ao dar o primeiro passo na corda bamba não é possível voltar. Voltar ao passado, ao antes, ato impossível e demasiadamente desejado pelos homens. Cansado então de lutar e com medo do que se apresentará para ti em breve, vós vos reclinastes sobre o trabalho e se fez logo dono de muitas almas já que sempre teve uma vontade de revelar as coisas, revelou assim novas formas de se explorar e de se desenvolver à custa dos outros e não pense que em vida recriminei tais atitudes, na verdade queria o mesmo para todos os meus três filhos e você conseguiu antes de que eu pudesse ver se eles tiveram o mesmo destino já que morri muito cedo [incrível como meu segundo pai aposta na vitória de seus filhos mesmo sem ter tido a oportunidade de ter visto com seus olhos mortais] mas, confio na decisão de Deus que mandara aqui apenas para pagar meus pequenos pecados e entre eles está esta minha vontade doentia de ver meus parentes triunfarem mesmo que as custas de outros, "amar ao próximo" que nada, o desejado é ter sucesso e trazer este sucesso para a família. Agora cumpro pena temporariamente por estes pecados, mas o teu maior erro que te sentenciará para sempre ao inferno ainda está para se apresentar, teu ultimo fantasma.

Quando, aos vinte anos, aquele senhor me disse que eu teria somente mais dez anos de vida eu fiquei com muito medo, o frio na espinha, a sensação de estar deslocado do tempo e do espaço, todos os sintomas do medo que sentimos quando a morte se aproxima: sentimento semelhante senti na morte de minha madrinha, na morte de meu avô, na morte de meu cachorro, na morte do meu colega de sala, na morte de meu pai, na morte de meu segundo pai, na morte de minha esposa e na minha morte. Semelhante sensação macabra eu tive no momento que vi, segundo meu tio, o meu ultimo fantasma, a derradeira cobrança de minha consciência: uma pequena esfera rodopia e se acolhe em meus braços. A representação de um pequeno ser, um recém nascido. Seus olhos se abrem e seu rosto esboça uma expressão de ira e começa a me falar, mais uma cena absurda nesta narrativa absurda.

- Um dia eu nasci não pedi para nascer e você me passou esta maldição de estar vivo e nem ao menos ficou ao meu lado em meus anos de inocência para depois me deixar como fez o seu pai. Como pai, tenho nada a reclamar já que tu não fostes um pai de verdade, deixando a responsabilidade de minha criação para o mundo e isentando-te de tudo com a simples desculpa de que eras muito jovem para isso, para assumir tais responsabilidades. E a vida de minha mãe que você estragou sem pestanejar, mesmo se sentindo bem por ter dado a ela dois anos de seu mais puro amor e dedicação, a condenou a uma vida toda de responsabilidades que tu não assumiste. E por toda a vida você acordou de madrugada ao ouvir o meu choro em sua mente, sentia-me por perto e eu estava longe e logo depois vieram teus outros filhos, como podes abandonar a mim e a minha mãe para engravidar aquela prostituta que não é nada senão um par de coxas e falta de educação? E não se esqueça que cresci com raiva de ti e dela e desejei ser sempre mais unicamente para destruir-vos, não se esqueça que perdi minha vida pensando em como chegar ao fim de meus desejos e você é responsável pela meu suicídio, não fui eu e sim você que se pegou a faca para furar-me o pescoço, você é meu assassino [uma forma do espírito do suicida se aliviar e conseguir, finalmente, descarregar sua ira em seu pai] e não, não falo com nenhum exagero. E para ser mais sincero ainda, eu sempre te amei por debaixo de meu ódio, por debaixo de minhas blasfêmias eu só queria ouvir a tua voz me dizer que me ama e me sentir amada por ti de verdade, não somente por cartas mal escritas sem o mínimo de vontade ou sentimento e por presentes caros e mal escolhidos. Tudo que fiz, dos meus textos, dos meus estudos e até mesmo meu suicídio foi para te chamar atenção, para ser de novo a 'sua filhinha', mas agora no inferno tudo está esquecido, apenas te odeio como nunca te odiei e vou concentrar todas as minhas forças em fazer mal a ti e a tua família ainda viva. Solte-me que não preciso mais de ti!

O recém nascido se transmuta em uma jovem de aparentes vinte anos, branca, com cabelos castanhos que sai andando em direção ao rio, vai se batizar com João já que não fora devidamente batizada por seus pais. Um olhar para trás, aquela mesma expressão de raiva que nasceu em seu avô, continuou em seu pai, depois nele mesmo e enfim em sua filha, aquele olhar que desmantelava o coração, que fazia chorar.Tudo se desfez em um nada, uma sombra. Agora parecia que eu estava ali, com minha alma consciente das coisas, mas ao mesmo tempo eu não estava, todas as pessoas que conheci se tornaram apenas vultos distantes, todos pareciam tão distantes, eu até ouvia o chamar do seu nome, até queria me mover, até queria chamá-los para perto de mim mas tudo isto eram atos impossíveis de se realizar. Pouco a pouco pude perceber minha total incapacidade de se movimentar, apenas meu raciocínio estava como antes. Via e podia tocar em minhas memórias, todas elas, do dia que nasci até hoje, minha dolorosa reflexão. Uma parede branca, uma luz que cegava, seria de fato o céu? Sinto um tremor, ouço vozes, ouço falar em eletricidade, em choque, o ar entra pelos meus pulmões como no de um recém nascido, ele queima, volto à vida, volto à vida? O que é a maldita vida?

"Todas as coisas boas são fortes estimulantes em favor da vida e, até mesmo, um bom livro escrito contra a vida". Tendo uma vez visualizado as intempéries do inferno e sabendo do movimento inexorável que me levará até ele enquanto eu crer que este inferno, este satanás, este deus, este eu realmente existem começo minhas reflexões. Estou preso a uma cama de hospital, fui recuperado de um infarte, fiquei em coma por três dias [foi o que me contaram: Verdade? Algo que se remonta a verdade] e agora estou preso e pergunto se um dia já fui livre. As pessoas passam por mim, os doentes, os ainda mais doentes e pergunto: Por onde começar meu ataque? O que há para ser destruído ainda nesta modernidade onde as estruturas se diluem e tudo se converte a uma coisa: o capital e os benefícios que este pode proporcionar. A minha resposta seria certamente: O capital, mas quem gostaria de ser pobre e não ter dinheiro para comer, ler, escrever quem e o que quisesse? Neste ponto chegamos a uma conclusão: "Só se deve falar quando não se tem o direito de se calar e só falar daquilo que se superou – todo o resto é palavratório, "literatura", falta de disciplina", como posso falar de superação do capital se, sou e gosto de ser altamente sustentado tanto material quando ideologicamente por ele? E temos como exemplo mais material disto as máquinas que aqui me sustentam e impedem que eu volte para o meu pequeno inferno [agora falo com desdém] facilmente ao meu alcance graças ao capital que acumulei em meus muitos anos de trabalho e devo adicionar que estou aqui também por ele, é uma ironia: trabalho para um dia ser salvo das doenças que meu trabalho me proporciona com todo prazer, é o preço por ser vender a "alma". E de todas as coisas que vi neste inferno pude perceber que são coisas que vêem de dentro de mim, são criações minhas e que inexoravelmente estamos condenados a este inferno quer seja por nossa vontade ou pela vontade de outros, os traumas, os desejos não realizados, as decepções em relacionamentos, todas estas coisas são ambientes e personagens de nosso inferno, de nosso drama e estes personagens ao se confrontarem com o sempre herói, nós mesmos, são os que devem nos derrotar, antagonistas por natureza e ao mesmo tempo enriquecem nossas cenas neste teatro tão bem ensaiado. De certo existem regras para a exceção, mas aqui falo de mim, todas estas palavras são sobre e para minha pessoa.

E todas as noites acordo suado com um livro jogado ao lado de minha cama, toda noite um livro novo, uma busca nova pela libertação, onde estará? Onde estará? E com certeza não está em alguém ou em algo que não seja minha pessoa. E escrever minha aventura infernal foi o primeiro passo para me descobrir.


Autor: Rafael de Andrade


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