Senhor Q.



O mendigo levantou e esbravejou. Suas roupas, apesar de sujas são de marcas famosas.Acreditam que foram roubadas. Abre e fecha a boca. Vocifera contra algo incompreensível ate mesmo para os mais interessados.Com a barba grande e o órgão amostra, fala do verme, do bacanal e urina na sarjeta.

Difícil imaginar que o mendigo era filho daquela distinta senhora.O pai, bacharel em direito, jovem já era auxiliar direto de uma juíza. Com este oficio, trazia grandes somas de dinheiro para casa. A rotina da mãe era fazer compras, ir ao cabeleireiro e mandar nos empregados. Casualmente, um amante. Por vezes foi surpreendida pelos filhos. Comprou o silêncio com algumas notas. A irmã estava na graduação e em casa, recebia tratamento pior que o irmão mais novo. Que recebia tratamento de rei, um tratamento que é inferior somente a do pai. Acordava tarde. Tomava um desjejum servido no quarto, pronto no terceiro bocejo. Passava o resto do dia se comunicando com os amigos. Conversas inúteis. Reclamava, adorava reclamar, dos pais e do mundo.

O pai e a irmã acordavam cedo. Se arrumavam e cada um seguia seu caminho. Não voltavam ao lar até o inicio da noite. No almoço, esperava por horas com fome, para se alimentar com ele. Que se masturbava freqüentemente, trancava as portas. Tudo muito natural. E todos tinham que esperar. No almoço, as leguminosas eram servidas em sentido horário e seguindo sempre a mesma ordem. As carnes, bem cozidas de um lado e cruas do outro. Comia sempre do lado direito da mãe e enquanto o fazia circulava para o lado esquerdo. Todos que na mesa estavam deviam fazer o mesmo. Assim que terminava, voltava a suas conversas.Sábado e domingo, se enfiava nas festas, boêmio e nada poético, se envolvia em confusões. Tinhas as penas aliviadas pela influência do pai junto às autoridades. E a "vista grossa" se estendia para dentro do lar.

Na segunda gravidez, a mãe tentou abortar. Pai foi contra e a gestação seguiu seu curso natural. A mãe desconfiava que suas atitudes tivessem prejudicado o feto. O varão nasceu saudável e a família se alegrou. Se sentiu culpada a mãe. Por isso, mesmo depois de tantos anos, ainda realiza todos os gostos do rapaz. O trata como criança. O acostumou a ter tudo que desejasse.

A tal ponto chegou este tratamento que, certa vez a empregada, mulher jovem e bonita, despertou desejos no rapaz. Com uma boa quantia de dinheiro, a mãe negociou para o filho. Os custos da relação mais o segredo renderam a mulher dez vezes o seu salário. Para o pai, o dinheiro foi gasto pela mãe. Nunca soubera de nada sobre o caso.

Na formatura da irmã, o pai infartou. Morreu horas depois. Bêbado, o rapaz não presenciou nada. No exato momento em que o médico veio avisar, mãe e irmã perceberam que tudo iria mudar.

Pouco depois, a mãe começou a vender as propriedades que herdou. Logo se casou com outro homem rico, conseguindo manter sua riqueza e seu modo de vida. A irmã saiu de casa para viver em uma reserva florestal. Trabalhando como voluntária, recebia somente o que vestir e se alimentar. Via a família quando dava. Se recusava a ver a mãe, pois a considerava uma prostituta. Uma "senhora - prostituta".

O rapaz superou todas as expectativas. Usou a herança para estudar. Se mostrou um aluno dedicado, elogiado pelos professores. Dedicação que durou pouco mais que um semestre. Inclinou rapidamente para as festas, para prostíbulos. Passou a estar embriagado todos os dias. A mãe não o mimaria por muito tempo. Estava grávida do novo marido e desta vez sem mágoas. A irmã escreveu várias cartas. Agora não temos mais o pai – dizia. A mãe já tem outra família – suas cartas repetiam incessantemente. De nada adiantou, continuou a gastar sua herança na devassidão.

E assim continuou. Desistiu dos estudos. Passou a gastar seus recursos de forma mais agressiva. Bêbado durante o dia e a noite na companhia de prostitutas, sempre as mais caras. Depois de gasta toda a herança, sua mãe ainda patrocinou por um tempo seus vícios. Sem dinheiro, pediu para morar com a mãe. Esta não se opôs a decisão do marido. Amava o dinheiro muito mais do que o filho. Não podia trocar o luxo por ele. Estava na rua agora.

Vendeu suas roupas. Só sobrou a que estava no seu corpo e a usou até a deterioração. Vendeu a todas e gastou tudo no vicio. Não podia mais entrar no prostíbulo. Seu cheiro e sua vestimenta incomodavam a todos. Deixou as belas prostitutas que o cercavam enquanto tinha dinheiro para se satisfazer com mulheres que encontrava na rua. Fediam tanto quanto ele. Percebeu então que estava sozinho. Que não sabia se proteger.

Certa noite, um conhecido da família lhe ofereceu carona. Deu roupas novas, fez uma farta refeição e o embriagou. Na bebida, algo que o deixou com o corpo adormecido. Manteve relações com ele. O mandou para a prisão. Lá lhe foi explicado as conseqüências de delatar a violência. O mesmo poder que o mantinha fora da cadeia quando seu pai era vivo, agora o levaria para ela. Humilhado e impotente, caminha para sarjeta. Sem vontade de chorar ou de voltar atrás. Tinha vontade de permanecer ali, no seu belo erro. Ficou calado e aceitou se encontrar outras vezes. Recebia dinheiro em troca dos favores. Gastava o que recebia em mulheres e bebidas. O fazia para satisfazer seus vícios, suas vontades.

Andando pelas ruas ouviu falar de um tal senhor. Que dava proteção, prosperidade e redenção. Seguiu um casal de idosos até este senhor. Numa grande construção, um homem gritava para muitos que ali escutavam. E ficou a observar. Começou a ficar com medo. Suas ações o levariam ao inferno. Queria ser como o homem que gritava. Grandes carros, uma casa, refeições fartas e viagens. Tudo queria eseria dado.

Trabalhou pela primeira vez a serviço deste senhor. Que nunca vira ou sentira, como muitos afirmavam. Conseguiu um trabalho. Viajaria para repetir as palavras do homem. Nesta viagem, o homem, seu líder, começou a gastar o dinheiro que recebia daqueles que o ouviam. Gastou com bebidas e mulheres. E o rapaz o seguiu, gostava de seus vícios. Bêbado, o homem contou a verdade. Enganava a todos. Usava o dinheiro para seu próprio consumo. Não havia senhor.

Resolveu então, iniciar seu próprio meio de apropriação. Voltou às ruas de sua cidade natal. Começou a repetir as palavras do homem nas ruas. Dizia profetizar na vida dos outros. Profecias que nunca se realizavam. Começou a falar numa língua estranha. Só se fazia entender quando pedia comida ou dinheiro. Começaram a contar histórias sobre seu passado. O povo tentava adivinha sua história. Disseram que era um estrangeiro, que falava uma língua de fora. Que tinha ficado louco por uso de entorpecentes. Que tinha se perdido na mata ou que era filho de uma importante família da cidade e que ficara assim depois da morte do pai. Poucos acreditavam que ele era representante daquele senhor. E isso o mantinha vivo.

Tinha sido presenteado com um lugar para morar. De alguém que acreditava nele. Todo dinheiro que recebia, comprava revistas. Revistas de decoração ou que falassem dos famosos.Colava na parede recortes das mesmas. Um pedaço de riqueza na sua vida. Todas as noites, tomava banho, se arrumava e saia a procurar conversas inúteis. Para estar no meio dos vencedores, sendo ele um perdedor. Rapazes cujo pais ainda não morreram. Uma forma de voltar para seu antigo mundo.

Sem seus mimos. Sem sua empregada. Fica como louco a vagar. Pobre de vontade e de riquezas. Que se manteve para sempre pobre e para sempre será.

...


Autor: Rafael de Andrade


Artigos Relacionados


A Viagem

Se Agarrando Ao Tranco Da Esperança.

Emoção Partida

Black Night

Ligando Os Pontos

Após Alguns Anos De Casados...

Doador