Uma antropologia do trabalho



Uma antropologia do trabalho*

Neri de Paula Carneiro

O homem aceita o trabalho para conquistar o ócio. E hoje, quando pela técnica e pelo progresso social e político, atingimos a era em que, no dizer de Aristóteles 'os fusos trabalham sozinhos', o homem deixa a sua condição de escravo e penetra de novo no limiar da idade do ócio.

Oswald de Andrade

Introdução

Por que o homem tem que trabalhar? Esta é uma das indagações que tem angustiado a humanidade. De um lado alguns pensadores tem apresentado uma resposta que prioriza o homem como ser que nasceu para o prazer da vida. Para a auto-realização que se dá pela ociosidade. De outro lado há aqueles que defendem a trabalho como sendo uma das poucas coisas que realizam a vida humana, pois mediante o resultado do trabalho o homem pode construir aquilo que sonha. Onde está a verdade? O homem existe para trabalhar ou para "curtir" a vida? Ou haveria uma alternativa mediana, afirmando que o homem está no mundo para superar as limitações que lhe são impostas e que a superação é o que lhe dá prazer. Mesmo que essa superação seja superar a tarefa que seu trabalho lhe impõe cotidianamente?

É isso que se discute neste pequeno artigo muito mais fruto de reflexões que de análise bibliográfica.Trata-se de um artigo que pretende colocar uma questão, mais do que respondê-la.

1- O homem

Uma primeira discussão deve ser feita – como já o fizemos em outras oportunidades – diz respeito à indagação sobre quem é o ser humano: o homem, que realidade é essa? Várias ciências se ocupam dessa indagação. Vejamos o que afirma um dos grandes pensadores que se debruçou sobre a questão da busca de explicação para o ser humano, dizendo que "somos inevitavelmente centro de perspectiva em relação a nós mesmos" (CHARDIN, 1986, p. 25). Isso implica dizer que não importa de que estejamos falando, o ponto de partida para qualquer discussão será sempre o ser humano. Podemos falar sobre as galáxias, ou sobre o trabalho, mas sempre será uma indagação humana e a resposta será sempre para satisfazer uma expectativa humana.

O padre Batista Mondin (1982) apresenta o que chama de fenomenologia do homem, descrevendo rapidamente, dez de suas características. Começa com a "dimensão corpórea" do homem (Homo somaticus); descreve a "Vida Humana" (Homo vivens), buscando as origens da vida humana. Passa, a seguir, a discorrer sobre o "Conhecer Sensitivo e Intelectivo" (Homo sapiens) e a capacidade humana de conhecer as realidades. À discussão sobre "vontade – Liberdade – Amor" (Homo volens) o padre italiano apresenta o argumento da centralidade da vontade. O "Problema da Linguagem" (Homo loquens) se insere no centro da filosofia da linguagem e da capacidade humana de comunicação.Analisa, ainda a dimensão "social e política do homem" (homo socialis), analisa "a cultura e o homem" (Homo culturalis). Faz um histórico do "Trabalho e Técnica" (Homo faber), discutindo as concepções de trabalho ao longo da história. Termina analisando o "jogo e o divertimento" (Homo ludens) e a relação do "homem e a religião" (Homo religiosus).

E nós poderíamos continuar a lista de caracterizações: o homem é uma teia de relações, é um ser que depende do seu meio, é um ser inquieto, inconformado, assentado no mundo físico, O homem é um animal terrestre e o mundo físico é uma condição síne qua non para sua sobrevivência. (MELLO, 1982, p. 37), mas perscrutando o infinito. Talvez em razão disso o padre T. Chardin tenha dito que "encontramo-nos colocados num ponto singular, sobre um nó, que domina toda a fração do Cosmo atualmente aberta à nossa experiência. Centro de perspectiva, o Homem é simultaneamente centro e construção do Universo." (CHARDIN, 1986, p. 26).

Em síntese é o homem que dá sentido a todas as realidades. Dá sentido à existência dos existentes. Caracteriza-se como esse emaranhado de aspectos e dimensões. Não se esgota ou limita-se a esta ou àquela dimensão, mas é um emaranhado rizomático de capacidades e possibilidades. Em razão disso podemos dizer que o Homem não é, mas constrói-se cotidianamente a partir de um elemento que lhe é essencial: a cultura ou as manifestações culturais. Mas permanece, ao mesmo tempo que trabalhando, buscando o sentido de sua própria existência.

2- O sentido da existência

O ser humano pode ser visto, analisado e entendido a partir dessas e de várias outras concepções e perspectivas. Mas elas ainda não dão conta de resolver um dos seus principais, mais antigos e mais angustiantes problemas que é o do sentido da existência. Em função disso é que se pode afirmar: "homem não se contenta em permanecer fechado em si mesmo, reconhece que lhe corresponde profundamente viver por um ideal, por uma finalidade última" conforme as palavras de Sílvia Regina R. Brandão (2005). Isso corresponde às mais antigas indagações norteadoras da vida humana: De onde vim? Para onde vou? E a mais intrigante de todas as indagações: O que estou fazendo aqui?

Olhando a partir de um ponto de vista religioso fica aparentemente mais fácil responder à questão do sentido da existência. Mas na realidade a resposta não é assim tão simples. Pois teríamos que saber a partir de qual segmento religioso dar a resposta. Falando a partir do cristianismo a resposta é uma; se a partir das atitudes religioso-filosóficas orientais (budismo, hinduismo...), a resposta já seria outra. O espiritismo, por sua vez tem outra postura.

Para o cristão o homem está no mundo em busca do seu fim último que é glorificar a Deus; mas por ser impuro (portador do pecado original e de outros) deve, então, purificar-se com a finalidade de voltar para Deus. Assim se a tendência é voltar significa que veio Dele. E com isso já fica resolvido o problema não só do fim como da origem. E o existir ganha uma conotação angustiante, pois não lhe coube escolha nem em nascer e por ter nascido já se manifesta pecaminoso. Lhe é concedida a vida como um presente, mas esse presente vem com defeito de fabrica: trás a mancha do pecado... além disso, há um outro elemento a ser considerado na perspectiva cristã: afirma-se que o ser humano é criatura, e que, como tal deve prestar culto ao seu criador. Mas seria esse o sentido da existência humana? O ser humano existe para prestar culto ao seu criador? Mas isso não seria diminuir o criador, que necessitaria de sua criatura para receber louvores?

A partir de uma postura hindu-budista o homem tem outra finalidade de estar no mundo. Trata-se, também, de um processo de purificação, com a finalidade não de voltar, mas de "mergulhar" no absoluto, a partir da meditação. Assim o homem não "iria" para outro mundo, encontrar-se com o absoluto, mas a partir da meditação e da entrega encontraria sua realização no próprio aqui e agora re-significado pela contemplação e pela meditação. Esse processo de meditação deveria conduzir a pessoa a um alheamento em relação às realidades até chegar ao ponto supremo da completa indiferença a si mesmo e às exigências do cotidiano. A questão que se coloca, neste caso, diz respeito justamente a esse processo de esvaziamento que se assemelha a uma espécie de despersonalização. Seria esse o sentido da existência? Viver para não ser?

Olhando de uma postura espírita o ser humano está em processo de aperfeiçoamento. Dependendo de suas atitudes – boas ou más – pode evoluir ou regredir. Então a finalidade da permanência do homem no mundo é a purificação. Os atos bons o elevam e os maus provocam declínio, num processo que se pode dizer infindo. Pode ser visto como ascendente, mas se olhado do ponto de vista filosófico, pode-se dizer que esse é um processo infinito, pois sendo limitado será sempre imperfeito, sendo que a perfeição só existe no criador incriado. O questionamento a ser feito refere-se, justamente, a esse processo de transmigração: admitindo que ele ocorra, quando termina? Como encaixar o livre arbítrio nesse processo, pois o ser humano pode permanecer eternamente fazendo escolhas que não o levem à perfeição?

Note-se que todas estas atitudes religiosas dão respostas pré-estabelecidas para o sentido da existência. Refletem sobre o destino humano, mas não discutem a razão do estar no mundo. Daí os questionamentos: Se o homem está no mundo para se purificar, significa que é impuro, ou está impuro. Mas como chegou a essa impureza? Por que se tornou impuro? Se sua origem é uma divindade, por que essa divindade o cria, ou o coloca no mundo como ser impuro? Não poderia tê-lo já criado sem pecado? Por que nasce pecador, se a finalidade é a purificação e libertação do pecado? Ou o homem é apenas um marionete nas mãos de uma divindade que gosta de se divertir às custas dos dramas humanos? Que divindade é essa que, aparentemente, se diverte com os dramas e sofrimentos humanos, para, só depois de muito sofrimento, leva-lo à perfeição? Olhando deste ponto de vista não tem sentido o ser humano ter sido colocado num mundo adverso, viver e sofrer as conseqüências da vida para, só depois de sua morte, poder encontrar a realização – isso se tiver vivido de acordo com os planos secretos de seu criador... Portanto, do ponto de vista religioso parece que seria muito mais sensato o homem já ter nascido puro! E como ser puro poderia mais facilmente manter-se em contato com a fonte de sua pureza.

Com isso se verifica que a dimensão puramente religiosa não explica o sentido da existência humana. Mas o homem sabe, de alguma forma não racional, que sua vida não se resume a esta existência material e cotidiana. Por tradição ou por motivação própria, crê em uma vida pós-vida. E, embora sem saber como nem o porquê dirige-se para a morte, que é o caminho ou a entrada na outra dimensão que acredita existir. E que, de alguma forma, dá algum sentido ao existir. Ou seja, o homem existe para morrer. "O caminho da vida é a morte" como afirma a letra da música de R. Seixas. Mas qual o sentido da vida? E agora, também, da morte? Ou é a morte que dá sentido à vida, como ensina Paulo de Tarso: "viver é bom, mas morrer é lucro"

Mas, e se o homem olhar para si de um ponto de vista material?

Também aí precisa de um sentido para sua existência. Mesmo admitindo não haver nada após a morte, permanece a busca pelo sentido do existir. E aqui entra uma questão complementar: se o homem existe para morrer, por que viver?

Se a vida, tendendo para o transcendente, já é um problema, mais problemática ainda é a existência sem uma perspectiva de pós-existência. Uma vida pós-vida terrestre...

O período que se convencionou chamar de Helenista foi um dos que mais deu ênfase a essa reflexão e à questão do sentido da existência. Um exemplo cabal disso pode ser visto no Cinismo, corrente que pode ter se originado em Sócrates, (REALE; ANTISERI, 1990), mas que teve seu maior expoente em Diógenes que durante o dia andava pelas ruas de Atenas, com uma tocha acesa, procurando um homem. Também os estóicos e os epicuristas (hedonistas) se colocaram essa mesma indagação. Para os estóicos o sentido da existência era a superação, a constante vigilância e esforço para vencer as paixões (MONDIN, 1991). Essa superação podia ser feita mediante a reflexão e busca do conhecimento. Por outro lado os epicuristas viviam para e pelo prazer (daí seu epíteto de hedonistas). Também buscavam a sabedoria, mas a sabedoria que gerasse prazer; um prazer que não fosse o carnal, mas o da posse do saber.

Em todos os casos a finalidade da existência era a superação de limitações. A razão de ser do homem, portanto poderia ser entendida como uma vida voltada para a superação das limitações. Tanto das limitações físicas como intelectuais; e mesmo das limitações impostas pelas convenções sociais. E em função disso pode-se entender tanto esforço que as pessoas fazem para atingir pequenos ou grandes objetivos; pode-se entender os esforços hercúleos para a superação ou para a auto-superação.

A razão da existência pode ser vista como um colocar-se e superar desafios. Numa corrida constante contra as limitações. Uma das faces dessa luta contra os desafios, em busca da superação é o que se chama de trabalho. E, à sensação de vitória, após esse esforço é a possibilidade de gozar momentos de lazer e de ociosidade. É o momento de retro-alimentação para a nova batalha, em busca do novo objetivo... numa constante evidenciação de que o homem é insatisfeito... E também inacabado?

3- Aspiração por lazer e ociosidade

Cristãos, materialistas, capitalistas e todos as outras cosmovisões defendem a idéia de que o homem tem que trabalhar. Para quê? Com que objetivo? Para continuar existindo, diz SAVIANI (2003, p. 152): "O homem, para continuar existindo, precisa estar continuamente produzindo sua própria existência através do trabalho. Isso faz com que a vida do homem seja determinada pelo modo como ele produz sua existência". A afirmação de Saviani é um reflexo da explicação marxista, dizendo que o ser humano necessita, constantemente construir sua existência material pelo trabalho. De acordo com essa concepção o homem existe pelo e para o trabalho.

É bastante comum que se ouça a expressão: o trabalho dignifica o homem. Como isso pode acontecer? Qual é o trabalho que pode dignificar, quando se vê, cotidianamente os trabalhadores maldizerem a escravização a que são submetidos pelo trabalho? Como pode ocorrer a dignificação quando o trabalhador não recebe os frutos do seu trabalho ou não pode dispor de seu tempo para realizar as obras de que tem vontade ou necessidade? Como se sentir dignificado se percebe seu trabalho como uma limitação às suas aspirações? Como dizer que o trabalho é dignificante se os frutos do trabalho estão produzindo a riqueza de outro e o ato de trabalhar é um momento de escravização?

É neste ponto que entra em discussão uma dimensão da vida humana, ou uma das aspirações básicas do homem: a ociosidade (LAFARGUE, 2000). Entendendo a ociosidade não como aquela situação de deixar de fazer algo movido pela preguiça, mas a situação em que a pessoa se dá tempo para atividades a serem desenvolvidas além do trabalho; aquelas atividades que se realizam pelo puro prazer de realizá-las, nos momentos de lazer ou no cotidiano. Tendo assim o trabalho como instrumento de sobrevivência e a ociosidade como meio de vida.

Entra aqui a dimensão lúdica da vida humana. Entram aqui as atividades dos jogos, individuais ou grupais, sendo esta mais uma característica própria do homem, que "inventa jogos e diverte-se como nenhum outro animal sabe fazer" (MONDIN, 1982, p. 209). Para ser mais preciso pode-se dizer que o homem busca a satisfação e a alegria nos jogos e demais divertimentos. Vence os obstáculos para sentir-se vitoriosopois isso lhe dá prazer. Participa de atividade laborais, não só para receber o justo pagamento, mas porque no ato de fazer seu trabalho sente prazer. A busca e a realização de obras prazerosas acaba sendo um dos motivos e sentidos da existência humana. Não importando se esse fazer é trabalho ou são os jogos; não importa se é atividade laboral ou lúdica, desde que feita por e pelo prazer.

E assim pode-se dizer que qualquer atividade, pode ser lúdica, prazerosa. Inclusive o trabalho, pode ser visto como uma atividade prazerosa – embora não se possa dizer que seja lazer. Como se pode caracterizar uma atividade lúdica? MONDIN (1982, p. 212) dá uma indicação: "Para que uma atividade mereça ser considerada lúdica, o divertimento, o prazer, a satisfação não devem entrar nela somente como ingredientes, mas devem constituir seu objetivo primário". Na atividade lúdica, portanto o que conta não é a forma como a pessoa se diverte, mas a vontade de se divertir. O ato é lúdico não por que provoca alegria, mas por que é buscado pela sua capacidade de ser prazeroso e gerar prazer.

E a ociosidade?

Quando a atividade prazerosa não é o trabalho em si mesmo, o homem busca o prazer nos momentos de ociosidade. Naqueles momentos em que está se dedicando a fazer somente o que lhe proporciona prazer. E ao fazer isso estará se realizando, pois estará se sentindo feliz, sabendo que, como diz BRANDÃO (2005): "a felicidade está vinculada à autenticidade da vida humana, à possibilidade de relacionar e integrar cada aspecto parcial com um ponto unitário, na busca da realização total, da plenitude do viver humano". Ou seja, o ser humano atinge a felicidade na ociosidade porque estando ocioso pode dedicar-se exatamente àquilo que não lhe causa aborrecimento, ou que não lhe é imposto; ao que realiza por iniciativa e impulso próprio, sabendo que a execução disso que está realizando não lhe dará outra recompensa além da felicidade e do contentamento. Essa atividade pode ser de lazer ou de trabalho, mas será uma atividade prazerosa. Vale destacar, que muito do progresso humano se deve aos homens e mulheres que se dedicaram ao ócio. Pois o ócio, além de prazeroso é criativo: de mentes ociosas e não atribuladas éque nascem as novidades.

4- Necessidade de trabalho para o lazer

Tendo o prazer, a felicidade, como princípios para o sentido da existência, cabe a pergunta sobre a estruturação da sociedade para chegar a esse objetivo. Ou seja, a atual sociedade fundamenta-se e se estrutura em função desses objetivos? Quais são os valores que se pode dizer que fundamentam a sociedade atual? Não é exagerado dizer que o mundo atual, mais do que nunca, sonha com esses objetivos, mas, contraditoriamente, caminha a passos largos afastando-se deles. O corre-corre frenético em busca do "tempo perdido" e que será utilizado na tentativa de produzir mais, está afastando, cada vez mais, o ser humano da edificação de uma sociedade do prazer.

Entre outras o mundo atual pode ser caracterizado como uma sociedade de proprietários. Ou uma sociedade do ter. Mesmo o operário ou qualquer outro trabalhador, possui algo: sua força de trabalho. Diz SAVIANI (2003, p. 155), sobre a atual sociedade: "É uma sociedade de proprietários livres. Considera-se o trabalhador como proprietário da força de trabalho e que vende essa força de trabalho mediante contrato celebrado com o capitalista". Assim temos de um lado o dono da empresa e do outro o dono da força de trabalho. Estabelece-se, então uma relação de troca ou de compra e venda. Mas acaba sendo uma relação desigual pois o trabalhador permanece sendo proprietário apenas de sua força de trabalho. "Ele fica exclusivamente com sua força de trabalho, obrigado, portanto a operá-la com os meios de produção alheios" (SAVIANI, 2003, p. 155). Dessa forma, o trabalhador produz, mas não é proprietário do produto de seu trabalho. Essa relação de troca desigual tem como conseqüência uma desmotivação do trabalhador em relação ao seu trabalho. Passa o trabalhador a realizar sua obra não mais com o prazer de quem produz, mas com a obrigação de quem é submetido. Assim sendo executa sua tarefa desmotivado porque sabe e sente que não nasceu para a submissão.

Mas seria essa a função do trabalho na vida do trabalhador? Parece que não. Como já ficou acenado, acima, o trabalho deve ser não uma manifestação do sofrer, mas um elemento de prazer e realização. Sobre isso podemos ler os três parágrafos seguintes:

"O trabalho é um aspecto fundamental da vida por atender às necessidades humanas, tanto do ponto de vista material como espiritual, já que através das tarefas concretas o homem se sustenta e, ao mesmo tempo, expressa seu modo original de realizar valores em um determinado tempo e lugar.

A descoberta do valor de sua contribuição pessoal para a vida em sociedade é fundamental para o homem contemporâneo que vive em uma sociedade onde é valorizado o individualismo, o isolamento e a competitividade.

O trabalho pode constituir-se em uma oportunidade privilegiada para o homem atual redescobrir a possibilidade de autêntica relação eu-mundo – onde o pessoal não seja negado, esquecido ou dissolvido – na medida em que o trabalhar se torne ocasião de encontro." (Brandão, 2005)

Só faltou a autora afirmar que é a partir do trabalho que o homem adquire os meios para, não só se auto-sustentar, como também se dar prazeres através do lazer e ociosidade. Principalmente por que na caracterização da sociedade atual nem sempre o trabalho tem sido o espaço ou o ambiente de prazer e de realização. Cada vez mais se evidenciam valores contrários a isso; daí a afirmação da autora dizendo que nossa sociedade se caracteriza pela valorização do individualismo, do isolamento e da competitividade.

Essa acaba sendo a dura situação contraditória e paradoxal do trabalho e da vida humana, dentro da sociedade contemporânea. O ser humano que se humaniza pelo trabalho não pode ser feliz no trabalho – pois este lhe é imposto como obrigação e meio de sujeição –, mas não pode ser feliz sem o trabalho – pois sem ele não consegue o suficiente e necessário para sobreviver. Por isso, de modo geral, a sociedade atual é formada por homens e mulheres infelizes dentro dessa realidade contraditória. E a origem dessa infelicidade, do stress e de inúmeras outras doenças da sociedade moderna está não no trabalho que – como dizem muitos – é exaustivo, mas na injusta distribuição dos frutos do trabalho. O que estressa e enfarta não é a carga de trabalho, mas a crescente certeza da não acessibilidade aos frutos do trabalho.

Após a II Guerra Mundial, o processo de industrialização, os inegáveis avanços tecnológicos deram a impressão de que brevemente a sociedade mundial desfrutaria de um bem estar inigualável e nunca antes imaginado. Pregava-se a era do Welfare State, ou a "Era de Ouro", para usar uma expressão de Eric HOBSBAWM (2001). Mas esse "estado do bem estar social" se acabaria nos anos de 1980 e 1990 nas "Décadas de Crise". No período pós-guerra havia a expectativa de reconstruir o mundo esmigalhado pelas bombas e ódios. Era de se esperar, portanto que se desenvolvesse na população um clima de expectativa positiva, confirmada, inicialmente pela expansão econômica. Havia a longínqua ameaça da guerra-fria mas "a situação mundial se tornou razoavelmente estável pouco depois da guerra, e permaneceu assim até meados da década de 1970, quando o sistema internacional e as unidades que o compunham entraram em um período de extensa crise política e econômica" (HOBSBAWM, 2001, p. 225). E uma crise que se revelou não só política e militar, mas também econômica. E por essa razão trouxe consigo o clima e perspectiva de desânimo. Passou-se a constatar que "a Era de Ouro pertenceu essencialmente aos países capitalistas desenvolvidos", afirma Hobsbawm, (2001, p. 255). E essa talvez tenha sido a principal causa do descrédito em relação ao trabalho e à visão de que ele não traz aquilo que é a grande aspiração humana: condições de viver feliz.

E, o que é pior de tudo isso é que, ainda concordando com HOBSBAWM, o que se sucedeu, a partir dos anos de 1980 foi uma fase de crescente desemprego. "A tendência geral da industrialização foi substituir a capacidade humana pela capacidade das máquinas, o trabalho humano por forças mecânicas, jogando com isso pessoas para fora dos empregos" (2001, p. 402). Ou seja, o avanço tecnológico que deveria gerar bem estar social, gerou desemprego, pois as indústrias que contratavam pessoas começaram a dispensa-las, utilizando, em seu lugar, equipamentos robotizados. Os avanços científicos que deveriam ter gerado melhores condições de vida e subsistência, geraram concentração de renda e de poder. Os novos conhecimentos não foram socializados e disponibilizados, mas permaneceram à disposição das empresas, instituições ou pessoas que os financiaram. Houve inigualável crescimento e desenvolvimento científico e tecnológico, mas que permaneceu concentrado em poucas mãos; ou se foi disponibilizado foi com a preços proibitivos. E, nos últimas décadas, cada vez mais associa-se a mecanização robotizada e a informatização. E o drama, na atualidade não é só o desemprego, mas a não existência de emprego. "Os empregos perdidos nos maus tempos não retornariam quando os tempos melhoravam: não voltariam jamais" (2001, p. 403). O que leva muitos a dizer que a sociedade atual encaminha-se para ser uma sociedade sem empregos.

Essa sociedade do desemprego está produzindo uma outra realidade. Produz a afirmação de que se vive não uma crise de desemprego, mas de emprego, sendo que o lado bom dessa crise é que se manifestam oportunidades para as mentes criativas, que reinventam as possibilidades de trabalho, pois mais do que procurar emprego, o homem atual é desafiado a ser empreendedor, criando as próprias oportunidades. E, com isso, se acentua a característica da competição, presente na sociedade atual. Uma sociedade que tende a valorizar a propriedade e a capacidade de produzir para o outro. Mesmo o empreendedor não empreende em nome de sua auto-realização, mas para vender e se manter vivo e na angustia.

Mas foi ainda na década de 1980 que se chegou ao mais dolorido cenário, descrito por HOBSBAWM, referindo-se à segunda metade do século XX: "Mesmo os países pré-industrializados eram governados pela lógica férrea da mecanização, que mais cedo ou mais tarde tornava até mesmo o mais barato ser humano mais caro que uma máquina capaz de fazer o seu trabalho" (2001, p. 403). Isso tudo para dizer que o trabalho humano, que é executado para produzir a felicidade de quem o realiza, tem gerado inquietação e apreensão ante o crescente do desemprego. A mecanização e todos os demais avanços técnico-científicos, que foram apregoados como anunciadores de uma sociedade de bem estar, de lazer e ociosidade, produziram o desemprego e o drama da marginalidade. Mesmo que se admita que o trabalho é indispensável para a vida e a dignificação humana, ele não tem sido esse espaço. E parece que isso foi o que levou o poeta a cantar:

"Um homem se humilha, se castram seus sonhos

Seu sonho é sua vida e vida é trabalho

E sem o seu trabalho, o homem não tem honra

E sem a sua honra se morre, se mata"

Como o sonho está sendo morto? Pelo não acesso ao trabalho; pela crescente onda de programas governamentais de auxílio; pela institucionalização da esmola como meio de vida. O ser humano atual não tem a oportunidade de escolher o que e como produzir sua existência; cabe-lhe receber as migalhas dos auxílios governamentais. E outra vez é o poeta que nos recorda:

"uma esmola

pra um homem que é são,

ou lhe mata de vergonha,

ou vicia o cidadão"

5- Encerrando

Para encerrar cabe uma última pergunta, invertendo a que se fez na abertura desta reflexão: Que é o trabalho, para o ser humano? A essa indagação poder-se-ia responder que é o meio através do qual as pessoas adquirem não só seu sustento mas também e, principalmente, as condições de lazer. Poder-se-ia dizer que através do trabalho é que se realiza o sonho da humanidade, de permanecer não só trabalhando, mas executando atividades prazerosas; não só trabalhar, mas usufruir dos resultados do trabalho e com isso ser e se transformar em pessoa feliz, fazendo do trabalho motivo de alegria e realização. Não só ter oportunidade de trabalho, como, e principalmente, desfrutar da ociosidade, pois está sim é espaço criativo.

E assim, todo trabalhador poderia cantar como canta Zeca Pagodinho:

"Se eu quiser fumar eu fumo

se eu quiser beber eu bebo

pago tudo que eu consumo

com o suor do meu emprego"

Pois a finalidade da vida humana não é o trabalho para a acumulação, mas a busca da ociosidade de onde podem nascer grandes criações; e o prazer de viver a vida com a única preocupação de ser feliz, realizando-se plenamente e criativamente.

Cabe, ainda, lembrar que a busca dessa felicidade passa não só pelo ambiente de trabalho como por todas as dimensões da vida humana. Talvez por isso os homens tenham inventado a escola e o processo educativo para fazer dessa instituição e desse processo um dos mecanismos usados para transmitir às novas gerações aquilo que é o mais importante para a vida das pessoas: a busca da realização. A busca da superação dos medos. A busca daquilo que lhe falta, como na música "Comida", cantada pelos Titãs:

"A gente não quer só comer

A gente quer comer e quer fazer amor

A gente não quer só comer

A gente quer prazer pra aliviar a dor

A gente não quer só dinheiro

A gente quer dinheiro e felicidade

A gente não quer só dinheiro

A gente quer inteiro e não pela metade"

E, se quisermos uma passo a mais poderemos acenar para o sentido da existência humana.Conforma vimos trata-se de uma existência sem sentido em si mesma. Entretanto e já que ela não tem sentido, cabe ao ser humano, em seu processo de trabalho, produzindo cultura, produzir, também o sentido da existência. Já que a existência não tem sentido cabe ao ser humano dar-lhe um sentido...

7- Referências

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BRANDÃO, Sílvia R. Rocha A Vocação Humana: uma Abordagem Antropológica e Filosófica disponível em <http://www.hottopos.com/vidlib7/sb.htm> acessado em 15 de janeiro de 2005

CARNEIRO, Neri P. As Múltiplas Inteligências e Inteligência Musical. Disponível em <http://www.webartigos.com/articles/6198/1/as-multiplas-inteligencias-e-inteligencia-musical/pagina1.html>Publicado em www.webartigos.com em 20/05/2008

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TITIEV, Mischa. Introdução à Antropologia Cultural. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002.

* Artigo preparado para as aulas de Educação e Trabalho, para o 8º período do curso de pedagogia, na Faculdade de Pimenta Bueno, durante o primeiro semestre de 2005.Reformulado foi usado como proposta de reflexão dentro do curso de especialização em Ensino de História, para a disciplina "O mundo do século XX e XXI", ministrado no primeiro semestre de 2008, pelo departamento de pós-graduação da Faculdade de Pimenta Bueno. Partes deste artigo estão publicadas em <http://www.webartigos.com/authors/1189/Neri-de-Paula-Carneiro>; <http://www.artigonal.com/authors_51301.html>; <www.brasilescola.com.br>

Mestre em educação (UFMS). Especialista em educação (UNESC e UNIR). Especialista em Leitura Popular da Bíblia (CEBI) Graduado em Filosofia (UNOESTE). Bacharel em Teologia (ITESC) Graduado em História (UNIR). Professor de Filosofia e de ética na FAP. Professor de História e Filosofia da rede pública estadual, em Rolim de Moura. Colaborador em jornais da região.

<http://www.webartigos.com/authors/1189/Neri-de-Paula-Carneiro>; <www.brasilescola.com.br>; <http://www.artigonal.com/authors_51301.html>; <http://www.webartigos.com/articles/6198/1/as-multiplas-inteligencias-e-inteligencia-musical/pagina1.html>; <http://www.webartigos.com/articles/12481/1/o-sentido-da-existencia-sem-sentido/pagina1.html>

As estrofes citadas, numa feliz coincidência, reuniu pai e filho na mesma análise. Gonzaguinha compôs"Guerreiro menino" e Luiz Gonzaga, em parceria com Zé Dantas, "Vozes da Seca". A letra da música de Luiz

Gonzaga pode ser acessada em <http://letras.terra.com.br/luiz-gonzaga/47103/ > e a de Gonzaguinha está disponível em <http://letras.terra.com.br/fagner/203645/>.

A letra da música "Maneiras", cantada por Zeca Pagodinho está disponível em: <http://cifraclub.terra.com.br/cifras/zeca-pagodinho/maneiras-thsm.html >

A letra da música "Comida" cantada pelos Titãs está disponível em: <http://www.cifras.com.br/cifra/titas/comida>


Autor: NERI P. CARNEIRO


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