Clara, Clarinha, Clarita



Todos os dias da semana parecem ser o último. Na mesma cadeira estofada de flores vivas, reclinada, de frentepara o verde água aprisionado de um lado pelasinserções rochosas, de outro pela imensidão de areia fina, Clara espera que seja esse o último dia. Sabe que ele está chegando, porque a casa, de repente, ficou povoada de entes queridos que há muito não os via. Eles se alternam como numa vigília,confundindo-se com a transparência das cortinas que, ao sabor do vento, espalham-se pelos móveis próximos da grande janela.

Ruídos, deliciosos e familiares ruídos expressam falas, risos, manhas infantis, a xícara se espatifando no chão, vão somando-se às perguntas sobre a saúde e distanciamento espiritual de Clara. Ela quase não quer falar, quer sim reter na memória os rostos familiares, o calor das mãos dos filhos, o beijo dos netos, deliciar-se com a contemplação dos anos construídos, agora expressos em cada pessoa, em cada olhar de amor.

As rugas nos cantos dos olhos, na boca, nas mãos, são pequenas marcas de vida e em cada uma delas lá estão guardados os anos de trabalho, os contos lidos e relidos, os amores contidos e outrosconsagrados. Cada prega da pele conta, por si só, alguma coisa que ainda é viva, resistindo ao tempo e as coisas mundanas.

Clara sente que as pessoas ao seu redor estão preocupadas com suas olheiras, com o suposto ar cansado, com o olhar melancólico. Na verdade nada disso está acontecendo, as olheiras são pelas noites em claro saboreando cada pedacinho da casa, do jardim, da praia, das ondas que teimosamente voltam a todo momento, agarrando-se aos grãos de areia para realmente se sentirem parte do lugar. O olhar melancólico, então, decididamente não existe, o que acham ser melancolia, é docilidade, é afeto espalhado pelas fotografias vistas e revistas durante a semana. Um vai e vem de imagens, deliciosamente colocadas em páginas escurecidas que compõem os álbuns de família.

Um após outro, os dias vão desaparecendo, engolidos pelas noites que, para Clara, são momentos mágicos. Quando todos adormecem, ela encontra-se com sua mais que perfeita lucidez para recordar tudo o que deseja sem censuras ou conversas alheias. È também a hora de escutar as músicas mais desejadas, reencontrar-seno " Innuendo "do Queen, ou então nos versos de "nada do que foi será, do jeito que já foi um dia "daquele Lulu,poeta do imaginário, que em algum instante diz que " a vida vem em ondas como o mar, num indo e vindo infinito".

As noites também favorecem o aparecimento dos seus fantasmas queridos. Eles não assustam-na, pelo contrário, são até divertidos, escondendo seus óculos, tirando as sandálias de debaixo da cama. Os mais chegados atrevem-se a falar com ela, são falas em forma de sussurros, tal qual as dos mais renomados desencarnados, protagonistas dos filmes de terror e suspense.

Clara percebe que seus órgãos vitais estão inteiros, não são eles que aos poucosabandonam-na. O que escorrega sem pressa, é uma outra vitalidade, que mora na alma, que verdadeiramente comanda o sentido da vida. Esta sim, vai-se tornando fraca e desassossegada, querendo voltar à origem. Não deseja reter a marcha, pelo contrário, quer que tudo aconteça da maneira mais perfeita, mais feliz e iluminada que qualquer mortal possa desejar.

A vida sempre foi-lhe generosa, repleta de significações, tudo foi vivido com felicidade, com certeza esta mesma felicidade haverá de continuar num outro espaço, quem poderá afirmar que não?

Clara, Clarinha, Clarita, fez da vida um percurso de sol. Uma aventura majestosa que agora vai se renovar para além daquela casa, das suas pessoas, dos velhos e conhecidos ruídos matinais. Sente-se embalada por uma outra força, ergue-se de encontro a uma dimensão diferente, que expõe recortes do passado que aos pouquinhos cria vida própria, trazendo de volta o beijo apaixonado de um homem especial, um abraço apertado do amigo confidente, o silêncio do sono dos filhos, os discos e livros cujas estórias arrastam a vida para fora dos limites habituais.

Clara, quem a história não esqueceu.Debruçando-se sobre o próprio corpo, uma tatuagem que valsa descompassada de amor.


Autor: Jussara Whitaker


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