O Que Você Ouve Aqui



- Eu venho aqui afiar a minha faca. – disse ele, para a pequena platéia que o ouvia em silêncio – Estou aqui por isso. Nem mais, nem menos. Então eu venho aqui. À cata de perguntas. Respostas só se delineiam através de uma investigação correta.  A qualidade do instante precisa ser lida com eficácia. E... se não for mais o momento de agradecer, e sim, de levar uma vida de agradecimento?

Alguém na platéia se mexe, e com isso provoca um pequeno ruído.

- Num certo sentido, não existem boas histórias, existem versões. Venho aqui...porque...não, não se trata de prazer. Tampouco se trata de algo a ser dominado, ou mesmo suportado. Perguntas conseguem, em algum trecho do caminho, se transformar em parâmetros. E se não for mais a hora de agir incondicionalmente e sim de separar, aqueles que, por amarem demais, erraram, daqueles que, simplesmente, queriam demais? Parâmetros. Separar o real do imaginário, pois no campo das emoções, os dois se fundem como amantes, cegos de volúpia. Emoções assim paralisam. Então eu venho aqui.

O silêncio dos poucos presentes o encoraja a prosseguir.

- Tsk – fez ele, estalando a língua - E aí surge o dilema: será a hora de mergulhar, ou não?  “Mergulhos retidos causam às vezes estranhas câimbras”. Na adversidade, a presença de espírito supera qualquer necessidade. Mas, do mesmo modo que as emoções, a necessidade é assaz insidiosa. Lhe apresenta falsos quereres.  Por isso a faca tem de estar afiada.  Para que não existam responsáveis, para que a palavra “culpados” seja riscada. Para que, na hora da estiagem, o sentimento de gratidão se alie ao espírito de luta.

Ele consulta o relógio. Lá fora, a garoa fina de três do onze lhe evoca antigas lembranças.

- Venho aqui afiar a minha faca – respira fundo - Trata-se de, uma espécie...de doença. Talvez seja crônica. Se for, me parece lícito equacionar: para uma doença crônica, tratamento crônico. Então venho aqui. As surpresas da vida podem ou não carecer de palavras, mas a capacidade de se colocar à salvo de enganos, aparentemente, de pouca monta, tem de estar alerta. Pessoas precisam de pessoas... Claro que os pequenos enganos proporcionam tremendos estragos. Ninguém tropeça numa montanha, mas antes, numa pedrinha, percebe? A questão não é “se” elas aparecem, mas sim “quando” elas aparecem. No final de contas...tsk...são só  palavras...

Um dos presentes moveu a cabeça, num delicado gesto de assentimento. O que não significava compreensão, apenas boa vontade. A escuta superava a necessidade do se fazer entender.

Ele levantou da cadeira com certo vagar, como se houvesse algo mais a ser dito, mas por hora não se lembrava. Com um movimento quase que imperceptível, ele agradeceu o silêncio. Um deles no entanto, fez assim com as mãos, e disse:

- Por isso você veio.

- ?
 
- Pelo que você ouve aqui - explanou a escuta.

Autor: Bernard Gontier


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