A Música



Cinco tiros varrendo uma madrugada não tão barulhenta, pelo menos no lugar onde estávamos... sem gritos, parecia não haver dor, só resignação e algum traço de solidariedade.

Eu não nasci para essa coisa. Sinceramente! Mas já tive algumas bandas de punk e hardcore, algo que não necessitava mais do que gritos sinceros, acordes e passos errôneos. Alguns tropeços no palco, alguma cachaça quente jogada no público e tudo estava bem. Mas já estava há algum tempo trabalhando como jornalista e, por isso, como diziam, já tinha idade para "evoluir" o pokemon. Mas o sentimento era o mesmo, de arrotar verdades, usando o microfone como uma arma. Certo dia, vi um desses anúncios de rua, num poste tão tortuoso quanto a humanidade... e nele dizia "precisa-se vocalista para uma banda de rock". Não que isso diga muita coisa, pois em tempos modernos julgam qualquer acorde de guitarra como rock... até Jota Quest é rock no Brasil.
Mas resolvi me inscrever para ver o que acontecia. O que é a vida se não correr riscos? De me foder no trabalho estava farto, precisava de alguma coisa realmente sincera. Não que concorde que isso ainda exista, mas como diz Sartre "um homem só é um homem quando encontra alguma causa pela qual morrer". Já fui rapper, socialista radical (leia-se estalinista), marxista, punk e hoje sou só um anarquista "não engajado", como vi o bêbado anunciar certa vez no bar pútrido dos sonhos. Esse anúncio, apesar de vago, me chamou atenção... abaixo diziam as influências: Ramones, Sex Pistols, Dead Kennedys e outros. Os "outros" deveriam ter chamado a atenção dos mais experientes, o que não era o caso de um ser movido somente por sentimentos e algum risco de trago quente. Mandei email. Ligaram-me. O nome do que parecia ser o "dono" da banda, era Vinícius.

- Cara, apareça no estúdio Big Shit às 10 horas de sábado. Depois vamos tocar numa festa. É importante.

Eu já conhecia esse lugar, tinha estado com minhas duas ex-bandas. Era um local amplo, tinha cerveja para vender e tudo. O lugar no qual eles iriam tocar é que me pareceu um tanto quanto suntuoso para uma primeira vez. Um clube tradicional da cidade que não cabe aqui dar o nome.
Me pareceu bom.

- Tudo bem, até lá!

Nem bebi muito na sexta-feira. O trago para dormir, mais alguma dose de rivotril – que era a minha maior preocupação- e vamos nessa. Seja o que deus, ou alguma entidade metafísica superior à mediocridade humana, quiser...
Acordei cedo. Nove horas estava de pé. Comi uma maçã para tentar tirar o bafo de uísque que, apesar de ser em menores doses, permanecia, e me fui ao encontro do tal estúdio.
Chegando lá, fiquei sabendo que teria de tocar a segunda guitarra, pois o tal do guitarrista havia faltado ao evento. Eu disse que não sabia, mas os cidadãos não quiseram saber.

- Porra cara, estava escrito no cartaz.

De repente chegou o primeiro vocalista da banda e foi quando eu soube que seria o segundo. As coisas estavam mudando... Eu já estava indignado o bastante para pedir a guitarra e começar essa palhaçada sem a mínima esperança de conquistar o tal lugar. O vocalista, com uma franjinha devidamente ajeitada para o lado esquerdo:
- Hey boy, let´s go to the party!

- Arrã...

A música eu deveria ter ensaiado, mas esqueci completamente esse detalhe, tão importante para uma banda "séria". Não quis dizer... minhas duas últimas bandas eram realmente no improviso, tanto que nos primeiros shows tinha que ler as letras no papel...
Começam a coisa toda. O som era realmente um lixo, lembrava uma mistura tosca do rock canalha do Jota Quest com o punk mais pop dos Ramones, a la End Of Century. Tentei cantar, tentei tocar... nunca havia tocado uma guitarra, mas seguindo o exemplo do Sid Vicious, o melhor baixista da lendária Sex Pistols, que nem sabia tocar baixo quando começou... Mas eu não era um Sid Vicious e tudo acabou em merda. Logo nos primeiros acordes, notaram que eu não sabia tocar porra nenhuma. Era algo indecifrável o que fazia. Era como uma feijoada sem tempero, algo sem nexo e sem nenhuma paixão. Eu repetia dois acordes, pa pa pa e, lógico, o vocalista nunca conseguia entrar no lixo que deveria vomitar.

- Cara, tu não sabes tocar porra nenhuma, te manda daqui e não tome o nosso tempo.

Não havia gostado do vocalista, aliás, de ninguém da banda, eram todos seres uniformes, com as mesmas franjas, para os mesmos lados... aquilo de certa forma fez com que meu fígado e cérebro pedissem algumas doses de uísque. Sai do estúdio sob risadas e entrei no buteco mais próximo. Pedi o uísque nacional mais barato. 3 pilas o Drurys. Tudo bem... tomei três doses na corrida e na saída encontrei uma amiga com a viola.

- Dê me isso. Logo, vais saber o que vou fazer.

Dei uns pegas no baseado que ela tinha e fui rumo ao local onde seria o tal festival...
Chegando lá, não me viram passar... ou viram e fizeram que não. Desafiando toda a timidez que me é intrínseca, escondi o violão no sobretudo sujo de vinho e com algumas queimaduras de cigarro.
Já haviam começado as apresentações das primeiras bandas. Ao longo do caminho para o clube já tinha pensado numa letra com dois acordes, os únicos que conseguia lembrar do instantâneo ensaio. Entrei tocando. Santocristo! Era aquela letra que eu tinha feito no caminho, com os mesmos dois únicos acordes, falando contra os músicos superficiais só afoitos por grana:

- Eu não canto música em inglês se quero que vocês, afoitos por alguma mensagem, entendam.


O mundo é uma enorme latrina que precisa sugar de todos nós.... pa pa pa

O povo realmente não gostou, mas não tinham gostado da maioria dessas bandas que tinham tocado no inicio do evento, que era destinado aos principiantes. Mas eu, como havia tomado um lugar de assalto, tirei um lugar. E adivinha qual era a última banda inscrita? Romance tico-tico. A minha bandinha emo instantânea. Os acordes eram os dois mesmos que tinha aprendido no micro ensaio. Alguns papéis picados que, imagino, deveriam estar no protocolo para não constranger os principiantes, foram jogados. Alguns aplaudiam o bêbado no meio do salão, mas a grande maioria apenas ria tão alto que pareciam vibrações informes...
Quando fiquei sabendo que tirei o lugar da minha ex-bandinha instantânea, me atormentei. Eles iriam ficar indignados, ainda mais que tirei alguns acordes daquelas musiquinhas ridículas deles. Quando coloquei o pé na rua tinha uma molecada rindo, inclusive a mina de um desses caras desafortunados, que perderam seu lugar no show business da hipocrisia. Era coisa antiga. Veio me cumprimentar de uma forma tímida e provocante.

- Foi legal o que tu fez, da onde tu tirou essa coragem?

- Sei lá beibe, essas coisas não se explicam. Não é matemática, o ódio é uma espécie de cegueira dos pudores, uma cegueira moral. Sempre odiei esse tipo de evento feito para humilhar principiantes com sangue nas veias e exaltar as velhas raposas da música. Fiz essa música bêbado e chapado, em menos de 10 minutos com esses únicos dois acordes completamente desordenados e frenéticos. A guitarra pulsou sangue...

Nesse momento sou cortado. É a bandinha aprendiz de emo. Uma pedra mal atirada acerta o segurança e eu corro para dentro do evento. Contra cinco ou seis, jamais poderia oferecer alguma resistência. Playboys bem tratados por suas paridouras, compradoras de sentimentos e assassinas de crianças que, por sua vez, se tornaram zumbis assassinos. Consegui fugir, dei encontrões violentos numas meninas que estavam nas escadarias suntuosas e derrubei seus champanhes de sangue pútrido, elas gritavam e eu corria sem olhar para trás e tentando enxergar o máximo possível o que tinha pela frente.
Já estava no último andar e não tinha mais para onde correr. Agora haviam mais três orangotangos atrás de mim. Não pensei duas vezes e pulei do terceiro andar. A ideia era flexibilizar a perna quando cair para não ter nenhum dano muito grande. Foi o que fiz e deu certo. Agora eles estavam lá em cima e as pessoas riam, não sei se de mim ou da imbecilidade dos playboys e dos macacos adestrados. Na rua estava a salvo. A menina de um dos emos me deu uma olhada, mas eu não tinha tempo para romances perdidos. Segui, ela me chamou, gritou, mas eu segui...
Há essas alturas já eram 4 horas da manhã e quase todos os butecos habitáveis e inabitáveis estavam fechados. Notei que minha mão direita sangrava muito. Um corte fundo. Imaginei que deveria ter sido feito quando cai ou quando trombei e estilhacei algumas taças de champanhe. Passei na frente de um bar que estava fechando. Tinham três punks sentados conversando sobre seus dogmas e repetindo seus conceitos embalados lá na década de 70. Conhecia dois deles. Já havia brigado com um deles numa festa onde ele havia tentado chegar numa garota que estava comigo. Como punks nunca andam sozinho, no meio da briga um amigo meu tirou uma faca de serra do bolso e o acertou na barriga. Isso faz fazem uns sete ou oito anos. O guri ficou mal, duas semanas no hospital, tinha perfurado o estômago. Não sei como sobreviveu, mas o filhodaputa estava ali. Tentei passar desapercebido. Exausto, bêbado, chapado e machucado não conseguiria nem para o começo com os três punks devidamente trajados com suas jaquetas de rebites e correntes ao invés de cintos. Cheguei na porta do banheiro onde havia um aviso: só para clientes. Se não for clientes pague R$ 5. Porra! Banheiro de ouro, imaginei que mijaria em algum presidente, governador ou grande empresário. Que nada, era só merda e merda espalhada. O fedor era insuportável e, como pode se imaginar, não havia papel para eu limpar meu sangue. A torneira pingava restos de água suja. Tentei abri-la. Nada de água. Nesse meio tempo escuto um barulho atrás de mim. Através do espelho quebrado vejo os três punks... devem ter me visto entrar. E agora, depois de correr dos emos, era a vez de tentar correr dos punks. Desde pequeno nunca me encaixei completamente em nenhuma roda ou grupo social, sempre ficava meio solitário mesmo acompanhado. Na verdade, gente me entedia, palavras de ordem enchem-me o saco, mas eu sempre vivi e vivo procurando algo para acreditar. É como aquele filme dos irmãos Cohen, "O homem que não estava lá". Eu tinha minhas lavadoras de jato seco de vez em quando: namoradas, causas políticas, bandas, etc... elas quebravam, mas logo arrumava outra para lavar minhas mágoas e continuar. Essa situação poderia resumir minha vida. Corri dos emos, bati na sociedade, enojei os amantes da "boa" música, e agora estou cercado de punks sorridentes e com correntes afoitas para chocarem-se contra o meu corpo exausto.

- Seu traidor. Tu sabes bem o que vai te acontecer agora?

Traidor? Ah, eu era um traidor. Tentei correr e pular a janela. Não consegui e cai pateticamente no chão sujo de merda e vômito. Eles riam. Começaram a me chutar, estômago, boca, saco... sentia o sangue escorrer pela minha boca e tinha a visão cada vez mais turva. O drama durou até me acertarem o primeiro chute na cabeça. Eles não queriam me matar, queriam que eu sofresse acima de tudo. Sofresse por toda a minha vida, e por tudo o que já sofri até aqui. Desmaio pelo que imagino, alguns segundos. Abro os olhos com dificuldades e só vejo os três rindo baixo para não chamar atenção dos donos do buteco. Só torcia que entrasse alguém no banheiro e me salvasse. Mas não existem salvadores. Um deles, o que havia levado a facada do meu amigo, pega a corrente e passa ao redor do meu pescoço. Enforca e quando estou prestes a apagar, solta. Eram táticas de tortura parecidas com as que eu tinha lido nos livros que os militares faziam com os comunistas. Mas eles não queriam saber nada, só me ver morrer aos poucos, sofrendo pela eternidade dos minutos que custavam a passar. Eles ouvem uma batida na porta. A haviam trancado prudentemente para a sessão de tortura. O estrondo é cada vez mais forte.

- O que está acontecendo aí seus merdas? Saiam já!

Era o dono do bar. Tive esperanças de sobreviver. Foi nesse instante que um dos punks puxou um 38 e atirou contra meu pulmão. Riu. Atirou contra meus braços e pernas.

- Vamos por aquela janela.

Pularam com a facilidade que eu precisava ter conseguido. Eu sentia o gosto do sangue na boca, meus olhos tinham sangue. Eu ia apagando, já nem escutava os gritos histéricos do dono do bar e suas batidas. Eis que então ele entra aos berros, sua cara exalta o pavor do mundo e seus olhos saltados me matam.


Autor: Diego Rosinha


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