Altar



Desprezando todas as convenções maníaco-depressivas de que grandes histórias de amor mal resolvidas acontecem embaixo de uma tempestade, essa aqui deu-se numa ensolarada manhã de domingo, onde crianças criançavam, passarinhos passarinhavam e, curiosamente, o padre da paróquia do bairro ainda nem havia treinado o discurso do casamento que se daria em algumas horas.
A madrinha corria histericamente de um lado ao outro resolvendo pequenos problemas que ninguém se importava, a noiva arrumava seus cabelos em um coque na nuca com flores e brilhos, enquanto o noivo tinha uma crise de dor de barriga em sua casa, sozinho. Lia o jornal no banheiro quando ouviu a campainha.
"Merda", pensou, e limpou a bunda como pôde para atender. Olhou pelo olho-mágico e, por alguns segundos, cogitou desistir de abrir. Era ela, sim. A amiga que o acompanhara por anos, e que com essa história de casamento tivera sido abruptamente afastada de seu velho amigo pela força do destino e do ciúme louco feminino de sua noiva.
Respirou fundo. Algumas vezes. Ainda poderia desistir, seria loucura abrir a porta. "E quem disse que eu sou normal?". Destrancou a porta e girou a maçaneta.
A claridade de fora ofuscou sua vista. Ficaram por menos de um segundo se encarando, e nesse átimo de tempo nosso protagonista pôde olhá-la, cada detalhe, desde a unha do mínimo dedo do pé até o cabelo revolto que voava em sua cara pela corrente do vento.
- Desculpa, eu não tive tempo de me trocar.
Ela vestia uma bermuda surrada côr-de-burro-quando-foge e a camiseta do que parecia ser um pijama. Havaianas brancas. Nos olhos, algo desmascarava a noite toda em claro.
- Posso entrar?
- Claro. Desculpa. Aceita um café?
- Por favor.
Foram até a cozinha. Era a terceira vez que ela entrava naquela casa em quase dois anos que ele morava ali. Ele olhou pro bule e lembrou-se que não havia feito café naquela manhã - acordou e correu pro banheiro sem nem se importar em comer. Olhou sem graça para a amiga, que parecia suavemente elétrica, denotando seu nervosismo pelas unhas batendo ritmadamente no tampo de madeira da mesa.
- Puta merda, não tem café.
- Deixa que eu faço.
Começou a abrir armários e fuçar potes e mais potes. A dor de barriga dele parecia aumentar. Nem reparou que passavam-se cinco minutos já e a água começava a ferver no bule. Tudo ainda parecia encantador demais. Ela entrar por aquela porta e abrir os armários como se fosse de casa. Tudo nela era lindo. Até o feio era lindo. Não era daquelas mulheres-padrão que se vê por aí. Odiava até mesmo pensar em algum dia ficar com o corpo em forma, e cultivava cicatrizes de tombos e machucados com um carinho quase maternal. Seu cabelo mudava de cor conforme seu humor. Quando a conheceu, tinha os cabelos cor-de-rosa. Era ridícula, gritava palavrões e fumava um cigarro atrás do outro. Foi num bar desses com sinuca, ela não jogava, ficava só na mesa esperando alguém encher seu copo de cerveja. Estava bêbada e entediada. Chegou para conversar com ele como aquelas mulheres que nada têm a perder, e dois dias depois jantavam juntos. Foi talvez a amizade mais sincera de toda sua vida.
- Não tinha parado de fumar?
- Voltei ontem.
- Sabia que não ia durar tanto.
- Ha ha, nunca dura. Insônia essa última noite. Acabei dormindo só depois de uma garrafa do vinho mais barato que eu tinha e 18 cigarros.
- Você ainda morre disso.
- Eu ainda morro de tudo. Viver é minha doença crônica.
- Terminal.
- Seminal.
Silêncio. Esboçaram um sorriso.
- Tá nervoso?
- Não, não.
- Aposto que acordou com dor de barriga.
- Ha ha. Apostou certo. Eu estaria lá ainda se você não tivesse tocado à porta.
- Pode continuar cagando, eu falo de fora da porta!
- Pára de ser besta, T. Você tem alguma coisa pra falar?
- Tanto que nem mesmo Homero saberia compilar numa Odisséia.
- Sobre o que?
- Sabe né. Sobre a vida, os pássaros, as obras intermináveis de Deus, os filmes do David Lynch...
- Não muda...
- Tá azul.
- Eu vi. Tá em paz?
- Tô blue.
- Você deveria estar trocada.
- Eu sei. A cerimônia é logo logo.
- Não me diga que você não vai.
- Eu vou. Mas não poderia ir sem antes te ver.
- Mas você me verá lá.
- Não. Eu verei você e sua esposa. Você e sua nova família. Verei seu novo você. E não é o seu novo você que me cativou. Eu vim aqui tentar ver o amigo que me tirou do tédio há três anos numa mesa de bar.
- Lembro como se fosse ontem. Aquele lugar fedia a cigarro. Você era a única coisa bonita ali.
- Você era o único míope ali.
- Você sabe que nunca te olhei com a retina.
- E agora?
- Agora o que?
- Que coisa eu sou pra você? - ele respirou com o mesmo ar de desespero que abriu a porta.
- Tudo, menos uma coisa.
Era tudo. Era o ar que respirava, a motivação pra suas músicas, os sonhos que ainda se realizariam, a esperança da vida poder ter ainda mais um dia, um único dia, para que pudessem somente sorrir, despretenciosamente, um para o outro. E no final de tudo, era o olhar que esperava decifrar um dia, o abraço mais doce, o corpo mais quente, o amor mais sincero.
- Então eu não sou nada.
O vento passou pela janela e levou pra dentro toda a poeira da rua. Nesse momento as crianças não criançavam, os pássaros não passarinhavam, e o padre vestia sua batina, pensando que o destino fez dos padres e dos executivos os seres mais desgraçados do universo, obrigados a usar roupas sufocantes em pleno verão tropical abençoado por deus e bonito por natureza.
Aquele momento chegou, e ele pôde ver em seus olhos que ali tudo era tristeza e beleza. Tudo era solidão e vazio. Queria saber se aquilo seria um espelho ou se a verdade era outra - refletiam-se, na claridade da manhã, na felicidade do chamado "melhor dia de sua vida", no desespero velado que significava, em miúdos, o final de tudo o que nunca começou.
- Trouxe teu presente de casamento. É um poema. Eu mesma fiz. Tá idiota.
- Você nunca mais vai voltar né?
- Nunca.
- Eu sempre te amei.
- Eu sempre soube.
Levantou-se da cadeira da cozinha e foi sozinha mesmo pra porta.

Lá fora, o carro de seu irmão buzinava insistentemente para poderem ir para a Igreja.

Autor: Vanessa Del Negri


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