A bendita Dona Crase [e suas várias facetas].



A bendita dona Crase [e suas várias facetas]

(Joel Carlos Santana Santos – 14/08/2008)

Certa vez fui abordado por um aluno que me interrogou com certo tom de ironia acerca de uma das mais complexas regras da Gramática portuguesa. Era o Jorge, aluno da oitava série que, surpreendentemente, afirmava adorar ler e, principalmente, escrever embora não pudesse até então compreender o quê da regrinha à que tinha tido acesso já nas primeiras aulas de português. Jorginho, como todos o chamavam devido a sua estatura estar abaixo da média dos colegas da mesma série, aproximou-se de mim e, ainda pouco familiarizado com o mais novo contratado de sua escola, disse: "Professor, o senhor tiraria para mim uma dúvida?", respondi-lhe que sim e ele logo prosseguiu: "Quando é que devo usar a regra da bendita dona Crase?"

Surpreso, mantive-me cerca de dez segundos como se estivesse pensando, mas – na verdade – estava a observar sua face intrigada pela dúvida e desejosa de saná-la. Ele esperava a explanação e eu me preparava para fazer um monólogo, coisa que tanto me aprazia. Busquei nos meus A.G.C.'s (arquivos gramático-cerebrais) a melhor maneira de lhe esclarecer o assunto, as melhores palavras, os melhores exemplos... E comecei. Foram cerca de trinta longos minutos. Sucintos, sintéticos e creio que bem proveitosos. Sucedeu assim:

Primeiro, preocupei-me em saber se ele conseguiria conceituar (e, claro, diferenciar) Eufonia e Cacofonia. Duas regras importantes para entender a necessidade da crase. Ele disse que não. Em seguida, parti dizendo que essas regras, a começar pela da cacofonia, se incumbem de definir na língua a qualidade dos sons. No caso, a cacofonia elucida os sons ruins. E a eufonia, os bons. Na língua, no nível da fala, muitas vezes encontros de letras, sílabas e palavras soam mal. Ficam desagradáveis para falar e, pior, para ouvir. Ora são muito estridentes ora graves ora repetitivas. A cacofonia é a regra da gramática que estuda as relações de fealdade sonora, e a eufonia busca dirimi-la.

Esclarecido isso, parti com tudo para a batalha: convencê-lo de que era fácil compreender a regrinha que, freqüentemente, queima muitas pestanas de estudantes e à qual o garoto havia chamado de bendita.

Após finalizado o primeiro passo, dei o segundo: pensei dois exemplos com os quais imaginei poder aclarar a caco e a eufonia e os escrevi na lousa em letras garrafais. (1) 'Venha a a aula mais cedo amanhã' e (2) 'Ela sempre retorna a aquela sala após o recreio'. Após isso, disse-lhe que lesse atenta e pausadamente as frases do jeito que estavam grafadas, ouvindo som a som e que me dissesse se havia algo estranho com elas. À primeira vista, detectou os 'as' seqüenciais. E perguntei: você acha agradável lê-las? Logo percebeu que os vários 'as' produziam um som ruim, que dalguma forma forçava a garganta. Em seguida perguntei, não seria legal se pudéssemos evitar a repetição de alguns dos 'as'? Respondeu que sim. Continuei: já ouviu falar de um acento gráfico chamado de grave? Daí, conceituei dizendo que era aquele tracinho que se põe exclusivamente sobre a letra 'a' e fica virado para a esquerda da escrita. Essa descrição ajuda a perceber a diferença entre ele e o acento agudo, que fica virado para a direita e é responsável pela tonicidade silábica e pela abertura das vogais. Disse também que crasear é o mesmo que unir, juntar (do ponto de vista mais raso, claro!).

Enfim cheguei aonde era preciso e esperado: às regras propriamente ditas. A crase ocorre quando se une o 'a' [preposição] a outro 'a' que aparece em seguida e que pode ter várias funções e nomes. Exemplo: na frase (1) citada anteriormente ['Venha a a aula mais cedo amanhã'] existem duas vogais 'a' que devem ser fundidas em uma só através do sinal grave, indicativo de crase. Nesse caso, elas correspondem uma à preposição (o primeiro) do termo regente em 'vir a' e a outra ao artigo feminino que determina o substantivo em 'a aula'. Desta forma e sob tais circunstâncias, as orações ficam 'Venha à aula mais cedo amanhã' e (2) 'Ela sempre retorna àquela sala após o recreio'. Com isso, são observadas de início as regras da cacofonia, quando foi detectado um som ruim, e da eufonia, quando ele – através da crase – foi 'eliminado', ou há que se dizer, foi melhorado.

– Mas professor, como eu devo ler a frase agora? Perguntou Jorge preocupado com o desaparecimento de um dos 'as' da frase e com a marca gráfica que apareceu. As pessoas costumam marcar a leitura da crase no cotidiano, entretanto isso incorre num erro. Por que continuar lendo a crase como dois 'as' se ela surgiu exatamente para evitar isso? Perguntei e esperei que ele me desse uma resposta. Pasmo, disse-me inocentemente: "É mesmo!". Na hora de ler, deve-se naturalmente pronunciar o 'a' como se não houvesse nada além de um acento "mudo", que indica apenas a fusão dos 'as'. Nada de prolongar ou repetir o som dessa vogal.

Até aqui a dura tarefa de fazer compreender a funcionalidade primária da crase foi cumprida. Agora fica latente a necessidade de averiguar a "amplitude da coisa". Quando se estudam as relações semântico-estruturais, a crase se faz necessária para delimitar a função e a estrutura de cada expressão. Primeiro vamos definir estrutura. Isso significa dizer que há partes da oração que dependem da crase para comunicar e se definir. A essas partes dá-se nome de termos da oração (adjuntos, objetos, complementos nominais e e.t.c.); entre tais termos se percebe uma relação de dependência e conexão. A preposição é o elo que faz ambas as relações se firmarem. Nesse instante, dá-se a Regência, que pode ser verbal ou nominal e é a regra da gramática que se propõe a definir a relação, já dita, entre estrutura e semântica. É preciso, em primeira mão, compreender que para cada estrutura "dominante" há de haver uma "dominada". É como se pensar que não se pode dizer algo sem, obrigatória e necessariamente, referenciá-lo a outro algo. A gramática chama esse caráter de transitividade, esta que é a pedra-fundamental da regência.

Pois bem: se um termo dominante requer uma referência a outro para funcionar, temos aí transitividade. A saber "Ana Maria sempre faz contato [...]", ao termo dominante 'contato' chamamos de termo regente. No período, não foi informado com quem/o que se faz contato. Daí ele não se fazer compreender. Caso se acrescente, por exemplo, "com seu primo Marcos" ao termo regente, resultando em "Ana Maria sempre faz contato com seu primo Marcos", seu conteúdo estará pleno e a esse novo termo se dará o nome de regido. No excerto não houve crase já que a preposição usada foi o 'com' e os elementos não a possibilitariam em hipótese alguma. Veja agora essa situação: "Ana Maria sempre teve amor [...]". Aqui permanece a falha na transitividade como na frase anterior. Pergunte-se: com quem Ana Maria sempre fez contato? A resposta é o complemento nominal (sem crase!). Agora se faça a pergunta: a quem Ana Maria sempre teve amor? Antes de tentar responder, observe que a preposição agora é 'a' e não 'com'. Se você responder a esse questionamento com "a garota {que ela adotou}", note que toda a declaração ficará: "Ana Maria sempre teve amor a a garota {que ela adotou}". Você verá que há dois termos que obrigam a presença de 'as' que serão craseados. O termo regente AMOR rege preposição 'a' e o termo regido é determinado pelo artigo 'a'. Agora leia novamente e observe a cacofonia. O que fazer? Em gramática, a + a = à. Isso se chama crase (fusão). Leia agora: "Ana Maria sempre teve amor à garota {que ela adotou}". Seguindo uma lógica semelhante à do craseamento, porém com outra preposição, de + a = da. Isso não é crase; é contração. E é nessa hora que se compreenderá a relação semântico-estrutural da crase. Observe este outro exemplo: "Ana Maria sempre teve o amor da garota {que ela adotou}", aqui a interpretação terá um novo rumo e o 'à garota' vira 'da garota', complemento nominal e adjunto adnominal, respectivamente.

Onde, então, utilizar a crase? Onde é proibida? Onde é obrigatória ou facultativa? Uma coisa é certa: salvo raras exceções, a crase ocorre onde o termo regente é obrigado da preposição 'a' e o regido é definido pelo artigo feminino, antepõe pronome oblíquo feminino ou é palavra que se inicie com essa vogal e permita crase em sua raiz.

Haja vista tudo o dito anteriormente e via de regra, a bendita dona Crase, segundo Jorge, se define como postulado gramatical a partir dos raciocínios:

(1) [via de regra] é básico pensar que a ocorrência de crase é uma necessidade regencial e se dá com elementos nominais de núcleo feminino, sendo quase sempre definida por um termo que obriga a preposição 'a'. A saber, a expressão fazer referência, que tem em sua estrutura o substantivo, um elemento que transita para outro através da preposição mencionada. Veja: se dito 'O marido, ao falar da beleza de sua mulher, sempre faz referência (...)', uma questão é iminente: a quê? Com ela, dois fatores gramaticais são subliminarmente aludidos, a transitividade e a regência. Esta pela presença da preposição, que conecta os núcleos e direciona o raciocínio; e a outra por a expressão carecer de complementação. Daí conceber a idéia de forma plena só a partir de outra expressão, que – se de núcleo feminino – obriga a crase e – se masculino – combinação. Constate: 'O marido, ao falar da beleza de sua mulher, sempre faz referência às pernas/aos cabelos.'.

(2) é proibida principalmente (salvo situação especial) diante de núcleos nominais masculinos. E assim o é, também, diante de expressões cuja definição de gênero é neutra, ou seja, não se pode dizer da masculinidade ou feminilidade do verbete. Por exemplo, se ouvidas as palavras "árvore" ou "muro", como você relacionaria a noção de gênero delas? Árvore alto? Muro alta? Certamente não. Culturalmente todo falante tem internalizado em si uma noção básica de gênero de grande parte das palavras de sua língua materna e, às vezes, ainda que se desconheça a semântica da palavra, é possível definir essa característica. Se você lesse ou ouvisse 'diapasão' ou 'argamassa', como definiria os gêneros? Diante de verbos, que não têm gênero, não se faz crase; diante de pronomes de tratamento, 'Durante as sessões, os deputados referiram-se a vossa excelência, o presidente', também não; e – tampouco – das palavras terra e casa, quando não determinadas por expressões extras. Exemplos: 'Os marinheiro voltaram a terra / Os marinheiros voltaram à terra natal' e 'Chegamos bem cedo a casa / Chegamos bem cedo à casa de José'. Também não se faz crase quando a expressão feminina é de caráter generalizador, ou seja, refere-se a um grupo inespecífico, como em 'Aquela revista sempre faz reportagens que se referem a mulheres' / '[...] que se referem às mulheres casadas'; ou diante de nome de países, estados e cidades que não careçam de determinação. 'A França é um país rico / Paris é uma cidade rica', note que o conteúdo e a estrutura de ambas as frases são bem similares, não fosse a noção de que a palavra 'França' obriga artigo e 'Paris', não. Logo se deve escrever 'Fui à França' (craseado) / 'Fui a Paris' (não-craseado); entretanto, se o substantivo que não carece de artigo aparecer determinado por outra palavra, a regra se torna obrigatória, 'Este livro faz alusão à Paris dos anos 60'. Pronto! Agora, só falta falar da tal situação especial: crase diante de nomes masculinos. Ainda que sejam masculinos, nomes próprios podem permitir crase se a idéia-base da sentença for a de comparação e estiver subentendida a expressão 'à moda/maneira de'. 'Carlos joga basquete à Oscar Schmidt', esta oração está comparando a capacidade de jogar de Carlos à de Oscar. Pode-se até reescrever tal frase subentendendo a expressão, resultando em 'Carlos joga basquete à maneira de Oscar Schmidt'. E ainda, quando o nome masculino está determinado pelo demonstrativo de 3ª pessoa 'aquele' ou este é de valor substantivo, que, independentemente do gênero, possibilita o craseamento no corpo do verbete (única situação em que isso acontece): 'A nova lei trabalhista refere-se àqueles direitos defendidos pelos grevistas'. A mesma proibição se reflete na idéia de que, às vezes, um núcleo aparece repetido e, quando isso acontece, a crase é inviável: 'face a face'.

(3) é obrigatória quando em expressões femininas de termo regido; em locuções adverbiais cujo núcleo nominal é feminino como 'à mão armada', 'à primeira vista', 'às vezes', 'à tarde', 'à luz', 'à sombra' e e.t.c.

e (4) é facultativa em muitas situações. A começar por aquela que é mais compreensível: a da prescindibilidade do artigo diante de nomes próprios. Em algumas culturas, em nosso país, o uso do artigo é meramente vocal, ou seja, o indivíduo o fala com muito mais freqüência do que o escreve. No sul e no sudeste do país, onde este se faz mais freqüente que em quaisquer outros lugares, os falantes usam os artigos diante dos nomes próprios a que faz menção para enfatizar o tom. Entretanto, em lugares do norte e nordeste, os substantivos próprios aparecem sós, ou seja, sem artigo. Por essa razão, a Gramática se viu na obrigação de admitir que é facultativa a crase em tal situação. 'A Andréia é uma mulher elegante / Andréia é uma mulher elegante' – observe que, do ponto de vista da utilidade do artigo, este é ora imprescindível ora não. Assim, pode-se escrever: 'Devolvi todos os livros à Andréia / Devolvi todos os livros a Andréia'. É possível também ter como facultativa a estrutura que acompanha possessivos adjetivos. Da mesma forma que os nomes próprios e pela mesma razão, é opcional o acento grave sobre o 'a' que os antepõe. Observe e conclua não haver obrigação de artigo diante de possessivos: 'A minha prima arranjou um namorado / Minha prima arranjou um namorado' – desta forma é fácil perceber que com a regra em questão se dá igual, 'Jamais desobedeci à minha mãe / Jamais desobedeci a minha mãe'. Porém, muito cuidado quando o possessivo exercer a função substantiva, pois nesse momento o artigo é necessário, exemplo 'Quando reclamei, referi-me à minha vaga e não à sua'. Na primeira estrutura, em que aparece o pronome 'minha', a postura da marca gráfica é de livre escolha; já na segunda, com a aparição de 'sua', é obrigatória. Em soma a essa norma, está a que trata dos adjuntos adverbiais de instrumento. Quando no singular é opcional dizer: 'O rapaz foi morto à facada / O rapaz foi morto a facada' – note que o adjunto que faz referência ao instrumento usado para matar aparece variando entre craseado e não-craseado; porém, se o nome que é o seu núcleo estiver no plural, a crase se torna proibida: 'O rapaz foi morto a facadas'. Para continuar a dura rotina da crase neste texto e para complicar um pouquinho mais, há a locução prepositiva 'até a', que tem duplo uso na língua, com ou sem a preposição 'a'. Naquele caso, o 'a' que aparece preliminarmente é, na verdade, um artigo que se segue à preposição 'até'. Se virmos uma sentença do tipo: 'Este ônibus vai até o terminal do centro', é possível notar que os elementos citados, agora, aparecem com o artigo 'o', já que o vocábulo 'terminal' é masculino. Isso leva à confirmação de que ele representa um artigo, que flexionará se 'terminal' der lugar a 'parada' ou 'estação', veja: 'Este ônibus vai até a parada/estação do centro'. Em contrapartida há o segundo uso. Aquele que leva em consideração a presença de outra preposição; assim, 'até a' passa a ser caracterizado por duas e, não, uma preposição. E o artigo, para onde irá? Para lugar nenhum. Ele permanecerá imprescindível, ou seja, aparecerá caracterizando a facultatividade da "situação gramatical". 'Este ônibus vai até ao terminal do centro' – gramaticalmente, a + o = ao. Logo esse encontro é constituído de até + a + o. Noutra circunstância, a + a = à; e o incompreensível 'até à' é viável em 'Este ônibus vai até à parada/estação do centro', ainda que com duas preposições. Uma só não seria suficiente?

Ufa! É hora de dar uma trégua. A essas alturas, a cabeça de Jorginho já devia ter dado um nó, e levaria mais que meia hora para tanto conceito. Sabia que ele relutaria em entender tantas regras, por isso parei bem antes de ele entrar em parafusos e de citar inumeráveis exemplos que concluiriam totalmente a crase. Aqui fui além do ele podia captar, mas não do que qualquer aluno pré-vestibulando precisa saber para não dar mancadas na prova de português ou redação e sair cometendo gafes ao julgar ou usar a bendita dona Crase. É só estudar regra a regra e manter 'a sua sombra' os conceitos de proibição, obrigatoriedade e facultatividade. A dona Crase pode até não ser, assim!, tão bendita, visto que causa problemas a tanta gente, nem maldita a ponto de ser repudiada; é certo, porém, que ela é muito necessária e presente no dia-a-dia estudantil. Portanto, vivam as regras gramaticais!


Autor: Joel Carlos Santana Santos


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