Contadores De Histórias



Como afirma Michael Kammen, a memória social, há muito tempo e de maneira única, vem se separando da história oficial, concebida pelos historiadores, mas unindo-se a mesma na cultura norte-americana. As memórias passaram a ter um valor maior perante o público do
que a história oficial. A vivência da história, preservada na memória, pode ser uma das causas desta maior valorização. A questão é que, como a memória social varia de indivíduo para indivíduo, de acordo com as experiências de cada um, como, a partir destas memórias, seria possível se construir uma identidade nacional única e unificada? É importante levar em conta que os Estados Unidos são um país de extrema diversidade étnica e cultural. Não é como a Alemanha, que segundo Elias, possui um habitus nacional forte, com o qual todos se
identificam. Os Estados Unidos são um país marcado pela heterogeneidade. Para que se possa construir uma identidade nacional a partir da memória social, seria necessário que todos tivessem uma memória em comum. Mas como isso seria possível? Isso se torna viável através de instrumentos que permitam a fabricação das memórias.

A crescente importância e a influência da memória social coincidiram com um desejo cultural vastamente disseminado de reviver o passado por meio de formas materiais. Este desejo cultural de dar vida nova ao passado pode estar ligado à crise de identidade nacional que
permeia todos os aspectos da cultura norte-americana do fim do século XX. Segundo Burgoyne, esta tendência tem sido aumentada, em grande parte, pelos meios de comunicação de massa.

Com o cinema e a televisão cada vez mais atraídos por acontecimentos históricos, (exemplo disso é o sucesso nos cinemas de filmes como Gladiador, A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan) o desejo cultural de se experimentar novamente o passado tornou-se um importante fator na luta por preservar o que a nação recorda.

Ainda segundo Burgoyne, o desejo contemporâneo de ter novamente a experiência da história de maneira sensorial, revela um desejo análogo de eliminar a aura do passado como objeto de
contemplação histórica e profissional e de restaurá-lo ao campo da experiência efetiva numa forma comparável à da memória. O surgimento de tecnologias culturais de memória de massa proporciona experiências vívidas do passado que podem dar forma à subjetividade e qualificá-la. Estas tecnologias permitem que indivíduos tenham a experiência, como se fossem memórias, de acontecimentos que eles próprios não vivenciaram. Segundo Alison Landsberg, estes instrumentos estariam criando, assim, uma espécie de memória protética: memórias que
circulam publicamente, que não tem uma base orgânica, mas que são, não obstante, experimentadas pelo próprio corpo da pessoa. Para Landsberg, as memórias que estas tecnologias culturais permitem poderia ser tão significativa, na construção ou na destruição da identidade do indivíduo, quanto qualquer experiência que este tenha realmente vivido.

Esta produção e disseminação de lembranças definidas pela simulação e pela reconstituição, podem, por um lado, apresentar o risco de alienação e de revisionismo, mas por outro, podem servir como base da identificação coletiva mediada.

A memória social e suas variantes podem adquirir uma importância grande no gerenciamento da identificação nacional, especialmente quando o passado nacional abriga experiências sociais traumáticas que não foram assimiladas pela narrativa geral da nação ou a ela integradas.

Como um bom exemplo do uso da memória social no gerenciamento da identificação nacional temos o assassinato do presidente americano John Kennedy. Como escreve Thomas Elsaesser:

O que importa a lembrança de acontecimentos que vivem na cultura em razão de imagens que
deixaram gravadas em nossas retinas, demasiado dolorosas para serem recordadas, demasiado perturbadoras para serem lembradas? Lembra-se do dia em que Kennedy foi alvejado? significa realmente Lembra-se do dia em que você assistiu o dia inteiro pela televisão Kennedy ser alvejado? O contar histórias já não é mais resposta do fazer sentido da cultura; uma atividade mais próxima da prática terapêutica tomou conta da situação, com atos de tornar a dizer, de recordar e de repetir, todos indicando a direção da obsessão, da fantasia, do trauma
(Elsaesser, 1995:146)

Outro exemplo, talvez mais próximo de nós, é o recente ataque terrorista as torres do World Trade Center, no episódio conhecido como os atentados de 11 de setembro. Todos se lembram do fato. Entretanto, excetuando-se as pessoas que estavam presentes no local dos
atentados, o que todos têm é uma lembrança das imagens transmitidas pela televisão. Possivelmente a lembrança que você tem dos atentados é semelhante a de seu vizinho, pois ambos foram expostos a mesma tecnologia cultural de memória de massa. O que pode diferenciar você de seu vizinho é a lembrança do que você estava fazendo no momento em que soube do acontecimento. Esta sim, a meu ver, será sua verdadeira memória. É possível inclusive testar esta memória. Basta perguntar a si mesmo o que você fazia no momento em que soube da notícia do ataque ao World Trade Center. Com certeza você se recordará.

Tanto o assassinato de Kennedy, quanto o atentado ao World Trade Center, são exemplos de memória protética e mediada. As imagens de ambos os fatos se tornaram sinônimo da memória cultural do acontecimento. Nossas lembranças individuais e coletivas foram reconfiguradas pelas tecnologias culturais de memória de massa. Nós passamos a imaginar que os fatos fazem parte de nossa experiência.

Segundo Burgoyne os meios de comunicação no período contemporâneo intervieram diretamente no trabalho cultural de definir a memória nacional, desempenhando um papel-chave na articulação e na formação do ponto de vista nacional e do debate sobre questões e acontecimentos que mostraram ser resistentes aos projetos maiores de construção e
narrativizacao nacional. (Burgoyne:148)

O autor considera o filme Forrest Gump e sua representação dos traumas históricos dos anos 1960 um exemplo da atual preeminência da memória na construção de conceitos de nação e pertencimento nacional.

O filme põe em relevo a forca da memória e das narrativas da memória para criar ligações subjetivas com o passado nacional, para apregoar a noção de eu e de nós que torna a narrativa
nacional atraente e significativa. O valor positivo que o filme atribui à memória como a modalidade de vinculação e de pertencimento depende de abandonar-se radicalmente o registro histórico, entendido como o espectro amplo dos acontecimentos públicos fora do arquivo da experiência pessoal. O filem transmite a mensagem de que a história, vista em termos de acontecimentos públicos e de conflitos políticos, de alguma forma se desligou da textura autêntica da vida nacional, que está separada da narrativa da nação, em vez de
ser dela elemento constitutivo.

Para Burgoyne, ao valorizar a memória como o tecido de ligação da nação, o filme parece enfatizar a memória a fim de construir uma imagem de nação que possa existir separada dos traumas históricos dos anos 1960 e 1970.

O filme lança uma narrativa da memória cuja finalidade transparente parece ser a de gerenciar os traumas nacionais, as crises da identidade nacional que definiram os anos 1960 e 1970 e que continuam a perturbar a auto-imagem da nação. A memória social em Forrest Gump seria
integrada à narrativa tradicional da nação, produzindo uma imagem de consenso social construída em torno da memória. O filme revisa a memória cultural existente de tal maneira que esta se torna proteticamente aumentada. A memória orgânica é posta em função e redefinida mediante a tecnologia dos meios de comunicação de massa, para assim produzir uma imagem aprimorada da nação, ao mesmo tempo potente, coerente, de do povo.

Em Forrest Gump, a nação é definida separadamente da história. Embora o período que o filem cubra tenha sido um dos mais cindidos e violentos da história americana, o filme dá à sua personagem a função de recuperação, de extrair da memória popular, fragmentos de um passado distante, e sugere que este passado é, de certa forma mais autêntico do que o passado da história pública. Entretanto, esta memória, é, a meu ver, seletiva. Ao evocar a
memória o filme apaga simultaneamente muitos dos acontecimentos históricos que continuam a perturbar a narrativa nacional. Em outros casos, os fatos históricos apresentados têm seu sentido oficial, de certa No filme, Gump se torna soldado do exército e vai para o Vietnã. Durante a guerra, Gump conhece o tenente Dan, seu comandante. O mesmo, durante um tiroteio perde suas duas pernas., como acontece com o personagem Ron Kovic, de Nascido em 4 de Julho. Tanto o tenente Dan quanto Kovic, se tornam ex-soldados amargos, desmobilizados e presos a uma cadeira de rodas. Diferentemente de Kovic, Dan não recebe
tratamento de comiseração no filme. Para Burgoyne, a Ira do tenente Dan é permanentemente apresentada em oposição à incompreensão de Gump, que paradoxalmente parece a resposta mais válida e autentica; no filme, os excruciantes traumas sociais e pessoais do Vietnã são realmente notados, mas como que entre parênteses, como se estivessem desligados do texto da nação. A história evocada pelo tenente Dan e seu destino acaba sendo vista como patológica, auto-destrutiva e ridícula.

Assim como faz com a Guerra da Vietnã, o filme revisa o significado cultural de outros momentos históricos, como os anos 1960, desmontando toda a consciência nacional alternativa que surgiu dentro da contracultura. Segundo o autor, o filme faz uma espécie de contra-narrativa do período, fazendo com que o movimento feminista, o movimento negro, o movimento pelos direitos civis e tantos outros pareçam ser superados em termos de significação cultural por inovações inspiradas por Gump como bottom do rosto sorridente e o slogan Have a nice day.

As qualidades de uma identidade nacional idealizada são consolidadas em Gump, que é, acima de tudo, uma figura de continuidade e vínculos idealizados, uma figura que, na fantasia apresentada pelo filme, estrutura as zonas divididas da cultura americana, e que define
novas zonas de coerência social por meio de sua influência acidental sobre ícones como Elvis Presley e John Lennon. Segundo Burgoyne, a medida que os traumas nacionais continuam a suceder-se durante o filme,  Gump torna-se uma espécie de figura alegórica da nação entendida como um ideal, um santo inocente que perambula pelos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970, apagando os sinais do passado histórico.(Burgoyne:159)

No filme, a re-inserção e o deslocamento da história rememoram certos aspectos do passado nacional ao mesmo tempo em que criam amnésia crítica em outros. Suas citações de história pública ao consistentemente justapostas a momentos de crise ou de renovação pessoal de uma maneira que tende a deslocar a história evocada. Ao longo do filme, a história pública é
sempre representada como o registro de agitação social e violência política, um registro que é essencialmente separado da comunidade imaginada da nação.

Burgoyne termina o capítulo concluindo suas impressões a respeito do filme:

 ...eu vejo Forrest Gump como um filme que enquadra um conjunto diferente de preocupações culturais que giram em tono da identidade nacional, do significado e do lugar dos anos 1960 e 1970 na vida nacional. Numa época em que os anos 1960 foram marcantemente  econfigurados por alguns estudiosos como a fonte do ativismo de direita bem-sucedido dos anos 1980 e 1990, Forrest Gump transmite de maneira singularmente eficaz a força da memória mediada para reorganizar o passado histórico. Nesse caso, parece que o filme evoca a enciclopédia cultural dos anos 1960 e 1970, principalmente a fim de construir uma nação virtual cujas dívidas históricas foram todas perdoadas e cujas incapacidades foram corrigidas. Embora o filme consiga definir zonas amplas de coerência social dentro de uma comunidade nacional fragmentada, ele relega ao esquecimento a lembrança mais importante de todas, a memória do agir histórico que é o legado mais duradouro dos anos 1960.
(Burgoyne:162-63)

Se analisarmos o uso das tecnologias culturais de memória de massa na construção de uma identidade nacional brasileira, veremos que o fenômeno é bem parecido com o norte-americano. A principal diferença, a meu ver, é que no Brasil, a televisão surge como a
principal tecnologia cultural de memória de massa. Principalmente através das telenovelas, a televisão vem há anos moldando a identidade nacional, contando a história da maneira que lhe é mais conveniente. Assim como no caso do filme acima tratado, as telenovelas, sobretudo as de época, rememoram certos aspectos do passado nacional ao mesmo tempo em que criam amnésia crítica em outros.

Um breve exemplo é uma minissérie exibida há alguns anos atrás intitulada Desejo, que tratava da vida de Euclides da Cunha. A minissérie esquece da importante figura pública que foi Euclides da Cunha, para focalizar-se no relacionamento extraconjugal de sua esposa.
Recentemente, em uma aula de sociologia brasileira, a turma foi questionada sobre quem foi Euclides da Cunha. Uma das alunas, ao responder, disse que ele foi um escritor que foi traído pela esposa com um oficial do exército e que na televisão ele havia sido interpretado por Tarcísio Meira. Em nenhum momento ela mencionou o fato de Euclides da Cunha ser o escritor de Os Sertões, considerado uma obra que, centrada na campanha militar contra os jagunços rebeldes de Canudos, no sertão da Bahia, operada entre 1896-7, tornou-se um clássico da
literatura sociológica. O que ficou em sua memória foi a imagem de marido traído transmitida pela televisão. Exemplo de memória protética. Acredito que as coisas continuarão assim enquanto as tecnologias culturais de memória de massa continuarem a modelar e a gerenciar a memória social.

Bibliografia:

BURGOYNE, Robert A Nação do Filme; Hollywood examina a
história dos Estados Unidos
. Capítulos 3 e 5. Editora UNB.

ELSAESSER,
Thomas Subject positions, speaking positions, in Vivian Sobchack
(ed.), The persistence of history: cinema, television and the modern event.
Nova York, Routledge, 1995.

KAMMEN,
Michael The mystic chords of memory; transformation of tradition in
American culture
. Nova York, Knopf, 1991.

LANDSBERG,
Alison Prosthetic memory: Total recall and Blade runner in Body
and Society 1
, Nos 3-4, 1995.


Autor: Daniel Gouveia de Mello Martins


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