Ilustração e História na Pedagogia da Liberdade de Kant



Segundo Caio Prado Júnior o problema fundamental do século XVIII era acima de tudo o de fazer coincidir e harmonizar o sujeito e o objeto do conhecimento. Quando se trata do Homem, ambos se confundem no mesmo indivíduo que se revela ator e autor de sua história. O empirismo dominante na Inglaterra, onde o capitalismo avança rapidamente, coloca-se em geral na perspectiva do Homem-objeto. Na França a perspectiva de uma revolução iminente constrói uma nova ordem sob a forma de um plano ideal que a razão universal do homem concebe. A revolução é, no plano teórico-filosófico, o primeiro passo na solução do problema do conhecimento. Ela abre perspectivas para o elemento de ligação entre teoria e prática, entre o Homem-sujeito que planifica e o Homem-objeto que realiza[1]. Mas a assimilação dessa experiência, que dela permitiria tirar todas as conseqüências práticas coube aos alemães. As conhecidas condições sociais desse país na época, o atraso científico e o isolamento comercial e político relegavam-no ou à contemplação estética e a pesquisa livresca, ou a um recolhimento sobre si mesmo numa especulação pura. Tal cenário é que possibilita o surgimento de um pensamento tão imponente, capaz de levar a cultura humana, em menos de um século, mais longe do que a marcha do milênio e meio anterior a havia levado.

O problema do conhecimento do homem impõe a colocação do sujeito e do objeto em determinação recíproca. Na relação que se dá entre ambos, eles se harmonizam na medida mesma em que o homem faz sua história. O problema ético que desde a antiguidade se resolvia com a submissão dogmática a uma ordem natural se transforma, com o advento da ciência moderna, num novo determinismo. Não é mais o destino que o grego concebia, mas um determinismo ao alcance do homem e que pode ser dirigido por ele. O conhecimento das forças da natureza para o seu emprego em todos os usos possíveis torna o homem senhor e possuidor da natureza. O homem é cindido em duas esferas: de um lado, é o Homem-objeto do conhecimento, determinado como todo o mundo físico. De outro lado é o Homem-sujeito, racional, que pode dirigir seu determinismo. O problema da ação humana se propõe a partir dos conhecimentos, baseados na experiência, dos fatores que condicionam o agir. Ao longo dos tempos, as respostas a esse problema oscilam ao sabor da história. Uns, como Sócrates e pensadores do apogeu da Idade média, advogaram em favor da liberdade. Momentos mais conturbados, ao contrário, apontaram para a necessidade. É o caso do estoicismo e do cristianismo dos primeiros tempos. Mas o problema ético era sempre posto a partir do indivíduo e da sua natureza.

Dessa forma o problema não tem solução, pois a vontade não é livre nem não-livre. Ela somente aparece na ação e se confunde com ela. Críticas como as de Espinoza e Locke mostraram que o problema somente se põe quando a interpretação e a explicação da ação humana postulam a substituição do Homem-objeto pelo Homem-sujeito, ao qual o primeiro se submete como a uma vontade que age independente das contingências. O problema ético só surgia no terreno da metafísica. A saída desse terreno subjetivista só é possível pela a separação dos dois. E isso se dá plenamente na modernidade.

O conhecimento do mundo físico e o método de sua elaboração são juntos o fundamento para a solução do problema da ação humana. A sede determinante da ação se encontra nos fatos concretos da sua vida social e na sua relação com a natureza. O Homem-objeto é o critério para o conhecimento do Homem-sujeito. Tal contexto põe novamente, e de forma mais complexa, o problema de como pode o homem real, necessário e determinado por fatores a que se subordinam todos os indivíduos, ser modificado pelo Homem-sujeito, racional, que pretende por meio desse conhecimento controlar a natureza e as situações históricas, subordinando-as às suas aspirações.

Entre os reformadores, que pressentiam uma nova ordem das coisas, o problema não pode se resolver com a identificação do real, que eles queriam transformado, com o racional. O racional é justamente o oposto da situação vigente e consiste no que a Razão idealiza. Mas o conhecimento do real o coloca como necessário. E esse conhecimento é condição para se agir sobre ele. O postulado determinista que garantia o emprego das ciências físicas na técnica industrial encerrava a humanidade num fatalismo inevitável. Os racionalistas do século XVIII hipostasiaram o racional e o encarnaram numa ordem natural, cuja aproximação ou distanciamento do homem e suas situações sociais variam de acordo com a época. A pouca clareza em relação a essa possível ordem leva até à consideração do despotismo ilustrado, das elites esclarecidas e da soberania popular como instrumentos de natureza providencial. A aplicação de doutrinas de economia prática como a de Adam Smith na Inglaterra, e dos enciclopedistas e fisiocratas consagradas pela revolução na França, fornecem experiências que, por fim, preparam a solução do problema do agir.

E é no pensamento alemão que se abrem as perspectivas para o novo salto, ainda mais radical, para fora do dilema criado pelo racionalismo. A diversidade entre o racionalismo da Inglaterra e da França de um lado, e a crítica alemã de outro é visível quando o assunto é a história. A historiografia franco-inglesa é feita sobre uma interpretação normativa da história. Ao mesmo tempo em que procura leis explicativas dos fatos à moda das ciências naturais, também propõe uma ordem racional ou moral dos fatos. A história aparece condicionada por princípios abstratos, imutáveis. Esses princípios metafísicos se personalizam numa razão exterior que, ativa ou contemplativamente, interfere na vida concreta dos homens. Ocorre então uma contradição entre os pólos opostos do racional e do irracional na história. Para Voltaire a história será a luta constante entre ambos. Para Condorcet será o progresso do instinto para a razão. E para Hume é a marcha da anarquia para o equilíbrio racional entre a liberdade e a autoridade legal.

A historiografia alemã, por outro lado, quando não chega a simplesmente excluir o determinismo racionalista, procura superar o dualismo mecânico entre a razão e entendimento de um lado, e os impulsos e inclinações, de outro. Procura compreender a unidade interna e a totalidade do homem. Pensadores como Herder e Lessing insistem em superar aquela oposição irredutível no pensamento de franceses e ingleses. São as forças humanas concretas, a ação e os impulsos do homem que animam a história e determinam a vida social, e não uma razão abstrata e impessoal. Lessing definirá a história como a educação da raça humana. Assim, em vez da subordinação a planos racionais exteriores à vida dos indivíduos, deve-se procurar na história sua imanência. Os fatos devem ser explicados e interpretados pelo seu próprio conteúdo. As forças que impelem a história são interiores a ela. Por isso Herder vê na idade média o começo histórico-evolutivo da cultura moderna, que nela se ocultava. Não se trata, como pensavam os racionalistas, de um período de puro irracionalismo que ainda se opunha à ordem burguesa emergente.

Esse autodinamismo introduzido na história, apesar de ser inicialmente vago, se tornará no devido tempo a própria dialéticade Hegel. O processo de desenvolvimento histórico se dá por um movimento descontínuo cujo impulso não vem de fora para dentro da história, mas surge do seu interior e estende-se de dentro para fora. Esse esforço inicial de interpretação histórica passará, com Hegel, para o campo da filosofia. Todo esse movimento, no entanto, emerge da filosofia crítica e se posiciona decididamente no sentido de superar as oposições resultantes da separação entre a coisa em si e o objeto da representação. Na filosofia crítica essa oposição básica reflete-se em todos os usos da razão. Nesse sentido a possibilidade de efetivação dos fins dessa razão enquanto razão prática deve ser remetida a um mundo inteligível. O mundo efetivo, da história, resulta naquele em que a causalidade da natureza sobre a vontade humana deve ser superada num progresso necessário, porém, infinito. A liberdade do sujeito contrasta com a realidade social em que as inclinações naturais movem a marcha da espécie. A história não conhece a liberdade, mas caminha em direção a ela como a um ideal apenas regulador. Esse progressivo aperfeiçoamento da humanidade por meio da razão identifica o pensamento kantiano no movimento que marca o século XVIII e que ele chamou de Aufklärung, termo que aqui optamos por chamar Ilustração.

A luta que atravessa o cenário filosófico e político do século XVIII significa, para Hegel, uma revolução do espírito. A Revolução Francesa e a dominação do período napoleônico significavam ainda o esforço do espírito para realizar o racional em si e para si. O Iluminismo aparece na Fenomenologia do Espírito como a expressão dessa revolução, como negação de toda dominação e como defesa incondicional da liberdade do homem. A Ilustração tem em Kant, segundo Hegel, seu máximo representante no pensamento alemão.

A saída da menoridade, que depende apenas da liberdade do sujeito de fazer uso público de sua razão, é o mote com que Kant exalta a Ilustração como a formação contínua e o progresso da humanidade na história rumo à sua máxima realização. Sua moral proíbe o uso do ser humano como mero instrumento. Afirma a humanidade como ser racional em geral, o único fim possível para uma vontade que deve estabelecer sua própria lei.

A liberdade da consciência, motora do Iluminismo, só é tratável em sua filosofia como um postulado da razão prática. Para essa razão a natureza, como reino da causalidade, representa a fonte da heteronomia da vontade. Em última instância, a dialética entre natureza e razão se resolve no plano moral com a imposição incondicional do imperativo categórico sobre as inclinações da natureza e sobre a vontade.

É no que diz respeito à história que Kant procura mostrar que para a natureza humana, pensada como espécie, essa dialética se resolve num plano secreto da natureza, que se vale tanto das disposições morais quanto das inclinações. O método da natureza e a finalidade racional do homem se completam na concepção do esclarecimento progressivo da humanidade em meio à discórdia que impera entre os indivíduos. Ambos levam ao desenvolvimento das disposições do sujeito num progressivo ilustrar-se que, em última instância, se manifestaria nas relações entre as nações.

Se a Ilustração de Kant pode ser definida como um pensamento que se empenha em estender a crítica racional a todos os campos da experiência, é porque ela funda-se na liberdade e na finalidade arquitetônica da razão, em cujo interesse se baseia a possibilidade da causalidade por liberdade.

A REALIZAÇÃO DA LIBERDADE NA HISTÓRIA

O que Kant pensa como iluminismo é definido nas linhas iniciais de um texto de 1783 intitulado Resposta à Pergunta: Que é 'Esclarecimento'? Trata-se, não de uma corrente filosófica em particular, mas de um processo que a razão humana desencadeia por si mesma e que significa: "a saída do homem de sua menoridade, da qual é o próprio culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu próprio entendimento sem a direção de outro indivíduo"[2].

A atitude que Kant reclama aos homens é expressa como Sapere aude: "ouse saber". A menoridade é culpa do próprio homem, pois sua causa não está na falta de entendimento, mas de decisão e coragem. A ligação de Kant com a Ilustração está no fato de que seu pensamento é, sobretudo, uma defesa da razão como responsável pela possibilidade da autonomia do homem. E é à razão que cabe guiá-lo no caminho da sua máxima realização. Fazer uso do próprio entendimento, pensar por si mesmo, é praticamente inevitável se ao público não for negada a única condição para o esclarecimento: a liberdade. A relação entre o saber e o agir é essencial na definição do esclarecimento ou da Ilustração. Para que, pelo próprio discernimento, o homem possa livrar-se da direção de outro e superar a menoridade, a liberdade de fazer um uso público da sua razão em todas as esferas deve ser pressuposta. Essa pressuposição é, enquanto tal, a garantia da possibilidadedo desenvolvimento das luzes. O sujeito, responsável pela própria menoridade, pode e deve livrar-se dela.

Como fundamento do saber e também do agir essa liberdade de que fala Kant é tudo o que a humanidade deve ter para empreender a marcha histórica rumo a um estágio de realização cada vez maior:

"Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões (...) o uso públicode sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento entre os homens. O uso privado da razão pode porém muitas vezes ser muito estreitamente limitado, sem contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento. Entendo contudo sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio faz deladiante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado"[3].

Enquanto no uso privado prevalece a necessidade de uma obediência, de um comportamento passivo diante da instituição em que esteja engajado o sujeito, no uso público da razão o indivíduo goza da autonomia de quem pensa por si mesmo e deve poder comunicar livremente seu pensamento. O caráter esclarecido do uso privado da razão está em não colocar em risco o bom funcionamento das instituições, em evitar uma recaída num completo caos social, enquanto que, ao uso público estaria confiado o avanço do esclarecimento.

E sobre essa tal liberdade, na esfera política, Kant acrescenta: "Quanto ao que se possa estabelecer como lei para um povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele próprio submetido a tal lei"[4]. A possibilidade dessa autolegislação, no conjunto da obra kantiana, remete ao plano moral. Ali Kant distingue também dois planos distintos, quais sejam, o da autonomia e o da heteronomia da vontade; o primeiro relativo à objetividade da lei da razão e o segundo referente à necessidade e à causalidade naturais.

Há na filosofia kantiana, uma clara convicção de que a humanidade está a se formar, de que a Ilustração progride ao encontro de uma finalidade racional. Mas a responsabilidade pelas transformações é totalmente atribuída ao sujeito moral. A noção da liberdade da consciência de si envolve uma autonomia que o próprio sujeito teórico deve buscar na razão prática.

A Crítica da Razão Pura estabelece que além dos objetos da experiência, o próprio sujeito deve ser tomado como fenômenos e como coisas em si. Ele tem um fundamento inteligível, um supra-sensível que não deve ser considerado como ficção ou como conceito vazio. Para Kant, a dificuldade de se conciliar a natureza e a idéia de liberdade nasce do equívoco de se considerar os fenômenos como coisas em si. Tal concepção torna impossível a liberdade, pois, segundo ela, a condição de cada um dos acontecimentos estaria sempre contida na série dos fenômenos e, como seus efeitos, eles estariam necessariamente submetidos à lei da natureza.

Mas se os fenômenos são entendidos como nada mais do que representações encadeadas segundo leis empíricas, e não como coisas em si, eles então necessitam de fundamentos que não sejam fenômenos. Uma tal causa inteligível pode ter seus efeitos determinados por outros fenômenos, mas ela própria e a sua causalidade encontram-se fora da série das condições empíricas.

As idéias que, como a Crítica mostra, seriam objetos de uma metafísica, significam a necessidade imanente à razão de uma síntese definitiva como princípios dos quais se possam derivar todos os elementos reais numa unidade. Mas por não se darem a uma intuição no espaço e no tempo, nas condições de uma experiência possível, as idéias não são passíveis de conhecimento. Elas, no entanto, devem ser pensadas pela razão, pois no seu uso prático a razão funda nelas o agir moral. O sujeito, cujas faculdades a priori tornam constituinte do próprio fenômeno, não é apenas sujeito teórico, mas também e sobretudo sujeito prático. No prefácio Kant mostra o que será na solução da terceira antinomia a chave para a possibilidade do conceito prático da liberdade:

"Se, porém a crítica não errou, ensinando a tomar o objeto em dois sentidos diferentes, isto é, como fenômeno e como coisa em si; se estiver certa a dedução dos conceitos do entendimento e se, por conseguinte, o princípio de causalidade se referir tão somente às coisas como tomadas no primeiro sentido, isto é, enquanto objeto da experiência e se as mesmas coisas, tomadas no segundo sentido, lhe não estiverem sujeitas, então essa mesma vontade pode, por um lado, na ordem dos fenômenos (das ações visíveis), pensar-se necessariamente sujeita às leis da natureza, ou seja, como não livre; por outro lado,enquanto pertencente a uma coisa em si, não sujeita a essa lei e, portanto, livre, sem que deste modo haja contradição[5]".

A filosofia transcendental é crítica na medida em que pretende superar a questão da metafísica determinando, em seu conjunto, as condições do conhecimento seguro e da possível objetividade de idéias como a de liberdade, motora da Ilustração.

A razão prática, por sua vez, obtém por si mesma, realidade objetiva para um objeto supra-sensível da categoria de causalidade. O que o uso especulativo da razão podia apenas pensar, o uso prático confirma mediante um factum. A união da causalidade por liberdade com a causalidade da natureza em um e mesmo sujeito é impossível se este não é representado como ente em si mesmo, em relação com a lei moral, e como fenômeno em relação com a lei natural, um na consciência pura e outro na consciência empírica. De outro modo a contradição da razão consigo mesma é inevitável[6].

No texto intitulado Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant investiga o possível encontro do propósito da Ilustração com os fins da natureza. As manifestações da vontade, as ações humanas, narradas pela história, poderiam ser entendidas como determinadas por leis universais como acontece com os eventos naturais. Com a observação, o jogo da liberdade das ações humanas pode revelar um curso regular, que se desenrola apesar da confusão que reina nas relações entre os sujeitos individuais. No conjunto da espécie pode mostrar-se o desenvolvimento progressivo das disposições naturais do homem. Os homens lutam entre si perseguindo seus fins particulares, e seguem, sem perceber, como a um fio condutor, o propósito da natureza. O sentido desse movimento a Critica da Razão Pura já adiantava: "o fim último da natureza sábia e providente na constituição da nossa razão, consiste somente no que é moral"[7].

Diz Kant que o meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo das mesmas na sociedade. Esse antagonismo se torna ao fim a causa de uma ordem regulada por leis dessa sociedade. É o que ele define como a insociável sociabilidade dos homens, a tendência destes a conviver em sociedade, que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade. O homem tem uma inclinação natural a associar-se, pois se sente mais homem num tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele também tem uma forte tendência a separar-se. Ele encontra em si também uma qualidade insociável que o faz agir sempre em seu proveito próprio, apesar da oposição dos outros. Também está inclinado a fazer oposição aos outros. É essa oposição que desperta todas as forças do homem e o leva a superar sua tendência à preguiça. Movido pela busca de projeção e de dominação ou pela cobiça, o indivíduo é levado a perseguir uma posição entre aqueles que não atura, mas dos quais depende:

"Dão-se então os primeiros passos que levarão da rudeza à cultura, que consiste propriamente no valor social do homem; aí desenvolvem-se aos poucos todos os talentos, forma–se o gosto e tem início, através de um progressivo iluminar-se (Aufklärung), a fundação de um modo de pensar que pode transformar, com o tempo, as toscas disposições naturais para o discernimento moral em princípios práticos determinados e assim finalmente transformar um acordo extorquido patologicamente para uma sociedade em um todo moral sem aquelas qualidades da insociabilidade"[8].

A despeito da trama incoerente dos fatos que envolvem a autonomia e principalmente a heteronomia da vontade dos seres humanos, a espécie progride rumo a um ideal de sociedade, como um supremo fim. Trabalham para ele, sem conhecê-lo[9]. Sábia, a natureza incita, pela intratabilidade e pela vaidade, a inveja competitiva entre os indivíduos. O sempre insatisfeito desejo de ter e de também dominar impede que todas as excelentes disposições naturais da humanidade permaneçam em germe, sem desenvolvimento. O homem deseja a concórdia, mas a natureza, que sabe o que é melhor para a espécie, quer a discórdia.

Em termos kantianos, o fim da natureza com relação ao ser racional é sua saída da menoridade. E esse fim remete à liberdade de que ele necessita para se ilustrar. As manifestações da vontade, as ações humanas, podem ser entendidas como determinadas por leis universais como todo acontecimento natural, qualquer que seja a concepção da liberdade. No conjunto da espécie pode mostrar-se o desenvolvimento progressivo das disposições naturais do homem. Os homens, ao perseguirem seus fins particulares, competindo entre si, seguem, inconscientes, o propósito da natureza, como a um fio condutor. Como o filósofo não pode pressupor nos homens e seus jogos, tomados em conjunto, nenhum propósito racional próprio, a única saída é procurar no curso aparentemente absurdo das ações humanas um propósito da natureza que possibilite, todavia, uma história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio.

Kant acredita que as disposições naturais do homem, que estão voltadas para o uso de sua razão, progridem em direção aos seus fins supremos, mas em relação à espécie humana e não ao indivíduo. A razão é a faculdade de ampliar as regras e os propósitos do uso de todas as forças de um ser racional. Ela não atua apenas de maneira instintiva, mas, ao contrário, necessita de tentativas, exercícios e ensinamentos para progredir, aos poucos, de um grau de inteligência a outro. A pouca duração da vida de um único homem faz com que a natureza necessite de uma série indefinida de gerações que transmitam umas às outras as suas luzes. Assim, para a espécie, delineia-se uma trajetória progressiva da barbárie até aquele grau de desenvolvimento que é completamente adequado aos fins da natureza. Esse momento precisa ser, ao menos na idéia dos homens, o objetivo dos seus esforços. Caso contrário, as disposições naturais do homem seriam totalmente inúteis e sem finalidade. E a natureza seria, apenas no caso dos homens, um jogo infantil.

A filosofia crítica recorre à importância do ideal prático como um exemplo de perfeição, um arquétipo, em cuja mira se define o fim da própria Ilustração enquanto pedagogia, qual seja, o aperfeiçoamento da espécie humana. Na Crítica da Razão Pura, a República de Platão é lembrada como exemplo de um ideal perfeito. Ali, a idéia de virtude pode ser exemplificada pelos objetos da experiência possível, mas não tem neles um modelo. Mesmo que ninguém possa agir em perfeita adequação com o conceito de virtude, isso não quer dizer que ele se torna uma simples quimera. Por maiores que sejam as limitações da natureza humana, qualquer aproximação à perfeição moral tem nessa idéia da razão um fundamento e o princípio da sua própria realidade.

Assim, uma constituição que tenha por finalidade a máxima liberdade humana, de acordo com leis que permitam a coexistência da liberdade de um indivíduo com a de todos os outros, deve servir de fundamento a todo projeto de constituição política e a todas as leis. Os obstáculos presentes devem ser abstraídos por essa idéia, pois dizem respeito muito mais à inelutável natureza humana do que à idéia em si. A legislação e o governo devem estar o mais próximo possível dessa idéia:

"Embora tal não possa nunca realizar-se, é todavia perfeitamente justa a idéia que apresenta este maximum como um arquétipo para, em vista dele, a constituição dos homens se aproximar cada vez mais da maior perfeição possível. Pois qual seja o grau mais elevado em que a humanidade deverá parar e a grandeza do intervalo que necessariamente separa a idéia da sua realização, é o que ninguém pode nem deve determinar, precisamente porque se trata de liberdade e esta pode exceder todo o limite que se queira atribuir"[10].

Na Dialética Transcendental Kant define idéia como um conceito necessário da razão que não pode ter um objeto correspondente na intuição do espaço e do tempo. Para a razão teórica as idéias podem ter um uso meramente transcendente. Daí poder-se dizer que é apenas uma idéia. E quanto à possibilidade de dar-se uma imagem de tal totalidade, ela permanece um problema sem solução. Porém, como no uso prático do entendimento trata-se de uma execução segundo regras, a idéia da razão prática sempre pode se fazer real. E mesmo que in concreto ela seja dada apenas em parte, é condição indispensável de todo uso prático da razão. Mesmo que a sua realização seja limitada, esses limites não são determináveis:

"A idéia prática é, pois, sempre altamente fecunda e incontestavelmente necessária em relação às ações reais. A razão pura tem nela a causalidade necessária para produzir, efetivamente, o que o seu conceito contém; pelo que não se pode dizer da sabedoria, de certo modo displicentemente, que é apenas uma idéia; mas, justamente, por ser a idéia da unidade necessária de todos os fins possíveis, deverá servir de regra para toda a prática, como condição originária, ou, pelo menos, limitativa"[11].

A esse respeito as duas últimas proposições de Idéia de Uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita resumem a tarefa dos homens na sociedade como a busca da maior aproximação possível da constituição política perfeita. O maior problema para a espécie humana, que a natureza exige solução, é alcançar uma sociedade civil que administre universalmente o direito, de modo a permitir ao homem poder coexistir com a liberdade dos outros.

Somente na sociedade o mais alto propósito da natureza, ou seja, o desenvolvimento de todas as disposições da humanidade, pode ser alcançado. E a natureza quer que a humanidade proporcione a si mesma este propósito, como todos os outros fins de sua destinação. Uma constituição civil, perfeitamente justa, deve ser a mais elevada tarefa da natureza para a espécie humana. A natureza só pode alcançar seus outros propósitos em relação à humanidade por meio da solução e cumprimento daquela tarefa. É a necessidade que força o homem, normalmente tão afeito à liberdade sem vínculos, a entrar neste estado de coerção. Apenas sob estas condições, as mesmas inclinações produzem o melhor efeito. Assim se desenvolve toda cultura e toda arte que ornamentam a humanidade. Humanidade que precisa se disciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto, a desenvolver completamente os germes da natureza. Este problema é o mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana.

A EDUCAÇÃO

A problemática da educação está no centro das discussões dos ilustrados sobre o homem. Os escritos de Kant sobre a pedagogia são inseparáveis do conjunto do sistema. Na educação, teoria e prática se aliam. A possibilidade da formação do homem pressupõe disposições latentes no simples animal humano e as projeta para o futuro no sentido do pleno desenvolvimento das potencialidades da espécie. Entre todas as criaturas, o homem é a única que precisa ser educada. A natureza não o dotou dos instintos que protegem os animais e lhes garante a subsistência e a adaptação ao meio. O ser humano nasce na dependência dos cuidados e da proteção de outros. No entanto, as limitações em relação aos instintos são supridas pela sua razão. E o que o indivíduo não pode resolver sozinho pode, com o tempo, ser alcançado pela espécie como um todo.

O destino impôs a solidariedade entre os homens que, na história, se desenrola de modo evidente na experiência cumulativa das gerações. A insociável sociabilidade do homem é o princípio de todo o progresso e de toda conquista da humanidade no domínio da cultura. Kant contrapõe a história da natureza à história da liberdade. A primeira, que é obra de Deus, começa com o bem. A segunda começa com o mal, pois é obra humana. Para o indivíduo a emancipação em relação à natureza instintiva pode ser incerta e arriscada, mas para a espécie em sua totalidade o avanço no domínio cultural garante que, na história, o curso das coisas humanas caminhe no sentido do melhor. Em suas Reflexões Sobre a Pedagogia pode-se ler:

"A educação é uma arte cujo exercício tem de ser aperfeiçoado através de muitas gerações. Cumulada com os conhecimentos dos que já passaram, cada geração pode sempre estabelecer, cada vez mais, uma educação que desenvolva proporcionalmente e de forma conforme ao seu fim todas as disposições naturais do homem e assim conduzir todo o gênero humano à sua destinação"[12].

No desenvolvimento progressivo da racionalidade na história, a humanidade alcança sua plena natureza. A idéia de educação encontra-se no interior da história da liberdade. A educação é o maior e o mais difícil problema a que o homem pode se dedicar. Por isso o êxito em uma tarefa tão importante exige o empenho não de alguns indivíduos, mas de toda a raça humana. Do pouco que já se esclareceu do conceito de perfeição que a natureza pode alcançar já se deduz que não é o indivíduo como educador que pode levar seus educandos a alcançarem sua destinação. É o gênero humano que deve obter sucesso nessa tarefa. Não é possível educar sem a clara idéia de um fim, que em cada momento da história estabelece o vínculo entre educadores e educandos na forma de uma questão circular: Não há educação sem educadores, e não há educadores sem educação. O homem somente pode ser educado por outros homens, que foram igualmente educados.

Por educação Kant entende os cuidados, referentes à alimentação e à subsistência, a disciplina, o grau legítimo de coerção e de limites que diz respeito à verdadeira liberdade, a instrução e a formação. As reflexões pedagógicas se estendem pela educação física e a educação moral. A educação compreende o cuidado e a formação. Trata-se de um processo longo que inclui de um lado a disciplina e o treino e de outro a instrução e a cultura. O cuidado lida com a criança como uma parte da natureza unicamente. É o primeiro estágio da vida humana, o bebê. Inicia-se uma educação física, que incide sobre as disposições naturais ligadas à alimentação, ao crescimento saudável e equilibrado da criança, à autoconservação. A formação é sobretudo a educação moral, que contempla a aquisição positiva de conhecimentos, hábitos, artes e ao trabalho criativo. A segunda parte, positiva, pressupõe como condição preliminar a aprendizagem da disciplina, que liberta a criança da tirania dos impulsos e dos desejos de preguiça e de acomodação a idéias prontas e à rotina.

A criança manifesta em relação aos pais e aos adultos em geral a tendência a uma obediência que é cega. Esse traço é a marca que a natureza já imprimiu em nós de nossa disposição para a moralidade. Ainda que passiva, a submissão a regras pela criança a integra na legalidade pré-existente e esse treino é indispensável à atividade racional que ela virá a desempenhar. O desenvolvimento pedagógico subseqüente tem como princípio de possibilidade a disciplina, sem a qual os indivíduos permanecem submissos aos caprichos, e tendem apenas para o que não exige esforço. A educação positiva, por sua vez, envolve os procedimentos relativos à instrução e a cultura. Diz respeito ao acesso que deve ter o educando às técnicas e às ciências. É um aprendizado empírico que dotará o jovem de habilidades e conhecimentos necessários para a vida, para que possam ultrapassar obstáculos em direção à plena maturidade.

Por isso o educador precisa respeitar a seqüência das tarefas pedagógicas a serem colocadas. Precisa ter clareza sobre a natureza dos instrumentos físicos e psíquicos disponíveis a cada etapa do desenvolvimento infantil e juvenil. Kant pensa de acordo com uma arquitetônica da razão, da interligação das partes de um todo lógico. Há uma ordem natural que rege o desenvolvimento juvenil e que não pode ser desrespeitada. Segundo Kant, espera-se do educador que ele forme nos seus ouvintes primeiramente o homem que entende, em seguida, o que raciocina e, finalmente, o sábio. Mesmo que o estudante não alcance o último grau, como é normal, terá tirado proveito da instrução. Terá se tornado mais hábil e prudente, se não para a escola, ao menos para a vida.

Os estágios pedagógicos apresentam uma hierarquia clara: disciplina, instrução e educação. A primeira impõe hábitos e purifica a criança de sua animalidade estabelecendo os marcos de condutas tipicamente humanas; a segunda dá-lhe o "saber fazer" além dos conhecimentos intelectuais. A educação, porém, abre-lhe o a perspectiva de uma destinação humana que é essencialmente prática. Essa destinação se resume no exercício da liberdade plena. A educação, portanto, visa um fim que não se confunde com ela mesma. Esse fim é a moralidade. Sua finalidade última é a perfeição moral da espécie humana que, obviamente, não está plenamente realizada: "Vivemos a época da disciplinação, da cultura e da civilização, mas estamos muito longe de viver na época da moralização."[13] O homem é chamado a cumprir sua natureza e tornar-se ativamente digno de sua humanidade, apesar de sua tendência animal para se entregar passivamente à exigência de conforto e de bem-estar que vulgarmente se chama de felicidade. O homem está destinado por sua razão a, por meio das artes e das ciências, existir numa sociedade com outros homens e a cultivar-se, civilizar-se e moralizar-se nela. A moralidade não é uma conseqüência necessária, um efeito inevitável da educação. A perfeição moral da humanidade como um todo permanece uma meta final a ser alcançada. Essa meta exige a mudança de perspectiva do campo do determinismo da natureza para o da liberdade racional. Exige uma revolução no pensamento que a Ilustração propõe. Nenhuma revolução meramente política tem tal alcance.

A educação para a moralidade significa, portanto, a formação do caráter. O caráter em questão significa a disposição refletida e consciente para escolher bons fins. Fins que não sejam bons apenas para a satisfação dos impulsos egoístas do indivíduo, mas que sejam potencialmente bons do ponto de vista da humanidade. A dignidade do homem está em que ele não deve jamais ser tomado como meio, mas sempre como o fim do agir. Essa é a forma do imperativo da razão prática. Na filosofia kantiana, a disposição moral é parte integrante da estrutura da personalidade do sujeito. E a pedagogia investe sobretudo nessa interioridade. Não se trata de hábito, mas de disposição. O primeiro é uma maneira de sentir que corresponde a uma atividade mecânica ou a uma resposta passiva a estímulos exteriores. A disposição é maneira de pensar. É atividade racional de discernimento e escolha. Por isso a disciplina é crucial em sua própria negatividade, pois domestica os impulsos desregrados da criança. No âmbito da educação positiva importa que a criança se habitue a agir segundo máximas, regras. Ela estará se iniciando na prática da obediência consciente a leis. A cultura moral não deve se basear na disciplina simplesmente, mas na prontidão a agir segundo máximas. Estas são princípios reguladores do agir. A interiorização progressiva desses princípios permite que a escolha do indivíduo seja boa no sentido de optar pelo que é objetivamente bom para a dignidade da pessoa e da espécie.

Há um salto qualitativo do plano empírico e indutivo da pedagogia, para o plano inteligível da ética. A metodologia pedagógica repousa no senso comum, valoriza as experiências, o recurso a exemplos, o esquema catequético com base em perguntas e respostas. Práticas conhecidas que ganham novo sentido, pois visam agora a recusa da adesão impensada a modelos exteriores, a recusa da formação de meros hábitos como fundamento da aprendizagem e também a recusa de uma origem empírica e utilitária dos valores morais. Entre os meios experimentais para a formação da virtude estão o bom exemplo do educador e o exemplo preventivo de outras pessoas. Pois para o ser humano ainda não formado, a imitação é a primeira determinação da vontade para aceitar as máximas que, posteriormente, ele elabora para si próprio. A criança ainda necessita de uma manifestação física da virtude com a qual possa identificar-se e com ela aprender. Com o tempo, o estudante precisa deixar-se levar por esta linha condutora. Kant adverte o estudante de que o objetivo, a longo prazo, é compreender que a norma e a instrução repousam somente em sua própria razão. A própria razão lhe ensina o que deve fazer e diretamente ordena-lhe que o faça. Na verdade, o que o exemplo lhe mostrava ou o que outros seres humanos lhe ensinavam não é necessário. Mas para os jovens isso ainda não é visível. Somente com a plena formação do caráter ele converte o fim em um dever seu, para que seja digno da humanidade que nele habita. Esse o verdadeiro exercício da liberdade, princípio do esclarecimento da humanidade, do lento e gradual processo de aperfeiçoamento rumo ao ideal da coexistência pacífica entre os homens, ou seja, da Ilustração.




Autor: Roney Wagner Vieira


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