A ATITUDE LINGÜÍSTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO



A ATITUDE LINGÜÍSTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO: A POSTURA ESTÁ CORRETA?

"Laslangues n´existent pas en dehors des sujets que les parlent". (Antoine Meillet)

1. Introdução

O mundo contemporâneo, cada vez mais influenciado pelo processo de Globalização, que afetou todos os âmbitos sociais, como por exemplo, a educação, fez surgir a necessidade de reformulação do ensino das séries iniciais em países do Terceiro Mundo, uma vez que a crescente industrialização, a agilidade dos meios de comunicação e a ampliação da comunidade usuária da escrita, ocasionada devido à redução do percentual de analfabetos (o que de certa forma aumenta o contingente de alunos no ensino regular), condicionaram a superação das metodologias e conteúdos até então adotados, perpetuados e valorizados.

Assim sendo, as discussões acerca da melhoria no processo de ensino-aprendizagem ocorreram a partir dos meados do século XX. Especificamente na década de 70, o ensino de Língua Portuguesa no Brasil começou a ser repensado, pois o fracasso e a conseqüente evasão escolar eram causados devido à deficiência com relação ao domínio da leitura e da escrita por parte dos alunos, principalmente na transição para duas séries: do ensino infantil para a primeira série do primeiro ciclo (da alfabetização para a antiga primeira série do primeiro grau) e da última série do segundo ciclo para a primeira do terceiro (da quarta série do antigo primeiro grau para quinta série do mesmo). Destarte, houve uma reformulação no modo de ensinar, porém esta só atendeu as classes alta e média da sociedade brasileira, deixando à margem da referida reorganização educacional as camadas socialmente desfavorecidas.

Essa reformulação excludente do sistema de ensino foi enormemente criticada por educadores mais democraticamente politizados, surgindo, por conseqüência, uma nova proposta de organização do sistema educacional brasileiro, não mais baseada em pressupostos lingüísticos normativos e filológicos, mas pautada na variação lingüística e na psicolingüística. Isto ocasionou um maior direcionamento para a ressiginificação da concepção de erro, admissão das variedades lingüísticas dos discentes, valorização de suas reflexões sobre a língua, enfim, uma maior ênfase na linguagem do aluno, apesar das ainda presentes atitudes "corretivas" e preconceituosas.

Devido à presença muito marcante dessas atitudes, quer por parte dos autores dos livros didáticos, quer por parte dos professores com uma formação acadêmica precária, a abordagem da variação lingüística bem como a do valor atribuído às variantes de cada variedade ainda continuam sendo tratadas equivocadamente no âmbito escolar.

Nesse sentido, a presente comunicação escrita, considerando que o equívoco acima explicitado provém de uma má condução na relação entre indivíduo falante e sua variedade lingüística, teve por objetivo verificar se a atribuição de valor dada às formas lingüísticas e sua relação estrita e direta com o seu falante está exposta objetiva, adequada e coerentemente no texto didático-expositivo dos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio – doravante LD.

Procedemos assim, por concebermos que, caso tal relação não seja explicitada pelo LD, ficaria obscuro para o aluno perceber a real origem das diferenças e dos valores atribuídos às variedades lingüísticas, recaindo assim, sempre na prática de buscar o "erro" na variedade socialmente desprestigiada e o "acerto" na variedade também socialmente prestigiada.

Para tanto, guiados à luz dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental e dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (doravante PCNEF e PCNEM[1], respectivamente), selecionamos, em três LD, o capítulo que trata, especificadamente, da variação lingüística e comparamos, em cada um deles, a exposição do conteúdo (o texto didático-expositivo), as propostas e/ou objetivos trazidos no manual do professor e os exercícios referentes à nossa problemática propostos para cada capítulo.

Os livros analisados foram, respectivamente: "Português – Língua, Literatura e Produção de textos", de Maria Luiza Abaurre, Marcela Nogueira Pontara e Tatiana Fadel; "Português – Literatura, Gramática, Produção de textos", de Leila Lauar Sarmento e Douglas Tufano e "Português: Língua e Cultura", de Carlos Alberto Faraco.

Dessa forma, afora a introdução e as considerações finais, buscaremos organizar nossas discussões em quatro momentos distintos. No primeiro deles, discutimos como a inserção do estudo da variação lingüística na escola trouxe novas e preocupantes implicações para o processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa. Para o segundo instante, deixaremos a abordagem dos fatores sociais responsáveis pela variação lingüística, em especial, a procedência social do falante. No terceiro momento, caracterizaremos os LD analisados, de acordo com a avaliação do Catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio/2005 – doravante PNLEM/2005.

Já para o quarto momento, analisaremos, comparativamente, os textos didático-expositivos escolhidos para a análise, as propostas/objetivos dos LD trazidos no manual do professor e os exercícios/questões propostos por cada um dos livros, sejam eles discursivos (abertos) ou de múltipla escolha (fechados). Tal metodologia se faz necessária, tendo em vista que o nosso objetivo é verificar se há uma compatibilidade didático-metodológica entre texto didático-expositivo,proposta/objetivo e atividades propostas pelo capítulo em análise.

2. A variação lingüística e suas implicações para o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa

Com a democratização do ensino, ocorrida a partir de meados da década de 80, cada vez mais a escola começou a receber uma clientela diversificada, a qual provinha das mais diversas camadas sociais e trazia consigo uma pluralidade de discursos. Dentre essa referida pluralidade discursiva, está a variação lingüística[2], o que implica em um contato, quase sempre conflituoso, em um mesmo espaço – o âmbito escolar – de diferentes formas de se expressar.

No eixo da variação lingüística em nossa sociedade, está, de um lado, uma linguagem formal, que corresponde à norma culta/padrão da língua, falada, geralmente, pelas classes dominantes, e, de outro, a linguagem informal, que corresponde às variedades lingüísticas, usadas, na maioria das vezes, pelas camadas menos favorecidas socialmente.

Estas, com a abertura mais democrática do ensino público, ao menos no que tange à abertura de mais vagas na escola, inserem-se na realidade escolar, porém trazem um fardo pesado consigo: a sua modalidade de fala, que não é a mesma tomada pela instituição como pilar para suas práticas educacionais.

Por não darem espaço à linguagem das castas mais socialmente desfavorecidas da população, as escolas aculturam o aprendiz, pois sua linha pedagógica adota uma variedade de língua que se distancia de outras utilizadas no meio sociocultural do aluno socialmente marginalizado.

Essa tentativa de impor aos discentes uma variedade de língua com a qual não estão habituados a lidar – a variedade padrão – faz com que os mesmos rejeitem a sua forma de expressão e, por extensão, sua identidade sociocultural, desenvolvendo em si um processo de insegurança lingüística[3]. Para sanar esta insegurança, é necessário que se reconstrua a auto-estima do aluno através do contato, reconhecimento, discussão e defesa das diferenças lingüísticas[4].

Por essa ótica, a ação pedagógica tradicional, muito atrelada às manifestações verbais de uma verdadeira elite sócio-econômico-cultural, desencadeia um processo de aculturação lingüística com relação ao aluno provindo de uma camada desfavorecida da população, seguido de um estado de afasia[5], uma vez que não respeita o seu modo de expressão, impondo-lhe outro que não é o inerente ao seu grupo social ou, até mesmo, à sua comunidade de fala.

O que há de fato é uma certa discriminação no tocante à língua não-padrão, porque nela existem "marcas" que denunciam a procedência social do falante, vindo, geralmente, de uma classe pouco ou nada abastada. Todavia, não é isso o que é apregoado por documentos oficiais como, por exemplo, os PCN. Este documento defende que a escola não "reproduza em seu espaço a discriminação lingüística (...) e não trate as variedades lingüísticas que mais se afastam dos padrões estabelecidos pela gramática tradicional e das formas diferentes daquelas que se fixaram na escrita como se fossem desvios ou incorreções" (PCNEF, 1998/2001: 82).

Em outras palavras: a instituição escola deve abolir o conflito em torno da abordagem da variação lingüística em salsa de aula, assegurando o acesso de todo o alunado aos bens simbólicos da sociedade, dentre eles a forma padrão da língua, porém sem se esquecer de relevar a modalidade de expressão que a sua clientela traz quando se insere na vida escolar.

3. Os fatores sociais da variação lingüística

Um olhar mais atento para os fenômenos lingüísticos evidenciará que as línguas naturais estão sempre em constante mudança. A variação lingüística é acontecimento inerente às línguas humanas e ocorre em todos os níveis – fonológico, morfológico, sintático – sempre existindo e persistindo, apesar de toda e qualquer ação normativa[6]. Assim, qualquer língua em uso exibirá variações, não se constituindo como uma entidade homogênea[7].

Esta heterogeneidade constitutiva das línguas naturais decorre, segundo documentos oficiais, "de fatores geográficos, socioeconômicos, de (sic) faixa etária, de (sic) gênero (sexo), da relação estabelecida entre os falantes e do contexto de fala" (PCNEF, 1998/2001: 29). Este fato é também apontado nos Parâmetros do Ensino Médio quando salientam que "as variantes lingüísticas são marcadas pelo gênero, pela profissão, pela camada social, idade região" (PCNEM, 1999: 143). Tais afirmações correspondem ao que nos foi apontado por Alkmin: "no plano sincrônico, as variações observadas nas línguas são relacionáveis a fatores diversos: dentro de uma mesma comunidade de fala, pessoas de origem geográfica, de idade, de sexo diferentes falam distintamente" (ALKMIN, 2001: 34). Dessa maneira, segundo a referida autora, "podemos descrever as variedades lingüísticas a partir de dois parâmetros básicos: a variação geográfica (ou diatópica) e a variação social (ou diastrática)" (Op. cit.). Neste último parâmetro, de acordo com Alkmin, estão presentes: a classe social, o sexo, a idade e o contexto de fala.

Linhas acima, ao discorrermos sobre a variação lingüística e suas implicações no processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, percebemos que a tentativa de imposição da língua padrão acarreta o processo de aculturação lingüística, além de um estado de afasia. Conseqüentemente, tal procedimento deságua em uma discriminação no que respeita a modalidade não-padrão/culta da língua, não devido a características estritamente lingüísticas inerentes a esta última, mas pela procedência sociocultural do falante dessa modalidade.

Observa-se, pelo exposto, que a valorização ou não de uma determinada variedade lingüística ocorre muito mais em face da classe social de seu falante. Vale salientar que, em muitos casos, a procedência regional também é um fator de desvalorização e de exclusão. Veja-se, por exemplo, a depreciação por que passao falar nordestino.

Assim, no julgamento das variedades lingüísticas, há uma escala de valores que tem um fundo social e não lingüístico, ou seja, algumas formas de expressão estigmatizam seus falantes, ao passo que outras os valorizam. Em outras palavras: existe um conflito muito evidente entre a modalidade ensinada na escola, concebida como modelo único – a variedade padrão – e o dialeto social dominado pelo aluno excluído socialmente, que denuncia sua procedência sociocultural. Tal fato nos é também assegurado pelos Parâmetros do Ensino Fundamental: "em um mesmo espaço social convivem mescladas diferentes variedades lingüística (sic), geralmente associadas a diferentes valores sociais" (PCNEF, 1998/2001: 29).

Dessa maneira, há uma intervenção preconceituosa no ensino de Língua Portuguesa, uma vez que a prática pedagógica é bastante relacionada às manifestações lingüísticas das classes dominantes. Contudo, os pressupostos sociolingüísticos asseveram que não se pode conceber a variação lingüística "por um crivo valorativo, já que não são mais que formas alternativas que o sistema lingüístico põe à disposição do falante" (CAMACHO, 2001: 69).

Com se pode evidenciar, os fatores acima apontados são bastante relacionados aos papéis sociais a que fazem referência os PCNEM, ao assegurarem que "a avaliação que se faz do 'outro' e a expressão dessa avaliação em contextos comunicativos devem ser pauta no estudo da língua" (PCNEM, 1999: 140). Desse modo, considerando muito mais aspectos relacionados aos papéis sociais (a imagem do falante, sua procedência geo-sócio-cultural, entre outros), no estudo da variação lingüística e concebendo os livros didáticos como um "instrumento de trabalho", que, em sala de aula, com o auxílio do professor, leva o conhecimento ao aluno, verificamos a explicitação adequada ou não do relacionamento entre o valor lingüístico e sujeito nos LD.

Para tanto, observamos, primeiramente, a caracterização dos LD, no que concerne à variação lingüística, consoante o "Catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio/2005 –PNLEM/2005".

4. Caracterização dos LD consoante o guia PNLEM/2005[8]

Avaliando o LD "Português – Língua, Literatura e Produção de textos", de Abaurre, Pontara e Fadel, o referido catálogo assevera que a "variação lingüística (...) é abordada corretamente, o que, sem dúvida, contribui para a formação de um leitor vigilante quanto aos vários tipos de preconceito e de exclusão social pela linguagem" (PNLEM/2005, 2004: 41). Pela citação, podemos evidenciar que o livro carrega conceitos relevantes para o trabalho crítico com a linguagem, contribuindo para a formação cidadã, uma vez que aborda o tema do preconceito e da exclusão social via linguagem.

Ao apreciar o LD "Português – Literatura, Gramática, Produção de textos", de Sarmento e Tufano, o guia PNLEM/2005 afirma que os "conhecimentos lingüísticos, no que diz respeito à gramática, priorizam uma visão normativista do ensino da língua, deixando a percepção crítica e a reflexão em segundo plano" (Idem: ibidem: 47), e que o referido livro "tampouco aborda o fenômeno da mudança lingüística, sobretudo na perspectiva mais ampla das circunstâncias históricas por que a língua passou, como resultado natural de seu fluxo através do tempo" (Idem: ibidem: 50). Por meio do transcrito, vê-se que o livro aborda apenas superficialmente a questão da variação lingüística, já que não faz menção à exclusão e ao preconceito lingüísticos.

Já para o LD "Português: Língua e Cultura", de Faraco, o catálogo do PNLEM/2005 apregoa que

Os conhecimentos lingüísticos recebem uma abordagem muita bem informada pelas ciências da linguagem, inclusive no que diz respeito à gramática, jamais confundida com o ensino exclusivo de aspectos pertinentes da norma culta. Garante-se, assim, um tratamento adequado e politicamente correto da variação lingüística. (PNLEM/2005, 2004: 53).

 

Além disso, o documento afirma que o livro "propõe, ainda, atividades voltadas para levar o aluno a reconhecer e a adequar o discurso a situações formais e informais, valorizando, efetivamente, o trabalho com a variação lingüística" (Idem: ibidem: 54). Tais passagens asseguram um tratamento igualitário e coerente no tocante à variação lingüística, fato que contribui para a abolição de imagens pejorativas com relação à língua e a seus falantes.

5. Análise dos LD

O primeiro LD analisado – "Português – Língua, Literatura e Produção de textos", de Maria Luiza Abaurre, Marcela Nogueira Pontara e Tatiana Fadel – traz, no texto didático-expositivo proposto para o aluno, uma referência objetiva à questão da atribuição de valor às variedades lingüísticas:

O preconceito lingüístico é o julgamento dos falantes (cultos ou não) a partir da variedade lingüística que utilizam.

Do ponto de vista estritamente lingüístico, não há nada nas variedades lingüísticas que permita considerá-las boas ou ruins, melhores ou piores, feias ou bonitas, primitivas ou elaboradas, e assim por diante.

Todas as variedades constituem sistemas lingüísticos perfeitamente adequados para a expressão das necessidades comunicativas e cognitivas dos falantes, dadas as práticas sociais e os hábitos culturais de suas comunidades.

(pág. 143)

Apesar de ressaltar que "do ponto de vista estritamente lingüístico, não há nada nas variedades lingüísticas que permita considerá-las boas ou ruins, melhores ou piores, feias ou bonitas, primitivas ou elaboradas", deixando entrever que há um outro motivo para o julgamento discriminatório das variedades lingüísticas, as considerações (o texto didático-expositivo) não explicitam diretamente que o referido julgamento é muito mais relacionado à procedência sociocultural do falante do que à variedade propriamente dita.

Isso vai de encontro, mesmo que parcialmente, ao que é proposto pelo objetivo do manual do professor, que assevera no capítulo referente à variação lingüística:

O objetivo de uma discussão mais detalhada sobre a relação entre variação e norma é, além de sensibilizar o aluno para a existência de diferentes variantes no Português, fazer com que ele entenda que não há, nessas variantes, nenhuma deficiência ou erro. O julgamento de valor que sobre elas se faz é social e serve, freqüentemente, como "argumento" para discriminação baseada no preconceito.

(pág. 16)

Observemos que no objetivo do referido manual, mesmo não expondo diretamente a atribuição de valor às formas lingüísticas e sua relação com o falante, menciona o caráter social do julgamento valorativo:

O julgamento de valor que sobre elas [as variantes] se faz é social

(idem)

Tal menção é positiva, caso tivéssemos professores com uma boa formação sociolingüística. Porém, levando-se em consideração que muitos dos nossos docentes são leigos sociolingüisticamente, o manual do professor não vai ajudá-lo em sala de aula (ou ajudará pouco) na abordagem do fenômeno da variação lingüística, pois não conseguirão explicações mais plausíveis e coerentes para o tratamento do conteúdo. Resumindo: tornam-se limitados em suas conjecturas acerca do tema, não contribuindo assim para a construção da reflexão crítica dos alunos no que diz respeito à linguagem.

Paradoxalmente, em uma das questões propostas pelo livro para o trabalho com a variação lingüística, a noção de atribuição de valor às formas lingüísticas relacionada ao sujeito-falante é abordada mais adequadamente, tanto na formulação da questão, quanto na sugestão de resposta contida no manual do professor:

O texto a seguir circulou pela internet como uma piada.

Correção ortográfica

"O gerente de vendas recebeu o seguinte fax de um dos seus novos vendedores:

Seo Gomis,

o criente de belzonte pidiu mais cuatrucenta pessa. Faz favor toma as providenssa.

Abrasso,

Nirso

Aproximadamente uma hora depois recebeu outro.

Seo Gomis,

os relatoriodi venda vai xega atrazado proque to fexano umas venda. Temo que manda treiz miu pessa. Amanha to xegano.

Abrasso,

Nirso

No dia seguinte:

Seo Gomis,

num xeguei pucausa de que vendi maiz deis mil em Beraba. To indo pra Brazilha.

No outro:

Seo Gomis,

Brazilha fexo 20 miu. Vo pra Florinoplis e de lá pra Sum Paulo no vinhão das cete hora.

E assim foi o mês inteiro.

O gerente, muito preocupado com a imagem da empresa, levou ao presidente as mensagens que recebeu do vendedor. O presidente, um homem muito preocupado com o desenvolvimento da empresa e com a cultura dos funcionários, escutou atentamente o gerente e disse:

- Deixa comigo que eu tomarei as previdências necessárias.

E tomou: redigiu de próprio punho um aviso que afixou no mural da empresa, juntamente com os faxes do vendedor:

'A parti de oje nois tudo vamo faze feito o Nirso. Si priocupá menos em inscreve serto mod a vendê maiz'.

Acinado,

O Prezidenti.

(Autoria desconhecida, set. 2001)

.....................................................................

7. O comportamento do gerente deixa implícita sua opinião sobre diferentes variantes da Língua Portuguesa.

a)Que opinião é essa?

b)De que maneira a atitude tomada pelo presidente da empresa demonstra que o uso de uma variante não pode ser associado ao modo de avaliar o falante que a utiliza?

(pág. 145)

Observemos que a ênfase no julgamento de valor relacionado ao falante da variedade lingüística é bem maior, como nos deixa evidenciar a pergunta "De que maneira a atitude...que a utiliza?". Aqui, a variante utilizada pelo sujeito, construindo a imagem pejorativa de ambos – do falante e da variante – é posta em questionamento, o que se configura como uma prática mais adequada no tratamento da variedade lingüística.

A mesma adequação também e percebida nas sugestões de respostas para os itens "a" e "b" da referida questão em análise:

7. a) A preocupação do gerente com a variante utilizada pelo vendedor revela o seu preconceito lingüístico: julga que tal variante poderia comprometer a imagem da empresa, uma vez que o vendedor não faz us da variante de prestígio.

b) A atitude do presidente revela que o importante para empresa é o resultado que o vendedor apresenta, a quantidade de vendas que faz, e não a sua linguagem. Podemos inferir, portanto, que a variante utilizada por um falante não pode estar associada à avaliação de sua inteligência ou competência profissional, ou seja, não se deve permitir a manifestação do preconceito lingüístico. É importante ressaltar que, na piada, percebe-se que a variante do vendedor é desconsiderada em função dos resultados que apresenta para a empresa ao desempenhar suas funções (ele vende muito).

(pág. 36)

Observe-se que as sugestões de resposta preocupam-se em desmistificar a acepção de que quem usa uma modalidade desprestigiada da língua é ignorante, incapaz de exercer atividades profissionais, etc.

Tomadas em conjunto, a questão e as sugestões de resposta para as mesmas contribuem para uma efetiva prática de linguagem socialmente situada, já que se mostram um tanto reflexivas no que tange a abordagem da variação lingüística, muito embora o texto do LD em questão deixe lacunas quanto à relação entre variedades lingüísticas e a imagem social do falante.

O segundo livro posto em análise foi "Português – Literatura, Gramática, Produção de textos", de Leila Lauar Sarmento e Douglas Tufano. Em seu texto didático-expositivo não há uma referência explícita nem tampouco implícita quanto à atribuição de valor às formas lingüísticas e sua relação com o sujeito-falante. Contudo, no manual do professor, há uma referência relacionada superficialmente ao caráter social da língua:

Se a idéia da variação lingüística ficar clara ao estudante, as chances do desenvolvimento da discriminação lingüística diminuirão bastante, pois o aluno perceberá que não há registro melhor ou pior e que cada um serve a momentos e situações específicos.

(pág. 10)

Como se pode notar, a imagem social do sujeito-falante como um fator determinante ao julgamento de valor às formas lingüísticas não se dá. Temos apenas em esclarecimento de que os registros não são qualificados nem positiva nem negativamente.

Antiteticamente, existe uma questão-vestibular proposta que induz o aluno a refletir sobre a referida imagem do sujeito-falante a partir da modalidade lingüística que esta utiliza:

1. (Unicamp-SP) No diálogo transcrito a seguir, um dos interlocutores é falante de uma variante do português que apresenta uma série de diferenças em relação ao padrão culto. Identifique, na fala desse interlocutor, as marcas formais dessas diferenças e transcreva-as. A seguir, faça uma hipótese sobre quem poderia ser essa pessoa (sua classe social e grau de escolaridade).

Interlocutor 1: Por que o senhor acha que o pessoal não está mais querendo tocar?

Interlocutor 2: É...a rapaziada nova agora não são mais como era quando nós ia, não senhora. Quando nós saía com o Congo, nós levava aquele respeito com o mestre que saía com nós, né? Então nós ficava ali, se fosse tomar arguma bebida só tomava na hora que nós vinhesse embora.

(pág. 181)

Veja que a atividade limita-se a solicitar a identificação das marcas formais da variedade em questão e a construção da imagem do falante, não questionando o julgamento de valor acerca dessa mesma variedade e sua relação direta com o sujeito-falante. Tal fato, considerando os mesmos motivos relacionados para os professores na análise do LD anterior, implicará nas mesma conseqüência anteriormente apontada, qual seja a existência de lacunas quanto à relação entre variedades lingüísticas e a imagem social de seus respectivos falantes.

Com relação à sugestão de resposta no manual do professor, especificadamente na segunda parte da questão, esta nada ou pouco ajuda na compreensão da atribuição de valor aqui pesquisada. Veja:

Esse falante deve pertencer a uma classe social menos favorecida e possui pouca ou nenhuma instrução escolar.

(pág. 29)

Conjuntamente, não há contribuições significativas ao se relacionar a atividade proposta e as respostas sugeridas, uma vez que a questão apenas solicita a identificação de marcas formais da variante e a explicitação da classe social de seu falante.

O terceiro e último analisado foi "Português: Língua e Cultura", de Carlos Alberto Faraco. Seu texto didático-expositivo traz várias referências quanto à atribuição de valor às formas lingüísticas e sua relação diretamente proporcional com o sujeito-falante. Vejamos:

do ponto de vista da qualidade lingüística, todas as variedades se equivalem: lingüisticamente não há uma variedade melhor, mais bonita, mais certa do que a outra. E isso porque todas são igualmente organizadas e atendem às necessidades dos grupos que as usam. (...) algumas vezes acontece que a diferença se transforma em discriminação e as pessoas de fala diferente passam a ser alvo de pesados preconceitos sociais, como aconteceu, por exemplo, com os nordestinos que migraram maciçamente para o centro-sul do país em meados do século XX. (...) as diferentes variedades sociais se equivalem do ponto de vista da qualidade lingüística porque todas são igualmente organizadas (todas têm gramática) e são funcionalmente adequadas para os grupos que as usam [Grifos do autor].

(pág. 107)

Pelos trechos acima, verificamos que a questão da atribuição de valor às formas lingüísticas e sua relação com seus falantes é bastante elucidativa. Basta apenas verificar o trecho que menciona o preconceito com o falar nordestino e, conseqüentemente, com os seus falantes. Também é válido relevar a equivalência qualitativa defendida pelo autor.

Coerentemente, nos objetivos expostos no manual do professor, não há uma referência direta com relação à questão dos valores lingüísticos e sua relação estreita com o sujeito-falante:

os/as alunos/as precisam aprender a perceber, sem preconceito, a linguagem como um conjunto múltiplo e entrecruzado de variedades geográficas, sociais e estilísticas; e a entender essa variabilidade como correlacionada com a vida e a história dos diferentes grupos sociais de falantes.

Só assim desenvolverão uma necessária atitude crítica diante dos pesados preconceitos lingüísticos que embaraçam seriamente nossas relações sociais. Com isso, a escola estará estimulando práticas positivas frente às diferenças e contribuindo para a reconstrução do imaginário nacional sobre nossa realidade lingüística [Grifos nossos].

(pág. 37)

Apesar da "falha", acreditamos que a maneira abrangente como foi discutida a variação lingüística no texto didático-expositivo supre uma mera "lacuna" em um objetivo no manual do professor, não prejudicando acentuadamente o trabalho do docente em sala de aula.

Com relação à compatibilidade com a questão proposta, podemos afirmar que houve uma relação equilibrada entre proposta/objetivo, texto didático-expositivo e atividades. Observemos a questão do ENEM, retirada do livro didático em análise:

Aí, Galera

Jogadores de futebol podem ser vítimas de estereotipação. Por exemplo, você pode imaginar um jogador de futebol dizendo "estereotipação"? E, no entanto, por que não?

- Aí, campeão. Uma palavrinha pra galera.

- Minha saudação aos aficionados do clube e aos demais esportistas, aqui presentes ou no recesso dos seus lares.

- Como é?

- Aí, galera.

- Quais são as instruções do técnico?

- Nosso treinador vaticinou que, com um trabalho de contenção coordenada, com energia otimizada, na zona de preparação, aumentam as probabilidades de, recuperado o esférico, concatenarmos um contragolpe agudo com parcimônia de meios e extrema objetividade, valendo-nos da desestruturação momentânea do sistema oposto, surpreendido pela reversão inesperada do fluxo da ação.

- Ahh?

- É pra dividir no meio e ir pra cima pra pegá eles sem calça.

- Certo. Você quer dizer mais alguma coisa?

- Posso dirigir uma mensagem de caráter sentimental, algo banal, talvez mesmo previsível e piegas, a uma pessoa à qual sou ligado por razões, inclusive, genéticas?

- Pode.

- Uma saudação para a minha progenitora.

- Como é?

- Alô, mamãe!

- Estou vendo que você é um, um...

- Um jogador que confunde o entrevistador, pois não corresponde à expectativa de que o atleta seja um ser algo primitivo com dificuldade de expressão e assim sabota a estereotipação?

- Estereoquê?

- Um chato?

- Isso.

(Luís Fernando Veríssimo – Correio Braziliense, 13/05/1998)

1.(ENEM) O texto retrata duas situações relacionadas que fogem à expectativa do público:

a)A saudação do jogador aos fãs do clube, no início da entrevista, e a saudação final dirigida à sua mãe.

b)A linguagem muito formal do jogador, inadequada á situação da entrevista, e um jogador que fala, com desenvoltura, de modo muito rebuscado.

c)O uso da expressão "galera", por parte do entrevistador, e da expressão "progenitora", por parte do jogador.

d)O desconhecimento, por parte do entrevistador, da palavra "estereotipação", e a fala do jogador "É pra dividir no meio e ir pra cima pra pegá eles sem calça".

e)O fato de os jogadores de futebol de futebol serem vítimas de estereotipação, e o jogador entrevistado não corresponder ao estereótipo.

(pág. 112)

Veja-se que a questão aborda a imagem estereotipada de um indivíduo – um jogador de futebol – e a relação desta imagem com sua forma de expressão, julgando ambos pejorativamente. Porém, o que ocorre é, exatamente, o inverso do esperado ("Um jogador que connfunde o entrevistador...estereotipação"). Isto faz o aluno refletir acerca da atribuição de valor concebido às modalidades lingüísticas e sua relação com os falantes das mesmas.

6. Considerações finais

Primeiramente, tratando da pluralidade lingüística presente em nossa comunidade de fala – os falantes do Português-Brasileiro –, vimos que tal diversidade, além de bastante presente em nosso meio, é tratada e classificada de forma hierarquicamente preconceituosa, considerando, nesse tratamento, não a forma lingüística em si, mas a procedência sócio-geográfica do falante. Nesse contexto, a escola, amparada por documentos e/ou determinações institucionais da natureza dos PCN, tem o papel de extinguir o preconceito com relação à diversidade lingüística, considerando as formas de expressão do aluno no momento em que se insere no âmbito escolar, mostrando as diferentes formas de uso das mesmas; enfim, dando um tratamento mais democrático e igualitário ao fenômeno da variação lingüística.

Em um segundo momento, vimos também que diversos fatores são condicionantes da variação lingüística – região, classe social, sexo, função, idade, profissão, contexto de fala, etc. Dentre estes, há um que muito discrimina as formas lingüísticas dos falantes e, por conseqüência, eles próprios: sua origem sociocultural.

Verificamos também que, de três livros analisados, dois deles são bem avaliados pelo PNLEM/2005 no tocante à apreciação feita com relação às variedades lingüísticas. Contudo, um aborda superficial e sinteticamente o referido tema.

Finalmente, realizamos uma análise qualitativa dos livros didáticos do Ensino Médio, procurando verificar se existia ou não uma compatibilidade entre os textos didático-expositivos, as propostas/os objetivos contidos no manual do professor e as atividades propostas referentes aos capítulos selecionados em cada um dos livros.

7. Referências bibliográficas

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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica: Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: SEC/SEMTEC, 1999. pp. 137-145.

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CALVET, Louis-Jean. Sociolingüística: uma introdução crítica. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2003.

CAMACHO, Roberto Gomes. Sociolingüística (Parte I). In.: MUSSALIM, Fernanda, BENTES, Ana Christina. Introdução àLingüística: domínios e fronteiras. Vol.1.São Paulo: Cortez, 2001.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.