O Sexto Mês



Ainda hoje quando penso nisso, sinto o coração apertar como se de fato isso fosse uma doença minha. A vi no quarto, pela madrugada, desperta de insônia. Andava em círculos e ali já tinha sido meia maratona. "Envenenada", pensava, e até achava poético. Ela não sabia, mas exatamente naquela noite completava-se 6 meses desde o sussurro em seu ouvido pedindo com voz de anjos num corpo pecador: "dorme comigo", ele pediu em tom de súplica, e naquele momento certeiro resolveu libertar o coração que há tempos prendera a um silício quase religioso.

Decidiu amá-lo em silêncio.

Ela agora está do lado de fora do restaurante e já pode ver lá dentro, de costas, aquele homem de 6 meses atrás. Era preciso coragem para dizer tudo o que ela gostaria e precisava. Não mais era questão de sentimento. Agora os jogos deveriam cessar, e quem sabe teria até a coragem de libertar as amarras do silêncio que enfrentava ao longo desses tempos.

Revirou a bolsa e tirou de lá um cigarro. Olhou no relógio e viu que já estava dez minutos atrasada. Mais cinco não matam ninguém. Acendeu o fósforo, queimou a ponta do assassino mudo e tragou com uma delicada força. Aquilo era ela, a eterna viga em que se apoiava o insustentável peso de uma pluma, ou a tonelada de um fiapo de pensamento que ainda não sabia se era de esperança ou melancolia.

Seu cabelo estava curto agora, e ela viu que não usava mais barba. Ainda tinha os ombros curvados, e tomava um copo de uísque já na metade. Ele estava lá há bem mais tempo que supunha. Tinha algo a dizer, também. Ela sabia que tinha, e mais uma vez afrouxou o silício de seu coração e passou a acreditar, ainda um pouco desconfiada, que tudo daria certo. Sabia que o veneno que corria em suas veias não havia sido planejado, e que pela grandiosidade do sentimento que tinham um pelo outro, não passaria isso de um grão de areia no meio do caminho. Ficariam juntos, superariam juntos, e no final morreriam juntos do mesmo mal. Sentiu a boca quente no filtro do cigarro. Ele odeia esse gosto. Ela não se importa.

Entrou. O reencontro é sempre dramático. Ah! Ainda me corta o coração lembrar-me disso. Quanta felicidade, estava ali de braços entrelaçados no pescoço daquele que finalmente havia transformado a membrana plasmática de seu coração em um tecido permeável. Amor, repetia ela mentalmente, amor amor amor. Pela primeira vez, desde que leu o resultado no papel timbrado do laboratório, pensou em algo que não a faria morrer, e se o fizesse que fosse de felicidade.

- Pequena... você veio.

Sorriu. Lembrou-se da manhã em que ela, desesperada, trocava-se e às pressas para não ser vista pelo restante das pessoas do grupo, dormindo com aquele completo desconhecido. Ele pulou em cima dela e a jogou na cama de novo, cantarolando "do nosso amor a gente é quem sabe, pequena!".

- Estou aqui, sim. Diga pra mim, como está...
- Pensando muito em tudo. E você?
- Desisti de pensar, eu acho. Essa tal filosofia de boteco ainda me faz querer cortar a jugular!
- Ha ha, pensa assim não, pequena. Tem ainda muita vida pela frente.

"Você que pensa", quis responder, mas só conseguiu engolir a seco a realidade que estava ali pronta a contar.

- Pequena, eu preciso te contar uma coisa que aconteceu comigo. Espero que você entenda.

O que? Será que ele já saberia de tudo, já tinha visto o positivo em seu resultado também, e agora tentava pedir desculpas a ela?

- Sim... eu também preciso. Mas você sabe que eu quando começo a falar não paro mais, então pode começar.
- Haha, é, ainda bem que você é consciente. Bom, não sei o quanto isso vai ser difícil pra você, mas espero que entenda numa boa. Somos pessoas adultas, então não tem como encarar isso de uma forma que não seja racional.
- Falar de amor de forma racional é como tentar explicar a uma criança que no futuro ela não será tão feliz quanto agora...
- Seu amor não caberia em todos os corações do mundo, enquanto o meu eu defino com meia dúzia de versos soltos.
- Já disse que ainda me mata essa tal filosofia de boteco.
- Não se mate hoje, a vida te espera com um pirulito de caramelo.
- Para de me enrolar, seu pentelho!
- É que eu tenho medo de te machucar.
- Não gosto quando sente pena de mim. Inclusive, lembro bem você dizendo naquela noite que não me machucaria, e realmente não doeu.
- Na hora nunca dói, o problema é depois que a hora passa.
- Então diz sem pensar que uma bala dói menos que uma facada.

Já ali pensou que todas as suas ilusões acabaram de ter um ponto final, já ali sabia que era o fim. O fim do que não começou de fato, mas as pessoas dão muito valor às realizações temporárias e lineares. O tempo poderia ser talvez contado pelo significado dos segundos e não pela quantidade numérica que o relógio pinta os ponteiros. Ela muito bem soube que o fim é tão eterno quanto o começo, mas a felicidade não passava da necessidade de repetição. Mas como ser feliz com o início que é único, quando a repetição só permite o fim que se propaga lentamente, como vento passando frio pela janela?

- Serei pai.

É a felicidade a nossa necessidade de repetições, e só pode começar o que termina, só pode terminar o que começa, e nos mantemos nesse círculo vicioso de sonhos e frustrações até o dia que pararem de fabricar cigarros, lexotans, álcool e prozac.

- Como assim?
- Eu devia ter te contado antes. Mas pequena, eu não pude evitar. Ela mudou sim a minha vida, ela deu a mim o amor que eu nunca recebi antes e agora dará a mim o filho que eu sempre sonhei. Foi tudo muito rápido, nossa noite eterna há 6 meses e alguns dias depois, quando você foi embora, ela veio sozinha e nunca mais voltou. Não quero dizer que eu não te amei pelos segundos cronometrados de nossa noite infinita, mas seu coração nunca poderia ser inteiro meu, pois nele cabe todo o amor do mundo. Quero eternamente tua amizade, mas por favor, não se apaixone por mim. Eu não saberia conviver com a dor de te machucar, pequena.
- Entendo.
- Só isso? Eu posso acreditar, então, que você vai ficar bem?
- Eu sempre ficarei bem.
- Me conta agora, o que você tinha a dizer?
- Daqui uma hora sai meu avião. Vou para a Alemanha.
- Morar?
- Sim. Quando chegar lá te mando uma carta com meu novo endereço e telefone. Me manda uma foto do guri quando ele tiver nascido, aposto que terá esse olho dissimulado que nem o pai!
- Ah, ele vai ter que puxar a beleza da mãe!
- A beleza tem o formato da alegria que enxergamos.

Ela abre a bolsa e deixa na mesa o valor de uma água com gás e um maço de cigarros novo.

- Estou atrasada para o meu vôo, preciso correr.
- Achei que fôssemos conversar mais!
- Não, acho que tudo o que deveria ser dito está definitivamente dito.

Abraçou-lhe com pressa, tentando conter umas lágrimas insistentes. Sabia que acabara de cometer três assassinatos, mas seu coração partido estava começando a gostar dessa chacina.

Acendeu mais um cigarro e enquanto isso, pensou por um minuto que o resultado positivo não era o problema. Não seria a doença que os mataria, e sim a indiferença, o rancor e a frustração.

Chamou um táxi e voltou para São Paulo. A vida ainda a esperava com um pirulito de caramelo.
Autor: Vanessa Del Negri


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