Reflexões acerca da prisão cautelar na modalidade preventiva.



A Carta da Republica de 1988, consagra a escolha de um estado de direito, sendo que, o conceito material traz como alicerce a garantia dos direitos individuais naturais, ou seja, a fonte de toda ordem jurídica, assim o valor supremo desta sociedade é a liberdade, sendo o cárcere a exceção.

A prisão cautelar[1], medida odiosa tem como desiderato resguardar o processo de conhecimento, pois, se não for adotada, privando a individuo de sua liberdade, mesmo sem sentença definitiva, quando esta for dada, já não será possível aplicação da lei penal.

Todavia, para que esta possa ser decretada é necessário que estejam presentes os pressupostos capazes de tornar legitima tal medida, pois como bem se sabe, a regra é a liberdade, a prisão é exceção.

Assim, só é cabível a decretação da preventiva em crimes dolosos, punidos com reclusão. Quanto aos punidos com detenção, em que pese estarem previstos no inciso II, do art. 313, do CPP, Guilherme de Souza Nucci[2] esclarece que sendo eles considerados menos graves do que os apenados com reclusão, indica a lei que não cabe é admissível a decretação da prisão preventiva, nestes casos, até porque as penas a eles impostas serão brandas, passiveis de substituição por penas alternativas, tornando eventual segregação cautelar uma medida excessiva.

É bem verdade que, nos termos, do inciso II do art. 313 do CPP, a fim de que seja admitida a decretação da prisão preventiva, este "leva em conta a personalidade do agente[3]" reunindo à prática de crime doloso punido com detenção, a condição de vadio do indiciado ou o fato de este não fornecer dados que dirimam dúvidas sobre sua verdadeira identidade.

Por sua vez, não se pode esquecer que, diante do princípio constitucional da não culpabilidade (presunção de inocência -"Art. 5°: LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;"), bem como do disposto no artigo 8° do Pacto de San José da Costa Rica ("Artigo 8°, 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa."), a prisão não é mais considerada um efeito automático da sentença condenatória ou da pronúncia[4].

A demais a moderna posição do direito processual penal traz como pressuposto para a decretação e manutenção da prisão cautelar o periculum libertatis, ou seja, é necessário que haja um perigo na liberdade do Imputado a justificar sua prisão e não perigo na demora da prestação jurisdicional. Neste caso, deve restar provado que há perigo social se o Imputado permanecer em liberdade, bem como para o curso do processo, e, ainda, que há provas do cometimento do delito.

Demais disso, será necessária a presença do fumus comissi delicti, traduzido na fumaça do cometimento de delito e não do bom direito, pois bom direito pode ser para condenar ou absolver o Imputado, ou ainda para declarar extinta a punibilidade. A fumaça é da prática do crime e não do bom direito. Direito por si só, já é bom, incluindo aqui o conceito de direito justo.

Em outras palavras, para que a prisão cautelar possa ser aplicada, o magistrado deverá verificar, concretamente, a ocorrência do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, ou seja, se a prova indica ter o Imputado cometido o delito doloso punido com reclusão, cuja materialidade deve restar comprovada, bem como se a liberdade realmente representa ameaça ao tranqüilo desenvolvimento e julgamento do caso penal, que lhe é movido, ou à fatura e eventual execução penal.

Como já dissemos a prisão cautelar é medida excepcional que, exatamente por isso, demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados ou processados (CF, art.93, X e art. 5º, XLVI), demonstrando de forma concreta a necessidade da cautelar pessoal.

Nesse sentido, observesse o trecho da ementa do HC no 74.666, da relatoria do Ministro Celso de Mello:

[...] A privação cautelar da liberdade individual – por revestir-se de caráter excepcional – somente deve ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em face do sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciam, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. Precedentes. [...] (DJ de 11.10.2002)

Da mesma forma, vale ressaltar os argumentos apresentados pelo Min. Gilmar Mendes, nos autos da Medida Cautelar em HC 95.009-4/SP, onde se registrou que o provimento cautelar vincula-se à demonstração prévia de seus pressupostos, quais sejam, a plausibilidade do direito subjetivo invocado e a urgência da pretensão cautelar.

E, continua, abre-se, portanto, a esta Corte, a via para o deferimento da medida liminar reparadora do estado de constrangimento ilegal causado pelas decisões das instâncias inferiores, ainda que essas tenham sido proferidas monocraticamente (não conhecimento da causa ou indeferimento de liminar, casos em que se possibilita o afastamento da Súmula nº 691 do STF). Grifei

No que toca à conveniência da instrução criminal, o supremo Tribunal Federal, por exemplo, decidiu no sentido de não poder o decreto de prisão prevenida se basear em meras suposições, cumprindo apontar fatos concretos, vinculados à atuação do acusado, que comprovem atitudes contrárias aos interesses da instrução.

Para Luiz Flavio Gomes[5] a específica adoção de uma medida cautelar, sobretudo pessoal, devem primordialmente ser analisados em cada caso concreto: (a) as conseqüências jurídicas esperadas, isto é, a gravidade da pena ou medida esperada, a natureza da ação penal, possíveis causas de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade etc.; (b) a importância da causa (bedeutsam der Sache), é dizer, a gravidade dos fatos, o interesse público no êxito do processo e o perigo de reiteração de fatos análogos; (c) o grau da imputação (de certeza sobre o resultado) e, por conseguinte, (d) o êxito previsível da medida.

De outro lado, não se pode esquecer que o direito de liberdade é inarredável, e nas palavras de Luiz Flavio Gomes[6], configura um dos mais sagrados direitos fundamentais. Só pode ser atingido, assim, em casos extremos, de absoluta necessidade, é dizer, quando há sério e fundamentado risco para a sociedade. A prisão preventiva, justamente porque afeta esse direito fundamental, só tem pertinência em casos absolutamente anormais, excepcionais, ressaltando-se os crimes violentos.

E, continua o autor, assim, o magistrado terá de ponderar particularmente os seguintes interesses do cidadão: (a) a preservação do ius libertatis; (b) os inafastáveis prejuízos que a medida proporciona (para a saúde, para a vida familiar, profissional e social); (c) o respeito aos seus direitos fundamentais (separação prisional, processo rápido e seguro, além de justo – "fair trial" – etc.).

Isto porque são seríssimos os prejuízos que toda prisão (primordialmente a ante tempus) lhe causa: risco de aids (quase um terço da população carcerária é portadora do vírus respectivo), graves prejuízos físicos e psíquicos, risco de rompimento familiar, de estrangulamento profissional, de rejeição social. Não se pode imaginar, ademais, que no nosso país haja presídios decentes, ainda quando "especiais". E os processos são, em geral, morosos[7].

Por isso para a decretação da prisão preventiva o magistrado terá que demonstrar de forma concreta que estão presentes os requisitos (garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria) do art. 312, do Código de Processo Penal.

De antemão cabe adiantar que somente tutelam o processo de conhecimento os requisitos que versam sobre a conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, pois os demais como será demonstrado são requisitos indeterminados, ou seja, vagos que por isso mesmo ofendem o principio da taxatividade.

Garantia da ordem pública

Helena Klautau Moreira[8] citando Fauzi Hassan Choukr assevera que são utilizados como fundamentos da prisão preventiva para garantia da ordem pública: a "confiança" na justiça; a mera repetição da fórmula legal; a lei penal; a periculosidade do agente; o clamor público e a mídia; e a segurança do acusado. Destacamos que todos os conceitos formulados nada têm a ver com a finalidade cautelar da prisão preventiva.

Em verdade a expressão "garantia da ordem pública" é genérica, prestando-se a diversas interpretações, razão pela qual permite ao Estado decretar a prisão preventiva nos mais variados casos. O que por sua vez, afronta em muito o princípio da legalidade estrita, isto porque não tem espaço na lei penal termos vagos ou abetos ante o principio da taxatividade da lei penal.

Com efeito, o rol do artigo 312 do Código de Processo Penal Brasileiro, que como norma processual penal deveria ser taxativo, acaba comportando inúmeros significados não contemplados na lei, permitindo prisões arbitrárias que desrespeitam os direitos e as garantias fundamentais.


Mais uma vez Helena Klautau Moreira[9] aduz que após um estudo do conceito de garantia da ordem pública, em que comparou doutrina e jurisprudência, identificou "um cenário marcado pelo profundo descompasso entre o Código de Processo Penal e a CR e a CADH", assim arrimada na lição de Fauzi Hassan Choukr, acaba concluindo que:

Nem mesmo o Supremo Tribunal Federal mostrou-se capaz de fornecer linhas de atuação, deixando ao sabor arbitrário do julgador (vez que inexistem parâmetros) no caso concreto entender o que é ou não ordem pública. A ausência de parâmetro faz com que aflore o uso da fórmula em seu aspecto puramente retórico, nela podendo ser inserida ou retirada a hipótese desejada sem que trauma formal algum seja sentido.

Ademais boa parte da jurisprudência com certa freqüência, utiliza-se da falácia da ordem pública para justificar a prisão preventiva, sendo que não rara as vezes tais decisões tem sua justificativa assentada na periculosidade do réu , o qual, em liberdade, poderá voltar a delinqüir, perturbando a paz e a tranqüilidade social.

O que é inadmissível, pois afronta duplamente a Carta da República, porque, além de se presumir que o imputado realmente cometeu um delito, presume-se também que ele, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidará esforços para consumar o delito tentado.

Garantia da ordem econômica

Este requisito garantia da ordem econômica (de conteúdo indeterminado) deveria ser suprimido da legislação processual penal, exigindo-se a existência de fundadas (concretas) razões de que o indiciado ou Imputado venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira considerada grave, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa[10].

Segundo a lição de Eros Roberto Grau, a ordem econômica, prevista no Título VII da Constituição de 1988, tem uma função mais topográfica (indicar onde estão os dispositivos pertinentes à matéria) que material (definir o que vem a ser "ordem econômica").

Da mesma forma torna-se extremamente difícil entender quais seriam os limites que poderiam ensejar a decretação da prisão preventiva nos termos do que singelamente dispõe o art. 312 do Código Processual Penal, no que tange a ordem econômica.

Por sua vez, isso acarreta um problema de imensas proporções se considerarmos a sistemática constitucional, vigente, ou seja, sendo a liberdade é a regra na Carta da República de 1988, à liberdade só pode ser admitida em casos excepcionais, quando não houverem outras alternativas para a manutenção da vida social.

Neste contexto, o art. 5º, LIV, da Carta da República, assevera que ninguém será privado de sua liberdade sem o devido processo legal. Com efeito, devemos entender que a regra é que alguém somente possa sofrer restrições em sua liberdade havendo contra si um título executivo penal transitado em julgado.

Ou seja, considerando que a prisão preventiva é uma prisão cautelar e exceção a esta regra, ou restrição a este princípio, só pode ser admitida em hipóteses excepcionalíssimas, tendo em vista que irá restringir a liberdade de uma pessoa sem que para tanto haja um juízo de certeza, juízo este que só virá quando do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Resumindo a justificativa da prisão preventiva com base na garantia da ordem econômica não há como subsistir, exceto se fundamentada em fundadas (concretas) razões de que o indiciado ou Imputado venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira considerada grave, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa.

Por conveniência da instrução criminal

Este sim é um requisito que visa resguardar a instrução criminal, ou seja, o processo penal de conhecimento, todavia, não é absoluta e sempre necessitará de fatos concretos a ensejar a decretação da preventiva, que deverá ser fundamentada (art. 93, X, da CF/88), sob pena de ser considerada ilegal. Nesse sentido existe inúmeras decisões do STF "tem afirmado, reiteradamente, que é ilegal o decreto de prisão preventiva que, a título de resguardo da instrução criminal, não indica fatos capazes de justificar temor desse risco". Concluiu, assim, não existir motivo para a prisão preventiva.

O mesmo Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que não basta a gravidade do crime e o clamor público por este gerado para justificar a manutenção da prisão cautelar.

Desta forma, os dados a motivarem à decretação da prisão preventiva tendo como justificativa a conveniência da instrução criminal, devem ser dados concretos, e, que de fato demonstrem que o Imputado está tomando ações que visam obstruir a instrução, tais como: ameaçando testemunhas[11], destruindo provas etc.

Garantia da aplicação da lei penal

Veja que o simples fato da acusação narrar que o Imputado esta prestes a fugir, sem, entretanto indicar os fatos concretos que apontam para isto, ou seja, sem dados reais não se pode utilizar como argumento a aplicação da lei penal, impondo ao magistrado o indeferimento da preventiva.

Assim, para a decretação da prisão preventiva tendo como supedâneo assegurar a aplicação da lei penal, esta só se justifica como bem acentuou o eminente Min. Cezar Peluso[12] do Supremo Tribunal Federal, se presentes dados concretos da causa, ou seja, "fuga do réu e garantia de aplicação da lei penal, sobretudo quando invocadas em decisão genérica, sem alusão a dados específicos da causa, não constituem causas legais para decreto de prisão preventiva"

A prisão cautelar não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia.

Da mesma forma, a mera possibilidade de evasão do distrito da culpa - seja para evitar a configuração do estado de flagrância, seja, ainda, para questionar a legalidade e/ou a validade da própria decisão de custódia cautelar - não basta, só por si, para justificar a decretação ou a manutenção da medida excepcional de privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do Imputado[13].

Por fim registre-se que é da confluência da ponderação de todos os mencionados interesses que exsurgirá a medida mais adequada em cada situação concreta. Assim, competirá ao juiz natural, não só fazer o devido sopesamento, como também e sobretudo fundamentar (justificar art. 93, X, da CF) a necessidade concreta da medida odiosa adotada, apontando fatos reais (não imaginários ou supostos) reveladores dessa imprescindibilidade. Do contrário, afigurar-se-á patente situação de constrangimento ilegal combatida nos termos das normas em vigor.




Autor: Edemilson Mendes da Silva


Artigos Relacionados


PrisÃo Preventiva: Possibilidades Da DecretaÇÃo Da PrisÃo Cautelar

O Descumprimento Da Decisão Atinente à Concessão De Medidas Protetivas Como Motivação Para A Decretação Da Prisão Preventiva

Prisão Preventiva

A Posição De Parte No Processo Penal - Parte (no Sentido) Formal E Parte (no Sentido) Material - Qual é A Posição Do Ministério Público?

Autonomia Ou Não Da Prisão Em Flagrante : Pode Ela, Por Si Só, Ser Título A Manter Privação Durante O Processo ?

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

A Prisão Preventiva E A Presunção De Inocência