A pergunta



Ela me fez perguntas difíceis, muito mais difíceis do que qualquer concurso para ser alguém nada vida poderia prever ou que a didática dos mortos poderia me fazer. Antes dessa, veio-me somente “o que eu faria se estivesse cara-a-cara com deus?”. É um tanto complicado, há de se convir, perguntar algo para esta entidade que todos criaram para ser suas benga(las) em tempos onde a mediocridade humana ganha tamanhas proporções. Mas enfim, lhe diria para me deixar em paz, com a minha paz, parar com essa megalomania maluca e, por fim, lhe daria um soco na boca do estômago para que vomitasse tudo aquilo que fez a humanidade engolir ao longo dos séculos.
Mas ela me fez uma outra pergunta, algo que martelou (martela) na minha mente até agora e nem as mais generosas doses de uísque com rivotril poderão responder. Atitudes desesperadas? Talvez. Talvez ainda exista um traço de esperança nesse corpo banhado pelo sangue denso, pelas revoluções perdidas e pelas tentativas de remediar o irremediável.

- Em que você acredita?

Pensei em responder da maneira irônica, que acredito no semáforo ou no imposto predial, como dizia o Marceleza no adventista. Mas em que eu acredito? Ontem vi um clássico do Zé do Caixão, o José Mojica, do qual não assistia nada desde os meus 12 ou 13 anos nos famosos cines trashes que ocorriam em plenas tardes ociosas de dias que arrastavam-se como lesmas que logo se tornariam responsabilidades. Eram vegetais e legumes assassinos, cérebros super-dimensionados assassinos, palhaços, carros ou máquinas, todos assassinos num mundo onde ninguém é inocente. O filme que vi e paguei a bagatela de 12 pilas foi “Esta noite encarnarei no teu cadáver”, de 1967. Não tenho a pretensão de fazer uma resenha, apenas tentar responder aquela complexa pergunta que essa menina de voz mansa e doce fez-me com a naturalidade de quem pede um cigarro.

- Eu não acredito, tento me enganar. Sou um ser contraditório, um homem que vive no limite do existencialismo com o niilismo total.

Mas não pode ser só isso. Alguma esperança devo encontrar com os meus botões. Energia talvez mova o universo. Uma energia que ninguém sabe qual é, que alguns insistem em chamar de seu deus, esses malditos fracos que precisam apoiar-se em mentiras para não ter que rastejar pelo chão sujo da decadência humana. Do alto d minha ética, eu prefiro ficar ali, abaixo, vendo tudo de um ângulo privilegiado, assistindo os nascimentos sob as pernas gordas, magras, saradas, das quais saímos e procuramos por toda a vida tornar a entrar. Prefiro, mesmo sujo, enxergar.
E quando consigo derrubar alguém de sua bengala existencial, que felicidade! Dionísio encarna num espírito mórbido! Diego, o rebelde, o contraditório, o radical, o agnóstico, vence uma batalha, não que vencer garanta algum lugar no pódio. Viver se enganando pode parecer a maneira mais fácil. Fiquei pensando se essa menina fizesse a pergunta para alguém qualquer, alguém que tenha como único objetivo de vida ser rico, saber dançar e poder viajar para praia no veraneio junto de seus filhos burros, reprogramando e repassando sua imbecilidade congênita ao natural. A resposta sairia automática, quase previsível. “Ah, eu acredito em Deus”; “Bem, eu acredito no Alan Kardec”; “Acredito no Lulla”; “No socialismo; “No liberalismo”; “Nos conselhos sábios do mago Pauno Coelho”; “Nas crônicas pequeno-burguesas engajadas de Martha Merdeiros”; “Nas histórias do meu avô”; “No professor da faculdade”... seriam inúmeras, fáceis... Mas ela peguntou para mim, um existencialista chato e rabujento, um niilista racional e romântico ao mesmo tempo. Ela perguntou para mim.
Quem sabe não acredito no amor? No instinto humano repassado e rapaginado pela liberdade através dos tempos, livre das hipocrisias e das conveniências? Acredito sim, na verdade. O próximo passo é sabê-la. Quem diz que sabe, não sabe. Como alguém usando 2% do cérebro (em alguns casos nem se usa, pois existem as bundas para substituir e pregas para perder) pode ter a pretensão de explicar tudo, seja pela maldita ciência corrompida do capitalismo ou pelas famigeradas religiões, que transformam pequenos templos em grandes negócios, verdadeiros bancos de almas l(e)avadas pela ordem maldita da desesperança?
Não existe nada mais difícil do que encontrar um sentido honesto para a vida. E é agora que entra o ensinamento do cineasta trash, desrespeitosamente respeitado no Brasil como um mero maluco que não corta as unhas (cortou recentemente por causa da vigilância sanitária, isso mesmo). O sangue, se não existe deus, o sangue é a imortalidade. Foi assim que, no filme todo de pouco mais de uma hora e meia, ele procurou sua verdade. Queria um filho, um filho forte, como ele, como um Nietzsche que viu, fisicamente doente, uma humanidade pútrida levantar a continuar girando, a grande morta-viva.
A pergunta fatídica esta sendo mais uma vez lavada por uísque barato, empurrada com a barriga para, quem sabe, num dia qualquer, assim como me foi feito, sem qualquer pretensão ou previsão, seja plenamente respondida, através de um tímido “te amo” ou de um risonho e fascinante “papai”.


Autor: Diego Rosinha


Artigos Relacionados


O Que é “levar A Vida”?

Da Sensação Do Místico

Narciso & Seu Auto-retrato - Afinal...quem Sou Eu ?!

Resumindo A Vida

Procura-se Um Marido

Qual é Mesmo A Abreviatura De “mestre”?

O Navio Fantasma