HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: Seu funcionamento e suas possibilidades



Primordial e funcionalmente social, o ato de comunicar é intrinsecamente ligado à linguagem verbal. É verdade que ela é o principal meio de que dispõe o ser humanopara a comuniação, mas não se pode esquecer que esta "não é a única linguagem existente", como bem enfatiza Fiorin (2002). É, no entanto, através dela que o homem pode desenvolver inúmeras outras formas de se expressar no mundo onde vive. Acerca das histórias em quadrinhos (HQ), deve-se ressaltar que elas, pela voz de Cirne (1975), "numa de suas vertentes mais significativas (a vertente lingüística), produzem-se dentro dos parâmetros literários, se bem que os redimensionando através de uma temperatura gráfica que, se não invalida de todo o projeto da literariedade, coloca em situação problemática o estatuto criativo da literatura".

Esse comentário faz pensar sobre o que realmente são as HQ. Os nativos de língua inglesa as chamam de comic (ou comic strips); os franceses denominam bandes-dessineés; para os espanhóis, elas são tebeo; a partir dos balões, os italianos decidiram nomeá-las como fumetti; os hispano-americanos se referem a elas por historietas; e, por solo brasileiro, já foram chamadas de gibis, revistinhas, quadrinhos, historinhas, histórias em quadrinhos ou, simplesmente, HQ. Eis, aqui, um exemplo:


Folha de S. Paulo, 2006.

Assim como há vários nomes, há várias definições; portanto, para evitar 'cabecices', que se prossiga apenas analisando as HQ.

Obviamente, a HQ tem a sua razão de existir no social. Desde que o homem começou a evoluir, o mundo foi se modernizando. Os sistemas econômicos se organizaram, até, à certa altura, o capital vingar. Nesse sentido, afirma Moya (1972): "(…) Enfim, as coordenadas características de estabelecimento da sociedade de consumo criaram as condições para o aparecimento e o sucesso do jornal, cinema e histórias em quadrinhos". Há quem diga que o cinema foi (mesmo hoje, talvez, sucumbido às exigências do mercado) instrumento ativo da sociedade a fim de contestar estruturas arcaicas e não se equivocarão. Não obstante, Cirne (1972) salienta ocorrer o mesmo com os quadrinhos – "a cultura popular situada no próprio redemoinho da cultura elétrica do nosso tempo" – e ainda diz que "as HQ ampliaram as perspectivas de invenção & consumo & radicalidade". Mas são a literatura e o cinema as formas de arte mais próximas das HQ, havendo, provavelmente devido a consistência da relação quadrinhos/cinema, muitas técnicas da sétima arte na nona, sem contar quando aliadas, no fazer literário.

Ao citar uma obra de Robbe-Grillet e analisando o papel da "câmera", via a tipologia de Norman Friedman, Lígia Chiappini Leite (1987) observa que "o livro, assim, uma espécie de paródia do romance policial, em que não há propriamente crime a procurar, mas é a própria narrativa que sofre o inquérito. (…) Por isso mesmo, são vários os mesmo ângulos a partir dos quais o crime é narrado. Subverte-se a ótica convencional da narrativa. Abre-se o romance para fora do romance, explorando seus limites e o seu parentesco com as artes visuais". Atente-se para o inverso que ocorre na tentativa de reproduzir a dinâmica da estrutura entre as figuras (quadros): daí, nascem a ação e o movimento condutor da HQ:



Folha de São Paulo, Folha Ilustrada, 2006.

Deve se ressaltar a independência dos fatos ocorridos no primeiro quadrinho, no segundo quadrinho. O que houve após o fim da primeira cena e o início da segunda pode ser omitido, pois a própria imagem em consonância com o texto já se explica; isso quer dizer que as omissões das ações e pensamentos das personagens até o reencontro de ambas são as causas do movimento impelido às imagens, ao contrário do cinema, onde a linearidade é constante, alternada apenas nas mudanças cronológico-espaciais. Proveniente desta diferença, a necessidade de ter todos os quadros ao alcance dos olhos nos quadrinhos, enquanto – na película – basta que se saiba o fato sucedido na cena anterior. Todavia, é interessante perceber que, os filetes do cinema não deixam de ser HQ, em que cada fotografia é um quadro (still) e os balões (diálogos) são o roteiro e a fala dos atores. Maia (2005) acresce que "a ação de um quadro de HQ não corresponde àquela do plano no cinema [em que] cada imagem apaga a precedente. Nas HQ, cria-se um movimento de vai e vem do leitor. Vemos um dos quadros e o conjunto". E, novamente, acentua-se o engendrar dos três estilos quando:

  • As técnicas da HQ auxiliam a literatura e o cinema.
  • As técnicas da literatura auxiliam o cinema e a HQ.
  • As técnicas do cinema auxiliam a HQ e a literatura.
  • As técnicas das três áreas auxiliam a literatura, o cinema e a HQ.

É válido observar a constituição de uma página de quadrinho ocidental e a de um mangá, típica HQ oriental, a fim de ver a seqüência das ações e depreender melhor o papel da câmera nos quadrinhos. Os mangas muitas vezes não obedecem às delimitações do quadro e os cortes panorâmicos lhes permitem uma melhor acomodação da imagem, tanto na horizontal como na vertical, independente do espaço a se ocupar. Compare a imagem do autor Masami Kurumada, onde a câmera é muito mais atuante, com a página de Do Contra, em sistema 2D (dois planos dimensionais): à frente, a imagem dos personagens em cena; atrás, um cenário meramente ilustrativo, quase sempre para preencher o espaço.

Mônica, Globo, nov/94, p.54. Cavaleiros do Zodíaco. Conrad, 2003, nº32, p.5.

A palavra e a imagem são como a rainha no xadrez, que se movimenta da forma mais livre no jogo, dentre todas as peças, e adquire status de "super", nas 64 casas; todos se subordinam a ela, que apenas deve defender o rei. Nessa perspectiva, à palavra ligam-se o roteiro, o texto, o contexto, o intertexto, a extensão e outros, e à imagem, o enquadramento, a diagramação, as cores, a disposição dos ícones e símbolos… E palavra e imagem só se encontram sujeitas ao seu rei: a HQ. A palavra sempre foi fator de fascínio e encanto para o ser humano que, ao se conscientizar de seus atos, direitos e deveres, sob leis de sua criação (ou das divindades), concedeu a ela força incalculável. E, no senso comum, quando escrita, configura-se no estágio-mor de absoluta verdade. Se alguém contesta, logo lhe dizem: "está escrito". A literatura é o maior expoente do fascínio da palavra, devido a sua riqueza de significações. Um poeta consegue obter, através dos recursos expressivos disponíveis, figuras de estilo e linguagem que corroboram para seu efeito artístico, completando as imagens construídas por ele. A imagem, através da palavra, acaba por se tornar ela em sim própria, ou como diria Paz (1982): "A imagem não explica: convida-nos a recriá-la e literalmente revivê-la". Talvez a síntese mais pertinente de seu pensamento seja "o sentido da imagem é a própria imagem".
A relação que palavra e imagem estabelecem entre si é ainda mais potente no domínio das histórias em quadrinhos. Tome-se como exemplo a tira de Maurício de Sousa:

Chico Bento, Globo. Jun/00, p.34.
Examinando-a, percebe-se como, em poucas palavras, o quadrinista foi capaz de realizar uma composição de humor, aproveitando-se de uma ambigüidade, aliás, arma recorrente nas HQ. Em consonância com o texto, as imagens surgem, não de forma secundária, mas a fim de lhe acrescentar informações imprescindíveis. Ora, se analisado o texto, deslocado das imagens, a ambigüidade se perde e, por conseguinte, seu traço de comicidade; e nada muito diferente ocorreria se a análise se voltasse tão somente às imagens.

QUADRO 1: Zé Lelé: — Tá quente! Tá quente! Tá quente!
QUADRO 2: Chico Bento: — IAUU!!
QUADRO 3: Zé Lelé: — Bão… Eu avisei!



Assim, uma característica instigante se apresenta nos estudos sobre as HQ: a implicada complementaridade entre palavra e imagem. Gian Danton (2005) atenta para o fato de o roteiro ser a primeira parte trabalhada, isto é, precedendo a imagem, o roteiro da HQ é, senão, a "palavrização" da imagem. Quanto a esta última, Cirne (1982) registra que "o desenho […] passa a ser o sonho gráfico pensado, trabalhado para a narrativa visual dos quadrinhos".
Porém, há ainda dois pontos a serem abordados: os balões e as onomatopéias. Nos primeiros localizam-se as falas de cada personagem ou uma narração necessária ao desenvolvimento da leitura. Estilística e iconicamente, são capazes de expressar os sentimentos dos seus personagens. Higuchi (1997) comenta que, certas vezes, "as letras e os balões, signos simbólicos transformam-se em verdadeiros ícones; (…) [revelando] alegria, medo, ruídos (…) [ou também] o volume da voz, diferenciando uma fala sussurrada, gritada ou normal" (vide imagem de Mafalda). Já o quadro extraído de Chico Bento apresenta dois diferentes balões; um deles, o mais comum, expressa a fala da Mamãe Gansa; o outro, retangular, em que se insere a narração, é o que atribui coesão e coerência textuais à história. Outros balões freqüentes são os de pensamento, em forma de algodão (ou nuvem, como o de Garfield) e os de choque, comumente atribuídos a susto ou desespero dos personagens.



Refletir sentimentos é característica também das onomatopéias – em que, aliás, ela se efetua mais intensamente. Costumam aparecer em fonte maior e expressam em si as circunstâncias que regem os fatos que as originaram. No quadro em que o tabajara pisa na cauda da onça, a dor é crescente, assim se justifica o grito em degradê; em seguida, o balão do rugido é tremido, pois o animal quer que o índio trema, além da cor vermelha, que remete à ira em suas plurisignificações; por fim, quando eles brigam, as onomatopéias 'paf', 'pof' e 'tum', apresentadas com cores diversas, aliadas a intensidade das vogais /a/, /ó/ e /u/, demonstram a força de cada golpe.




A maioria dessas palavras desempenha funções visuais e plásticas o que, nos mangás é facilmente perceptível e de tamanha importância, pois, de acordo com Bibe-Luyten (1985), "a escrita japonesa é formada por caracteres e as onomatopéias inseridas nos quadrinhos dão um incrível movimento, equilíbrio e força ao som que estão exprimindo", como bem reforça a figura, de DragonBall-Z, na qual o golpe que Goku sofre se intensifica pela onomatopéia, que também nos acresce o sentido de direção: um golpe da esquerda para a direita e de cima para baixo, como representa a onomatopéia em ordem crescente.


Por fim, vale citar uma vez mais Bibe-Luyten, quanto a informações sobre este processo de formação de palavras, por dizer que "estas [slam!, crack!, sniff!, splash!, gulp!] e muitas outras onomatopéias, que já são dotadas de significados em inglês, quando são transportadas para outras línguas, ficam apenas com função de signos visuais, isto é, passam a ser convenção na linguagem das HQ".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIBE-LUYTEN, Sônia M. O que é história em quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, 1985 (Coleção Primeiros Passos – 144).
CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1972.
————. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1975.
————. Uma introdução política aos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
DANTON, Gian. Gibis na sala de aula – parte I. Burburinho. Disponível no site http://www.burburinho.com/20051029.html . Acesso em 28 dez 2006.
FIORIN, José Luiz. Teoria dos signos. In: ————. Introdução à lingüística I – objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002.
HIGUCHI, Kazuko Kojima. Super-Homem, Mônica e Cia. In: CITELLI, Adilson (org.). Aprender e ensinar com textos não escolares. 1.ed. São Paulo: Cortez, 1997 (Aprender e ensinar com textos – volume 3).
LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 3.ed. São Paulo: Ática, 1987 (Série Princípios).
MAIA, João Domingues. Português. 11.ed. São Paulo: Ática, 2005.
MOYA, Álvaro de. Shazam. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1972.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. Olga Sawary. Rio de Janeiro: Nova Fronteria, 1982.


Autor: Gabriel França Siqueira


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