O Arquipélago - Ilha Feranado de Noronha



O Arquipélago ®

Autor: Leonardo Ramalho

Crônica publicada no DIÁRIO DE PERNAMBUCO em 10 de setembro de 1990.

"Atenção Srs. passageiros com destino para o arquipélago de Fernando de Noronha, dirijam-se ao portão de embarque...".

Acomodei-me melhor na poltrona e ajustei o cinto de segurança. Esse velho ritual de um passageiro o me fez lembrar do passado e de outras viagens.

Voando sobre o Atlântico me sentia ansioso para avistar a ilha e criava expectativas diante da realização deste antigo sonho. Foi inevitável a saudade e as lembranças de Gilda, pois foi com ela que imaginei esta viagem pela primeira vez.

Um sorriso brotou dos meus lábios ao avistar o arquipélago.

Depois de instalado na pousada de D. Marta, me senti tomado por uma emoção hesitante, sem saber por onde começaria a conhecer o arquipélago.

Então desci até a baía de Santo Antônio e caminhei sobre os arrecifes, observando as ilhas de São José e Rata. Mergulhei em águas cristalinas do Buraco da Raquel, deslumbrado com a cor celestial do mar.

Durante o almoço conheci outros turistas e fomos de jeep alugado à baía do Sancho, onde esqueci de mim mesmo admirando um mundo novo e submarino.

De volta dessa belíssima praia escalamos o morro mais uma vez, que era o único acesso aquele recanto paradisíaco. Daí pegamos uma trilha pelo mato até o Mirante dos Golfinhos.

A baía dos Golfinhos é também chamada de Santuário. A paz que reina naquele lugar é indescritível. O silêncio e a paisagem propiciam momentos de rara beleza. A natureza exuberante é um convite irresistível para participarmos daquela harmonia, que transforma cada pensamento que surge em oração, e o vento sopra em todos os recantos o canto da eternidade. Foi diante desse "Sorriso de Deus" que percebi o grosseiro sistema de pensamentos em que vivemos quase todos nós.

À noite saí sozinho para caminhar. Atravessei a Vila do 30 e desci até a praia de Conceição. Porém me dei conta de minha própria sombra caminhando ao meu lado, eterna companheira, que agora parecia brilhar sob o reflexo da lua.

Deitado na areia morna e seca da praia admirei o céu estrelado sem interferência de luz artificial. Sentindo uma vibração de paz e harmonia, mergulhei meu espírito no espaço infinito.

Essa "viagem" me fez entender que a jornada do autoconhecimento é o grande desafio do ser humano, pois é somente no universo da alma, terra dos deuses do bem e do mal, que despertamos o guerreiro que há dentro de nós e nos tornamos capazes de se lançar em combate contra os demônios da insatisfação humana, e submetê-los a golpes de sabre. Compreendi ainda que é nessa dimensão onde se perfaz a sibila [1]délfica: "Homem, conhece-te a ti mesmo" e a estrada onde se revela o segredo da vida; pois somente conquistando o universo interior podemos desenvolver uma concepção mais alta de civilização e nos tornarmos valentes para fazer a coisa certa, que nada mais é do que: "Ama o teu próximo como a ti mesmo".

Com o olhar fixo nas estrelas compreendi que os deuses só podem nos dar o que já temos dentro de nós.

- Nove horas! Gritou D. Marta lembrando mais uma vez à saída do barco que faz o passeio pelo arquipélago. Acordei apressado, tomei um gole de café e acelerei o passo em direção ao porto; e só cheguei a tempo graças a uma carona. Procurei a embarcação pelo nome, pois quase todos os barcos eram iguais e finalmente identifiquei o NAPAZ.

O arquipélago agora se apresentava diante de mim por um ângulo diferente, despertando mais uma vez a minha imaginação e incríveis fantasias.

Deslizamos pelas praias da Biboca, Conceição e muitas outras até a ilha Dois Irmãos, aonde os Golfinhos começaram a brincar em volta do barco. Então senti mais uma vez que a vida só pode ser compreendida por algo além da percepção dos sentidos.

Durante esta excursão conheci outros turistas e um grupo de nove garotas. Cada uma tinha um encanto especial, abrindo ainda mais o leque de minhas fantasias. Lembrei das Musas da mitologia grega. [2]"Pois nove são as Musas e com elas o homem imita os deuses. Elas são puras inspirações, que transformam o Homem num porta-voz de Deus".

Ancorado na baía do Sancho, todos mergulham e nadam com as tartarugas. Navegamos ainda ao largo da baía dos Golfinhos, enseada do Portão e retornaram da Ponta da Sapata para o outro extremo da ilha.

Depois da excelente peixada servida no barco, todos os passageiros procuraram um canto para sentar e fazer breve repouso.

Um clima de amizade e suave jogo de sedução se instalou entre mim e as "Musas". A beleza tropical do arquipélago favorecia essa magia da natureza humana, que teve um "empurrãozinho do destino" logo que zarpamos do porto: uma lufada de vento arremessou o chapéu de uma das Musas. O timoneiro parou o barco e a garota mergulhou. Depois de alcançar o chapéu ela teve dificuldades em nadar de volta por causa da forte corrente marinha e cansou. Eu estava de pé sobre o teto da cabina do barco. Ao perceber o inútil esforço da jovem musa, mergulhei para ajudá-la. Ela ofegava de exaustão ao subir na embarcação. A partir daí uma "química" amistosa nos envolveu e ao longo do passeio cada uma delas se ofereceu para passar protetor solar nas minhas costas, que acabou ficando esbranquiçada com tanto creme!

Na ilha Rata mergulhamos mais uma vez. O mar bem mais profundo convidava para saltos dos lugares mais altos do barco. Ao retornarmos para o porto, acompanhei as garotas até o Buraco da Raquel e mergulhamos mais uma vez para contemplar o mundo submarino.

A partir daí organizamos caminhadas pelas praias e nos tornamos companheiros inseparáveis. Íamos ao Bar do Mirante todas as noites e dançávamos no ritmo "caliente" da Lambada, que despertavam fantasias românticas e sensuais.

A mais longa caminhada que fizemos durou quase um dia inteiro: saímos cedo da Vila dos Remédios e pegamos a trilha para a praia de Atalaia. Esse lado da ilha é formado de morros e penhascos. Essa beleza natural se confunde com os obstáculos do caminho sinuoso e faz lembrar histórias de piratas e de tesouros escondidos.

Avistamos as ilhas do Frade, dos Ossos... Atravessamos o bosque seguindo a trilha que os carneiros e as cabras costumam usar. Nessa travessia caminhamos no mais absoluto silêncio, deslumbrados com a mata virgem e o canto dos pássaros.

No final do corredor da pequena floresta pegamos uma estrada muito antiga e arborizada, onde paramos na casa de um nativo para beber água de coco e também comer deliciosas cocadas.

Daí seguimos para praia de Americano e depois Sueste, onde pegamos mais uma trilha, que conduz à única decorrência de mangue em ilha oceânica do Atlântico Sul. O intenso calor dentro do manguezal se assemelhava a uma fornalha. O suor escorria pelos nossos corpos como se estivéssemos sob forte chuva e exalava o cheiro bom da energia erótica. O vapor do mangue se assemelhava as brumas do amanhecer e havia algo naquele lugar que revelava uma espécie de contentamento em cada um de nós, que só poderia advir da divindade que habita dentro de nossas almas e compreendida pelo simbolismo do deus Eros - fiel assistente de Afrodite: [3] "Um fogo que derrete o corpo e acende o espírito para nobres empreendimentos".

Sensação de profunda paz interior tomou conta de todos depois de refrescante banho de mar. Daí pegamos um caminho tortuoso e íngreme pelo mato. Do alto do morro avistamos a praia do Leão e observamos os [4] esguichos.

Finalmente pegamos uma estrada de pedra e avistamos o único açude da ilha, que fica nos arredores do aeroporto. Daí caminhamos pelo asfalto até o acesso para a baía dos Porcos, em busca das piscinas naturais de águas mornas.

Já de volta para a Vila do 30 conseguimos uma carona de caminhão e depois fizemos farta refeição num restaurante à beira-mar.

As coisas do mundo começam a morrer na hora em que nascem, pois o retorno das "Musas" para o continente provocou em mim suspiros de insatisfação e saudades das andanças pelo arquipélago. Depois que meu grupo partiu, permaneci na ilha por mais alguns dias.

Todas as manhãs eu caminhava até o Mirante dos Golfinhos e "mergulhava" em reflexões enquanto contemplava o "Sorriso de Deus" e o "silêncio" era o meu elo com o Criador.

Numa manhã quando voltava desse Santuário, fui até a baía dos Porcos para mergulhar em águas mornas. Despi-me e entrei numa das piscinas. Ao sair levei um susto, pois meu calção havia sumido!

Logo me aproximei dos arbustos sentindo que o larápio ainda estava por perto. De repente ouvi risadas e vi três garotas correrem. Uma delas com o braço levantado e agitando o meu calção. Ela gritava como um índio num campo de batalha.

Corri e alcancei a engraçadinha. Mas ao olhar para ela vi o rosto conhecido de Simone, uma ex-namorada de juventude. Porém ainda raivoso e encabulado com minha nudez, procurei me vestir às pressas enquanto as garotas riam. Acabei tropeçando e caindo, o que provocou mais risadas ainda. Entretanto, para minha surpresa, as três garotas se despiram e correram para o mar. Corri também!

Simone me abraçou com ardor. Beijou-me na boca e disse que tinham chegado naquela manhã. Depois apresentou suas amigas.

À noite nos encontramos no Bar do Mirante. Era o aniversário de Simone e a minha despedida, pois eu iria partir na manhã seguinte para o continente.

Era contagiante a alegria das garotas. Elas estavam sempre juntas e alegres, o que me lembrou as [5]Graças da mitologia grega, pois são elas que presidem a vida mediante o Amor.

Lembrei também de uma época já vivida e cheia de sonhos. Naquele momento percebi que meus desejos mais nobres acabaram adormecidos em algum lugar do passado, ou foram arrebatados pela selvagem vida moderna. O relógio avançava em busca da madrugada.

As garotas me deram carona de volta. Já na pousada, "as Graças" amarraram o cabelo atrás da cabeça e se despediram com beijo suave que lembrava o sabor de mel. Naquela noite eu dormi em estado de Graça!

- "Álison! Menino danado. Vem já p'rá cá". Gritou D. Marta mais uma vez. Álison era um "capetinha" de cinco anos de idade, que me fuzilou várias vezes com a sua metralhadora de plástico. Bastava eu deitar na sua rede do terraço da pousada e rá-tá-tá-tá... "Sai da minha rede tio".Dizia o moleque e soltava mais uma rajada. Sem esperar outro grito chamando o menino levantei e cuidei em me preparar.

A caminho do aeroporto me despedi da ilha silenciosamente. Enquanto aguardava o meu avião senti saudades das "Musas" e das "Graças".

Finalmente o Bandeirante-6 chegou. Já no alto, olhando o arquipélago, vi mais uma vez o Sorriso de Deus e agradeci a ELE pelas graças recebidas e logo adormeci.


Leonardo Ramalho.
Site do autor: http://br.geocities.com/caduceu_livro/leonardo_ramalho.html


[1] N.A -Oráculo de Delfos: Santuário em que um deus transmitia profecias ou conselhos a quem pedisse. O oráculo do deus Apolo em Delfos foi o mais importante até a época helenística.

[2]Referência: Mitologia-O Primeiro Encontro. Bruno Nardine. Editora círculo do Livro

[3] Mitologia-O Primeiro Encontro. Bruno Nardine. Editora círculo do Livro, 1982. Pág: 49.

[4] N.A - Grandes volumes d'água lançados pelo mar através de fendas nos arrecifes.

[5]Mitologia-O Primeiro Encontro. Bruno Nardine. Editora círculo do Livro.


Autor: Leonardo Ramalho_O Caduceu


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