A CIDADE E O MUNDO EM 'A FLOR E A NÁUSEA', DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



PALAVRAS-CHAVE

Cidade; mundo; Carlos Drummond de Andrade; "A flor e a náusea".

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema.
Resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais.
E soletram o mundo sabendo que o perdem.

(Carlos Drummond de Andrade, "A flor e a náusea", p. 27-28, grifos nossos)

1. INTRODUÇÃO

A rosa do povo (1943-1945), obra escrita pelo autor mineiro, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) considerado o maior poeta da literatura brasileira e um dos três mais importantes da Língua Portuguesa, é considerada a melhor de suas obras. Apresenta uma grande variedade temática e representa uma poesia social, na qual existe a tensão entre a participação poética e a adesão de utopias esquerdistas, em contrapartida a visão cética, apresentando assim uma visão polissêmica.

Para Drummond nunca há uma visão única e definitiva, sendo assim em suas poesias é retratada uma realidade com muitas faces. O poema a seranalisado "A flor e a náusea", é um

dos maisrepresentativosde A rosa do povo, retrata umaconsciênciatensa decorrente do momento histórico, período marcado por guerras no mundo e pela ditadura militar no Brasil, e indaga sobre o sentido da vida.

A poesia de Drummond, é marcada pela revelação da tensão entre o eu e o mundo, na qual a linguagem e a função da poesia no mundo moderno , passam a ser reflexões importantes.

A presente pesquisa tem como objetivo Geral, estudar como e por que a cidade e o mundo são expressos na poesia de Carlos Drummond de Andrade e como objetivos específicos: Reconhecer o engajamento sócio-político da poesia drumondiana; Analisar o enfoque da cidade e o mundo no poema "A flor e a náusea".

Os passos seguidos para a elaboração deste artigo foram: A leitura do poema "A flor e a náusea", de A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, constante do Conteúdo Programático; delimitação do tema; identificação do problema; seleção dos materiais necessários para a análise; revisão da literatura; projeção das hipóteses; orientação do professor Vitor Hugo Fernandes Martins, da disciplina Cânones e Contextos na Literatura Brasileira; redação; digitação; atenciosa revisão; digitação final; por fim a entrega do trabalho.

Os teóricos aos quais recorremos com mais assiduidade foram: MARTINS, 1998; MOISÉS, 2001; SANTANA, 2006; entre outros.

Dividimos o nosso artigo em duas seções: A primeira, POESIA, SOCIEDADE, POLÍTICA, nesta analisamos a poesia de Carlos Drummond de Andrade, quanto ao seu engajamento, a poesia drummondiana contrapõe-se a idéia de que "poesia só rima com fantasia" retratando por meio de uma linguagem e estilo próprio a realidade social e política, tanto de cunho nacional quanto internacional; A segunda, A CIDADE E O MUNDO EM "A FLOR E A NÁUSEA" , na qual destacamos trechos do poema que comprovam o enfoque da cidade e o mundo na "visão" de Carlos Drummond de Andrade.

2. POESIA, SOCIEDADE, POLÍTICA

Na época de 1943-1945, o mundo passava por um período de intensa turbulência, no Brasil chegava-se as notícias dos massacres e dos campos de concentração nazistas.

O conflito na Europa refletia no cotidiano brasileiro, exemplo disso foi o alistamento dos jovens na luta contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e o racionamento imposto pela guerra.

Com a II Guerra Mundial a humanidade passava por um período de elevada angústia, pois apesar de o Brasil não ser "bombardeado", em São Paulo a população convivia com exercícios preventivos de defesa antiaérea, e ainda surgiam boatos sobre os submarinos alemães estarem rondando a Costade Santos e de helicópteros da "marcha" nazista estarem sobrevoando a Baixada.

Além de estarem ocorrendo conflitos no mundo, decorrentes da II Guerra Mundial, o Brasil, na política, vivia o período da Ditadura Militar. O presidente da época, Getúlio Vargas, implantou o regime ditatorial desde 1937 e perdurou até 1945. No início Vargas havia apoiado a política de Hitler, mas posteriormente convenceu-se a juntar-se aos aliados (Inglaterra, Estados Unidos, União Soviética e França).

Getúlio Vargas com a suspensão dos direitos constitucionais e rígida repressão policial manteve o país em "Estado de guerra". O governo anunciava o programa nacional de recrutamento feminino, para formar enfermeiras, a meta a ser cumprida era de pelo menos 600 mil enfermeiras, para servir no interior do país, se houvesse algum ataque e no exterior para acompanhar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Europa.

Estabeleceram-se medidas de ordem penal contra os que abusassem da venda de bebidas alcoólicas, sem obediência às determinações da lei em vigor, objetivando apenas o lucro próprio. Além disso, como a aguardente era uma das bebidas mais visadas, seria a que sofreria mais restrições, tanto que o governo tomou a medida de confiscar setenta por cento da produção da "cachaça".

Apesar da censura política e social, a implantação e aplicação da política do Estado Novo, contribuíram para o avanço nas políticas sociais e econômicas, como a execução de uma legislação trabalhista e a implantação de indústrias de base no país.

No governo ditatorial os partidos foram interditados, as manifestações públicas proibidas, a imprensa sob censura, toda atividade política foi temporariamente banida do país, enfim a proibição da realização de manifestações públicas virou "letra morta".

No plano internacional, o Brasil aliado aos países democráticos, enviava tropas para lutar contra o nazi-facismo nos campos de batalha. No plano interno, embora o Estado Novo enfraquecido, mantinha-se de pé, não havendo liberdade de expressão, de organização e de manifestação, os jornais ainda censurados e as prisões ainda cheias de adversários do regime.

Diante disso, com a participação do Brasil na luta anti-facista, incitou os círculos acadêmicos e intelectuais da nação a aprofundarem-se nas críticas ao regime autoritário. É nessa época que Carlos Drummond de Andrade, mostra-se um poeta de intensa sensibilidade que capta o sentimento, as dores e a agonia de seu tempo. Principalmente retratados em sua obra A rosa do povo, na qual há a predominância de abordagens sócio-políticas.

Drummond contrapõe-se a uma realidade de guerras, genocídios e a Ditadura da Era Vargas, trazendo por meio de seus poemas a solidariedade entre os homens e a busca pela identidade em um mundo marcado por crises. Sua poesia exerce, no entanto, o papel social de criticar, denunciar a opressão que marcou o período da II Guerra e da Ditadura Militar, conscientizar sob uma visão dolorosa e comovente da realidade.

Em seus poemas, retrata-se o cotidiano da cidade e do mundo e faz-se alusões históricas, por meio de uma linguagem aparentemente clara, porém bastante metafórica e repleta de símbolos, acessível somente para leitores com significativa informação poética, dirigida no entanto, a apenas a uma aristocracia intelectual.

Enfim, decorrente do tenso momento histórico, a poesia drummondiana indaga sobre o sentido da vida, marcado pelo conflito do "Eu versos o mundo", traduzindo assim a época sombria.

3. A CIDADE E O MUNDO EM "A FLOR E A NÁUSEA"

Ler um poema é propor a si mesmo, uma pausa para refletir, sentir as palavras e comover. É nessa perspectiva que sugerimos a análise do poema a seguir. Ele reflete um "tempo" não só individual, mas também coletivo no país e no mundo.

1 Preso à minha classe e a algumas roupas,
2 vou de branco pela rua cinzenta.
3 Melancolias, mercadorias espreitam-me.
4 Devo seguir até o enjôo?
5 Posso, sem armas, revoltar-me?

6 Olhos sujos no relógio da torre:
7 Não, o tempo não chegou de completa justiça.
8 O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
9 O tempo pobre, o poeta pobre
10 fundem-se no mesmo impasse.

11 Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
12 Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
13 O sol consola os doentes e não os renova.
14 As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.

15 Vomitar esse tédio sobre a cidade.
16 Quarenta anos e nenhum problema
17 resolvido, sequer colocado.
18 Nenhuma carta escrita nem recebida.
19 Todos os homens voltam para casa.
20 Estão menos livres mas levam jornais
21 e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

22 Crimes da terra, como perdoá-los?
23 Tomei parte em muitos, outros escondi.
24 Alguns achei belos, foram publicados.
25 Crimes suaves, que ajudam a viver.
26 Ração diária de erro, distribuída em casa.
27 Os ferozes padeiros do mal.
28 Os ferozes leiteiros do mal

29 Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
30 Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
31 Porém meu ódio é o melhor de mim.
32 Com ele me salvo
33 e dou a poucos uma esperança mínima.

34 Uma flor nasceu na rua!
35 Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
36 Uma flor ainda desbotada
37 ilude a polícia, rompe o asfalto.
38 Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
39 garanto que uma flor nasceu.

40 Sua cor não se percebe.
41 Suas pétalas não se abrem.
42 Seu nome não está nos livros.
43 É feia. Mas é realmente uma flor.

44 Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
45 e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
45 Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
46 Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
47 É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

(Carlos Drummond de Andrade, "A flor e a náusea", p. 27-28).

De início o título do poema remete a idéia de oposição, a flor indica algo que é agradável que inspira vida e a náusea expressa um sentimento de agonia, de repudia.

Na primeira estrofe, percebe-se um eu – lírico em estado de depressão, de angústia e de impotência frente aos problemas causados pelos acontecimentos da época, que tornam a cidade coisificada e asfixiante.

A segunda estrofe, por meio do signo do relógio da torre retrata mais uma vez a cidade no poema. O relógio significa o "tempo" de justiça e de paz que ainda não chegou, o tempo incompleto. O poeta ao dizer que "o tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse", se coloca em comunhão com o mundo, ele não apenas vive os problemas, ou apenas vê os problemas como se não os atingissem, mas pelo contrário é a coletividade que vive o drama do momento histórico.

O poeta na estrofe seguinte, busca respostas para suas indagações, "os muros são surdos", podemos dizer que os muros significam os homens surdos, alienados. Revela ainda no verso 12 as palavras interrompidas pelo silêncio marcado pela época, na qual toda atitude de expressão era proibida durante o regime ditatorial, as cifras e códigos também podem indicar a impossibilidade de se encontrar respostas que apontem soluções.

Além disso, na quarta estrofe, a cidade revela-se um lugar impróprio para viver, um lugar estagnado, no qual não se alcança nenhuma mudança, o poeta sente-se entediado e incapacitado de fazer algo para mudar a realidade, pois não consegue relacionar-se através de sua poesia por causa da sua subjetividade alcançando assim, apenas uma pequena parcela da sociedade.

Nos versos 27 e 28, aparecem duas figuras sociais que representam o cotidiano da cidade, "os ferozes padeiros do mal"/ "os ferozes leiteiros do mal", os adjetivos utilizados pelo poeta para se dirigir aos padeiros e leiteiros "figuras aparentemente inofensivas", são indicações da banalização do mal, tão presente da vida diária da sociedade.

Na sexta estrofe, o eu - lírico encontra-se em desespero, em sua memória traz reminiscências de um passado que parece refletir no presente e trazer um ódio adormecido que renasce como símbolo de uma esperança, num mundo onde os homens se mostram "inertes" diante do caos.

No entanto, nas duas estrofes seguintes, o nascimento de uma flor ainda que feia, pálidae vulgar indica o surgimento ou o desabrochar de uma nova era, de um novo mundo, disposta a romper com a lógica a flor nasce em meio ao trânsito e rompeo asfalto, e em meio a tanto desencanto é o que mantém viva as esperanças do poeta.

Por fim, na última estrofe, o poeta vislumbra uma saída em meio a clausura existencial, e anuncia a mudança que está para ocorrer na cidade, Rio de Janeiro a capital do país na época, podendo ser percebida nos versos 45 e 46, e no último no qual a flor "fura a náusea" simbolizando assim, um novo amanhã.

Diante desta análise sucinta do poema, podemos afirmar que o poeta em meio a tantos conflitos se sente na necessidade de expressar a agonia de sua época, para isso ele retrata de maneira ainda que subjetiva o cotidiano da cidade e os fatos que ocorriam no mundo. A poesia de Drummond nessa fase, toma como tema a política, a guerra e o sofrimento do homem pela impotência e solidão, causadas pela frieza e mecanicidade de um mundo que reduz o ser humano a um objeto.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intenção deste trabalho foi demonstrar a poesia de Carlos Drummond de Andrade na perspectiva do engajamento social e político, tendo como enfoque a cidade e o mundo, tomando como objeto de análise o poema "A flor e a náusea".

Notamos por meio desta análise, que o poema enquadra-se na tendência sócio-política, na qual a angústia do poeta transforma-se em engajamento e compromisso com a humanidade, reflete um mundo com um clima de aflição, no qual o indivíduo em crise, identifica-se numa atmosfera de esperança e vislumbra o novo.

Diante disso é que se compreende a "flor" do poema, como uma imagem que indica esperança pelas transformações que já se anunciavam.

A função da poesia na perspectiva de Carlos Drummond de Andrade é, no entanto, a de refletir a relação entre o eu e o mundo, a de conscientizar, comover e transformar qualquer situação incômoda.

É válido ressaltar que a idéia de uma poesia com essa tendência é importante em qualquer época além disso, é possível interpretá-la de forma coerente e estabelecer vínculos com a realidade atual.

Portanto, analisar um poema ou qualquer obra que aborde temas sociais e políticos, enfim engajados é se dar a oportunidade de refletir tanto a história quanto a atualidade, e a análise desse poema nos possibilitou isso.

Acreditamos, que o objetivo primordial deste trabalho tenha sido alcançado.

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. "Carlos Drummond de Andrade". IN. História consisa da Literatura Brasileira. 41ª. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.p. 440-446.

COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 293-299.

CURY, Maria Zilda Ferreira. Horizontes Modernistas: O jovem Drummond e seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. p. 171-175.

KONDER, Leandro. "A vitória do realismo num poema de Carlos Drummond de Andrade". IN. Realismo e anti-realismo na Literatura Brasileira. Vários. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 75-93.

MARTINS, Vitor Hugo Fernandes. "Carlos Drummond de Andrade". IN. Antologia de poesia modernista. São José de Rio Preto, 1998. p. 11-13.

MOISÉS, Massaud. "Carlos Drummond de Andrade". IN. História da Literatura Brasileira. 6ª. ed. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 262-274.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. "Carlos Drummond de Andrade". IN. Literatura no Brasil. 6ª. ed. São Paulo: Global, 2001,V.S, p. 129-139.

SANTANA. Afonso romano de. "A flor, a vida, a poesia". IN. Prefácio à 35ª. ed. de A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 27-28.

Site: http://www.culturabrasil.pro.br/cda.htm. Acesso em: 18 de julho de 2007, às 22h14min.

Site: http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=23827. Acesso em: 06 de agosto de 2007, às 12h20min.

Site: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/al051020004.htm. Acesso em: 10 de agosto de 2007, às 16h40min.

Site: pt.wikipedia.org/wiki/História_militar_do_Brasil - 69k. Acesso em: 10 de agosto de 2007, às 18h05min.


Autor: Rita Moreira


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