O ser humano: o indivíduo e o grupo



Neri P. Carneiro [1]

Desde quando o ser humano pode ser considerado homem? Não existe uma resposta exata. As ciências do homem embora busquem essa resposta, sabem quão difícil será encontrá-la. Talvez por isso se desenvolvam tantas teorias. Talvez por isso se choquem o criacionismo e o evolucionismo.

O fato é que o ser humano se diferencia dos outros animais, por ser capaz de interferir conscientemente no mundo. Além disso, ao mesmo tempo em que preserva e deseja manter-se isolado e em sua individualidade, sente-se impelido para o grupo, formando a sociedade humana.

O que podemos dizer é que existem opiniões convergentes e divergentes a respeito do nascimento do homem. Mas todos admitem um processo evolutivo da hominização. Mesmo a tese criacionista contém conotações evolutivas. Afinal o que é a ordem divina do "crescei e multiplicai-vos", se não um princípio de evolução? Do ponto de vista científico, entretanto, não se pode falar de um "momento" específico, mas de um processo. Esse processo parece ter sido o da produção da cultura, traço específico da sociedade humana transformando a natureza pelo trabalho. Em razão disso podemos dizer que a individualidade e a consciência de pertença a um grupo social também se desenvolveram dessa forma: pelo trabalho.

É claro que dependendo da perspectiva teórica adotada, as particularidades da explicação sobre as origens humanas irão se diferenciando. Marxistas e positivistas ou funcionalistas, apresentarão perspectivas diversas do processo de humanização, mas em todas as perspectivas a afirmação da humanização a partir do trabalho será constante. Por esse motivo não vamos nos deter nessas diferenciações teóricas, mas apenas mencionar algumas características do processo de humanização que, segundo nos parece, são imprescindíveis para a compreensão da sociedade humana.

O homem distinto dos animais

Observando as abordagens da filosofia, da antropologia, da sociologia, da história ou outras ciências do homem, veremos que, embora com perspectivas diferentes, todas dão a mesma resposta para a indagação sobre as origens do homem: a partir do momento em que, pelo trabalho, foi capaz de interferir no mundo, produzindo cultura, nesse "momento" nasceu o ser humano. Esse momento, entretanto encontra-se perdido no tempo. "Entre os últimos estratos do Plioceno, donde o Homem está ausente, e o nível seguinte, onde o geólogo deveria ser sacudido de estupefação ao identificar os primeiros quartzos lascados, o que se passou? E qual a verdadeira dimensão do salto? (Chardin, 1986, p. 185. grifo nosso). O que são esses "quartzos lascados"? Evidência da ação e do trabalho humano; produção de cultura, ou seja, produção de um instrumento que foi construído a partir de uma finalidade. Não estamos mais no âmbito do acaso; aparece a intencionalidade em uma produção. Aquele ser que manipulou o quartzo estava trabalhando...

Existe mais uma característica, apontada por T. Chardin. Embora o padre jesuíta esteja mostrando o processo da evolução humana, suas palavras podem ser invocadas como demonstração das diferenças entre as capacidades humanas e animais.

Afinal de contas, é verdade, toda a metamorfose hominizante se reduz, do ponto de vista orgânico, a uma questão de melhor cérebro. Mas como se teria produzido esse aperfeiçoamento cerebral, – como teria podido funcionar? – se uma série inteira de outras condições não se encontrassem, ao mesmo tempo, e todas, em conjunto, realizadas?...Se o ser de que saiu o Homem não tivesse sido bípede, suas mãos não se teriam achado livres a tempo para eximir as maxilas de sua função apreensora, e, por conseguinte, a espessa faixa de músculos maxilares que apertava o crânio não se teria relaxado. Foi graças à bipedia liberando as mãos que o cérebro pôde se avolumar; e foi graças a ela, ao mesmo tempo, que os olhos, acercando-se um do outro sobre a face reduzida, puderam se pôr a convergir e a fixar o que as mãos apreendiam, aproximavam e em todos os sentidos apresentavam: o próprio gesto, exteriorizado, da reflexão!... (Chardin, 1986, p. 187, grifos nosso)

Outro elemento indicador da humanização é a consciência de si e do outro. Ou, nas palavras do padre Chardin, a constatação da existência de um diferente e distinto, passando de um sem consciência de si para outro, já portador dessa consciência. Embora o "momento" seja indefinível, o fato é que ocorreu uma passagem descontinua entre um estado e outro. Outra vez nos socorremos com as palavras chardinianas: "Revire-se o problema como se quiser. Ou temos de tomar o Pensamento impensável, negando sua transcendência psíquica em relação ao instinto. Ou então temos de nos resolver a admitir que seu aparecimento se deu entre dois indivíduos". (Chardin, 1986, p. 190). O fato é que tudo mudou, a partir do aparecimento da capacidade pensante. O mundo já não era mais o mesmo. O processo evolutivo continuou, mas com a inclusão de um ingrediente novo: a possibilidade de interferência e interação.

Esse indivíduo que se percebe no mundo, embora não de maneira clara e objetiva, começa a interagir com o mundo e interferir no mundo. A essa interação-interferência é o que podemos denominar de trabalho, que foi facilitado pela utilização do polegar opositor, formando uma pinça especializada, com os dedos.

Paulo Meksenas, assim se refere a esse processo:

Nesse processo de evolução, a utilização das mãos foi decisiva. A partir do momento que um grupo específico de primatas conseguiu adotar uma postura ereta, as mãos começaram a ser usadas como ferramentas para pegar e segurar objetos. Ao contrário de outros mamíferos, quando o homem passou a utilizar apenas os pés para se locomover, deixando as mãos livres, pôde fabricar outras ferramentas que o ajudaram a enfrentar o meio em que vivia, Nasce assim o trabalho: atividade que exige do gênero humano o uso constante das capacidades mentais e físicas na construção dos meios que possibilitem a sobrevivência. (Meksenas, 1994, p.36)

A diferenciação com os demais animais, portanto, não se deu de u salto, mas de forma processual. Não se limitou a u aspecto, mas a um encadeamento de situações e aquisições distintivas e definidoras.

O homem: trabalhador e produtor de cultura

Uma primeira afirmação é que o ser humano, embora também um animal, se diferencia daqueles que assim são chamados. Até mesmo a sociabilidade dos demais animais é diferente daquela desenvolvida pelos humanos. Aliás essa é a afirmação aristotélica: "o homem é um animal político em grau maior que as abelhas ou todos os outros animais que vivem reunidos". Ele é um animal político porque se associa de forma diversa dos demais animais.

Podemos entender melhor essa distinção entre o ser humano e os demais animais comparando os comportamentos. Os animais vivem em harmonia com a natureza usufruindo dela a partir de suas condições e necessidades biológicas: sua ação é instintiva. O homem também vive na e da natureza e a explora a partir de suas necessidades, mas movido por seus interesses: sua ação é intencional.

As ações animais se extinguem tão logo terminadas. São ações sem história. Ou seja não há transmissão dos conhecimentos acumulados, pois nem acúmulo de conhecimentos existe. Nunca se ouviu falar em um João-de-barro que tenha construído um condomínio para alugar apartamentos. Por seu lado o ser humano não só é capaz de aprender, mas de ensinar e de tirar lições das experiências vividas. Por esse motivo é capaz não só de construir habitações, mas de fazê-las diferentes umas das outras e colocá-las à disposição de outros humanos, em troca de um preço estipulado. Podemos dizer que enquanto os animais possuem uma inteligência concreta, o ser humano desenvolve-se e desenvolve inteligência abstrata.

Essa consciência, ou inteligência abstrata, nas palavras de T. Chardin, representa a capacidade reflexiva, pois a reflexão permite ao homem tomar consciência do seu saber:

a reflexão, como a própria palavra o indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor: não mais apenas conhecer, – mas conhecer-se; não mais apenas saber, mas saber que se sabe. (Chardin, 1986, p. 186, grifo no original)

Dessa forma, concordando com esse jesuíta, podemos dizer que se o animal sabe, o homem sabe que sabe. Ou, nas palavras de Aristóteles: o que diferencia "homem de todos os outros animais: só ele sabe discernir".

O animal sabe bem entendido. Mas, certamente ele não sabe que sabe: de outro modo teria, há muito tempo, multiplicado invenções e desenvolvido um sistema de construções internas que poderiam escapar à nossa observação. (...) Em re1ação a ele, por sermos reflexivos, não somos apenas diferentes, mas outros. (Chardin, 1986, p. 187, grifo no original)

Podemos domesticar – ou ensinar – a um determinado animal dizendo, por exemplo que uma determinada posição corporal chama-se sentar. E ao repetirmos essa palavra o animal assuma a posição de "sentado". Entretanto, ao repetir essa posição, por hábito ou por cansaço, esse animal não estará assim fazendo por ter sido dessa forma ensinado ou porque assim se decidiu, mas porque sente essa necessidade imperiosa que o impele inconscientemente. Por sua vez o homem, mesmo extremamente cansado pode decidir-se por não se sentar ou não descansar. Isso implica dizer que o ser humano também é movido pela vontade consciente e livre. A liberdade, ou capacidade de decidir o que quer e quando quer, produz no ser humano uma enorme capacidade de produzir coisas e idéias. Coisas que transformam as idéias e idéias que provocam revoluções.

Os animais desenvolvem uma série de atividades que lhes são inatas ou aprendidas. Entretanto sua consciência da ação termina tão logo se afaste dela. Por isso sua ação não tem história; razão pela qual, também, não produz cultura. Por mais que um cavalo, atrelado a uma carroça, transporte inúmeras cargas de madeira, não se dará conta de que com ela é possível construir um estábulo a fim de abrigar-se das intempéries. Por esse motivo não podemos dizer que os animais trabalham, e, consequentemente, lhes é impossível produzir cultura, pois não são capazes de, intencionalmente, transformar a natureza. Podemos dizer, portanto que o homem trabalha, ao fazer o cavalo transportar a madeira, mas o cavalo não está trabalhando ao transportar a madeira. O que ocorre é que os animais tão somente realizam ações próprias da espécie ou que lhes são impingidas pelos homens.

Ao transformar a natureza o homem está trabalhando. O "trabalho é a ação transformadora dirigida por finalidades conscientes, a partir da qual o homem responde aos desafios da natureza" (Aranha, 1991, p. 4). E, mais ainda, a ação humana não se explica por si mesma, nem ele age somente em benefício próprio. As ações humanas recebem sentido na relação com outros humanos. Aliás as ações humanas são desenvolvidas como resposta às exigências dessas relações. Por isso se diz, que o ser humano se humaniza na relação com outros humanos. A cultura, resultado do trabalho, portanto, não é produzida em causa própria, mas a partir das exigências do grupo social em que o homem está inserido. Um exemplo típico da ação desenvolvida a partir das exigências do grupo são as vestimentas. Usamos roupas não para nos cobrir o corpo, mas porque os padrões sociais assim o determinam, o que pode ser comprovado pelos diferentes tipos de conceber a vestimenta, no mundo ocidental e oriental, por exemplo. O mesmo podemos dizer da forma como tratamos os pelos de nosso corpo: retirar, tingir, recortar, são elementos não necessários, mas padrões sócio-culturais

As ações humanas passaram a ser, também, simbólicas. Os grunhidos passaram a denotar significado. Nasceram as palavras e ampliaram-se as possibilidades de simbologia. O fato de trabalhar e, portanto, produzir cultura, fez com que o ser humano, diferentemente dos demais animais, se especializasse e se tornasse não só capaz de produzir, aprender e ensinar, mas de comunicar. Emquanto os demais animais ou os "animais não humanos' mantêm comportamentos padronizados pela "herança biológica" o ser humano desenvolveu um nivel de comportamento "padronizado pela aprendizagem através da comunicação simbólica" (Vila Nova, 2004, p. 50).

Esse mesmo autor diz que a comunicação entre aqueles que chama de "animais não humanos" ocorre mediante uma "linguagem que deriva diretamente dos estados emocionais" (idem, ibidem, p. 51). Essa linguagem emocional é essencialmente distinta da linguagem humana que se desenvolve, criativamente a partir da riqueza simbolica.

O símbolo está presente em todos os momentos da nossa vida, pois ele não se limita à palavra. A palavra é o símbolo por excelência mas não é a sua única expressão. A linguagem verbal, no entanto, é o mais importante instrumento de socialização. O símbolo verbal permite ao homem conduzir suas ações segundo situações, objetos e pessoas fisicamente distantes, assim como de acordo com acontecimentos passados ou hipoteticamente futuros; permite a transmissão de conhecimentos, técnicas e idéias em geral; permite, enfim, a elaboração de um universo de idéias paralelo e tão real quanto o ambiente e as pessoas. Por isto é tão rica de possibilidades a comunicação entre os homens. É, portanto, compreensível que o símbolo, sobretudo o verbal, seja tão importante para o processo de socialização e, em conseqüência, para a continuidade dos sistemas sociais. (Vila Nova, 2004, p. 52, grifo nosso).

Não se está negado a capacidade de comunicação ente os demis viventes, apenas realçandoa dimensão específica e criativa da liguagem e comuicação humana. Sem esquecer, além disso, que a linguagem é ao mesmo tempo, um elemento cultural e socializante. Onde não existe relaçoes sociais não há necessidade de comunicação. O indivíduo isolado não se comunica.

O homem e a existência grupal

Nesta altura podemos nos perguntar o que mais pode ser mencionado como elemento caracterizador do ser humano? Partindo a afirmação aristotélica, de que o homem é um ser político, podemos perpassar os diversos momentos da história do pensamento e verificaremos a constancia de tal afrimação. O homem é um ser social; vive e constrói o grupo para sobreviver. Entretanto isso não é tudo e, assim nos parece, nem é asolutamente verdadeira a afirmação da essencial sociabilidade do homem. É verdade que se humaniza no grupo, mas, podeos dizer, também, que prefere o isolamento.

Entretanto, antes de entrarmos diretamente nesta questão vamos nos colocar não um problema sociológico, mas da antropologia [2] . Nossa indagação inicial não se refere ao Homem em suas relações e produções, mas em sua essência: constatamos a existência humana e por isso queremos saber o que é essa realidade à qual chamamos de Homem ou de ser humano. Notemos que é sempre "o homem concreto, condicionado, que pergunta pela essência do homem. Já trazemos conosco a nós mesmos, a nossa situação, a nossa experiência, o nosso horizonte de compreensão. Esse horizonte não deve ser excluído, pois ele é a condição da pergunta" (RABUSKE, 1999, p. 17). Ou seja, não negamos as relações e produções – a cultura – para indagarmos e respondermos pela essência humana. Aliás é essa teia de relações que explica e possibilita a cultura. Além disso esse é um dos pontos de referência na perspectiva evolucionista teilhardiana, como nos diz o célebre jesuíta: "à nossa volta, no espaço de algumas gerações, laços econômicos, e culturais de toda espécie se estabelecem e se vão multiplicando em progressão geométrica" (CHARDIN, 1986, p. 278). Podemos dizer, portanto, que será sempre a partir dessa multiplicação de laços se desenvolvem e se definem os padrões culturais e mais se define a essência humana.

Aqui estamos interessados em algumas características humanas e a sociabilidade é uma delas. A sociabilidade, ou a capacidade de viver, sobreviver e existir em coletividade parece ser uma das melhores caracterizações do Homem. Diferentemente do que ocorre com outras espécies, o Homem não se associa por instinto, mas por vontade. O Homem não é dependente, mas senhor da sociedade; não está nela devido aos instintos, mas porque assim o quer.

Entretanto aqui precisa se fazer uma ressalva. O ser humano também sente necessidades e tem medos. Portanto, não nos parece que o Homem seja, essencialmente, um ser social, mas se faz social a partir de suas necessidades e para superar seus medos. Admitindo isso podemos dizer que a sociedade humana está assentada sobre os pilares do medo e das necessidades. A vontade de viver em grupo se deve ao fato de que o ser humano é limitado, o que significa dizer que tem necessidades e se tem necessidades ente medo de não as satisfazer. Além disso tem medo do que não conhece e do que já conhece. O medo em relação ao mundo, ao desconhecido provocam no Homem a consciência de sua limitação e daí a percepção de suas necessidades. Em razão disso decide-se por viver em grupo, pois o grupo, expressão da sociedade, é um fator de segurança. O motor da vida social, portanto não é o que Aristóteles chama de constitutivo essencial do ser humano, como ser político, mas suas necessidades.

Em razão de suas necessidades e medos o ser humano se associa. Podemos dizer, portanto que a vida social, na realidade é originária de outra característica humana que é sua capacidade de tirar proveito das situações. Assim sendo, o ser humano, fraco e amedrontado, tira proveito de seu medo e do medo de seus semelhantes, tira proveito de sua fraqueza e da fraqueza de seus semelhantes e com isso constitui a vida social, pois no grupo ou em sociedade o ser fraco se fortalece. Associando-se o ser humano torna-se mais forte e dessa forma satisfaz muitas necessidades e supera situações assustadoras.

Podemos dizer que, embora um ser sectário o Homem se socializa, não por ser sociável, mas porque se percebe impotente diante da natureza, mais forte que ele. E, por medo de não sobreviver procura a ajuda dos semelhantes. Assim se faz sociável numa atitude tipicamente egocêntrica, medrosa e aproveitadora. Para fugir de seus medos e disfarçar sua fraqueza aproveita-se da fraqueza dos seus semelhantes. Dessa forma a vida social é um meio pelo qual o Homem tira proveito da fraqueza de outros para se fazer forte. Mas a sociedade é um caminho para o isolamento, como afirma Nietzsche, dizendo que todo homem da "elite aspira instintivamente à sua torre de marfim, onde está livre da massa, do povo, da multidão, onde pode esquecer a regra 'homem', sendo ele próprio uma exceção a essa regra" (NIETZSCHE, [2005] (a), p. 43).

A perspectiva nietzscheana nos conduz a outra afirmação a respeito do homem. A afirmação de sua maldade. Por isso podemos dizer que outra característica do Homem é a maldade. Essa característica recebe o seguinte comentário de Nietzsche: "ver sofrer; faz bem; fazer sofrer melhor ainda: ai está um duro princípio, mas um principio fundamental antigo, poderoso, humano, demasiadamente humano" (NIETZSCHE, [2005] (b), p. 64). E o pensador alemão ainda acrescenta:

É verdade que repugna à delicadeza, mais ainda, a hipocrisia de animais domesticados (quero dizer os homens modernos, quero dizer nós) representar-se com todo o rigor até que ponto a crueldade era alegria festiva na humanidade primitiva e entrava como ingrediente em quase todos os seus prazeres; por outro lado [...]. Indiquei já de maneira circunspecta a espiritualização e a 'deificação' da crueldade que não cessa de crescer e atravessa toda a história da cultura superior. (NIETZSCHE, [2005] (b), p. 64. Grifo nosso).

Essa perspectiva pode não soar agradável a muitos ouvidos, mas é corroborada por outros pensadores. A tendência para a maldade pode ser entendida como ponto de partida para Hobbes dizer que o "homem é o lobo do homem". Essa afirmação tanto pode ser tomada do ponto de vista individual como coletivo. O homem sempre age para devorar (lobo) seus concorrentes e seus pares, nas relações grupais. Não é por acaso que se assiste cotidianamente colegas de trabalho se massacrando e uns "puxando o tapete" dos outros... em razão disso se instala uma "guerra de todos contra todos", como fala o empirista inglês. O homem malévolo, beligerante procura um mecanismo de se preservar e criar condições básicas para a sobrevivência social. Por essa razão e procurando diminuir a voracidade da concorrência e beligerância os homens se associam e criam o Estado. Mas esse, como expressão do seu criador, é um monstro. E Hobbes se apropria da figura bíblica do Leviatã, para definir o Estado. Assim se o homem é seu próprio lobo, o Estado não é diferente: é um monstro. Eis as palavras de Hobbes, sobre o Estado:

O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por conseqüência o fato de nada ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário.

O ser humano percebe ser impossível sobrevier nessa situação de guerra. Para enfrentá-la passa a viver em sociedade. E em sociedade cria as diferentes regras e normas de convivência. Estabelece-se, dessa forma, a moral. E todas as demais imposições que a sociedade estabelece sobre o indivíduo. Por isso, o Estado – a sociedade – que havia sido criada para socorrer o homem, transforma-se em uma entidade assustadora.

E, em última análise, caberá ao processo educacional e, especificamente, à instituição escolar, promover a adaptação do homem – individuo – à sociedade. A educação será o caminho e recurso pelo qual serão criados mecanismos pelos quais a situação conflitiva poderá ser substituída por situações de adaptação. Assim a individuo não vive de acordo com seus princípios ou motivações mas será aquilo que a sociedade deseja.

Referências

ARANHA, Maria L. A. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna. 1991.

ARISTÓTELES Política. Livro I cap. II. Disponível em: www.unicamp.br/~jmarques/cursos/1998-hg-022/ politica .doc. Acessado em 15/12/2009

CARNEIRO, Neri P. Uma Antropologia da Cultura II: O homem, que realidade é essa?. In. www.webartigos.com. Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/13429/1/uma-antropologia-da-cultura-ii-o-homem-que-realidade-e-essa/pagina1.html

CARNEIRO, Neri P. Uma Antropologia da Cultura III: Cultura: a criação humana. In. www.webartigos.com. Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/13430/1/uma-antropologia-da-cultura-iii-cultura-a-criacao-humana/pagina1.html

CHARDIN, P. Teilhard. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1986

HOBBES, ThomasLeviatã , 1.ª parte: Do Homem. Estrato Disponível em http://www.mundodosfilosofos.com.br/hobbes.htm acesso em 02/12/2008 texto integral disponível em: http://www.esnips.com/doc/758f826d-0bae-43c2-af24-70d502a3613e/Hobbes---Leviat%C3%A3

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 12 reimp da 1 ed, (1988), São Paulo: Brasiliense, 2000.

MEKSENAS, Paulo. Sociologia. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1994.

NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. São Paulo: Escala, [2005] (a)

NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Escala, [2005] (b)

RABUSKE, E. A. Antropologia filosófica 7 ed. Petrópolis: Vozes, 1999

VILA NOVA, Sebastião. Introdução à Sociologia. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2004




Autor: NERI P. CARNEIRO


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