O Direito achado nas ruas e nos campos: uma experiência vivida



Assim como a história humana, o Direito não se desenrola apenas nos gabinetes e nos tribunais. Ele "se desenrola também pelos quintais (...), nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios e nas usinas (...). E só é justo (...) quando arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz" (Ferreira Gullar)

Corria o ano de 1970 no Rio Grande do Sul, e o pastor luterano Werner Fuchs, ao solidarizar-se com a luta dos ribeirinhos sem-terra atingidos pelas águas da barragem da Itaipu binacional, sofria o rigor manu militar da época sendo condenado a dois anos de prisão por proferir palavras consideradas ofensivas ao governo de exceção de então [1]. Tempos difíceis, a sentença prolatada por um tribunal militar colocava em xeque toda a estrutura constitucional e jurídica do país desse período.

O jovem daquela época, vencida a ditadura, com as ferramentas da teologia da libertação, de Gustavo Gutierrez e a filosofia do intelectual orgânico das superestruturas [2], de Antonio Gramsci, de ontem, incorporadas à antropologia participativa, de Bronislaw Malinoviski e o direito zetético, de Theoodor Viehweg, de hoje, desde há muito nutria uma visão crítica ao Direito. Mais que isso, sentia-o brotar das ruas, pelas estradas, nos acampamentos de Ronda Alta e Encruzilhada Natalino que participou empunhando estandartes.

Passados 30 anos, o olhar desde jovem não perdeu a capacidade de se indignar e ainda se questiona sobre essas mesmas bandeiras. Em meio aos indígenas e camponeses de Mato Grosso do Sul, a monografia transformada em livro "As ocupações de terra e a produção do Direito" é parte desse olhar e expressão que retrata a busca, não por algo simplesmente achado na rua; mas algo que está sendo construído, pelas estradas, nos becos, no meio dos excluídos. Ainda que juízes e doutores se neguem a percebê-lo.

Longas conversas, sob barracos de lona, sob o calor escaldante, na roda do tererê, nas barrancas do rio Paraná, nos acampamentos da solidão. Uma brisa dialética empurra a bandeira no alto do mastro, vermelha, como o sangue dos que tombam diuturnamente. Algo maior, entretanto, percebe-se, está brotando, e já atravessa a longa noite da escuridão e da ausência pelos contornos da história. Não num luminar kelsiano, onde não há espaço para o subjetivo e o valor ético da justiça [3], mas numa visão crítica, que encara os problemas pela fenda do barraco, pelo olhar retraído da criança violentada pela fome.

Longas conversas de formação e informação; trocas, saberes, línguas e idiomas ainda desconhecidos. Morrem esquecidos da Justiça e do Direito todo dia, toda hora. Mas, insiste o sonhador, algo está acontecendo por entre cercas e pastos, sob a mira dos jagunços e o casco do boi nelore. O agente, o pesquisador, o militante, o estudante de Direito, sentado, sob a arvore, junto aos índios Ofaié, o resto de uma tribo de Brasilândia, alimenta o sonho de transformar aquele ato, alternativo quiçá, em algo perene, que se modula e comove com as transformações que acontecem na base da sociedade.

Sabe das dificuldades entretanto. David Hervey, em uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural na pós-modernidade, afirma que nunca é fácil elaborar uma avaliação crítica de uma situação avassaladoramente presente [4]. Porém, há de se acreditar: é no corpo-a-corpo desse teatro dos desencontros humanos e suas misérias levadas cotidianamente aos tribunais, que a ação consciente do ser humano se sente chamada participar, uma vez que qualquer decisão tomada depende do conhecimento que dessa realidade o Direito tem.

Um Direito assim concebido, não de outra forma, só pode ser entendido no conjunto de uma ampla luta social e da crítica teórica [5]. Para além de uma concepção e natureza meramente econômica [6] e da crença que sua autoridade repousa somente no Estado [7], ou de que ele seja um instituto pronto e acabado, tão-somente minimizador de conflitos. De natureza diversa, o Direito pode ser entendido como resultado de uma construção, humana provisória e falível, o que sugere renovação permanente.

É isso que anima a personagem de nossa história e sua experiência social. É com satisfação que aquele jovem dos anos 70 se vinga dos velhos manuais (sempre novos, pois constantemente reeditados por editoras profissionais que controlam o mercado dos operadores do Direito) e percebe com óculos de alcance, alargamentos que ecoam na voz de advogados e magistrados e suas sentenças que desafiam o status quo e rompem com desgastadas bitolas dogmáticas [8].

O Direito que irrompe por entre os barracos de lona e o humor fétido que brota dos viadutos e seus indigentes, no espaço instituinte do não legalizado, através de suas lutas e bandeiras, também ele se insere no projeto de transformação institucional. Ainda que a contragosto de uma pseudo neutralidade científica [9], duramente reprimida, ainda assim, desnuda a hipocrisia e, sob o impulso de manifestações que nada têm de anômicas, desafiam e empurram as estruturas para o avanço [10], abrindo espaço no campo do saber instituído da ordem jurídica vigente.

Com sabedoria já foi escrito que, quando buscamos definir o que seja o Direito, estamos antes perguntando o que ele vem a ser [11], o que equivale a dizer que ele é fruto também das transformações incessantes que a sociedade experimenta ao longo da história. Razão que nos aponta para a construção de um Direito a partir de diversos olhares e fontes que concorrem para sua produção.

Ao buscar superar o entendimento individualista e regulador do regime jurídico, o Direito achado na rua, assim, amplia a função da norma para o sentido do justo. E assim contempla uma ampla e ameaçadora realidade que rondam as cercas de fazendas e os muros dos que tem posses.

No século passado, a pele negra de uma pessoa era razão e motivo para a escravidão. Isso era absolutamente legal. O Direito daquele tempo protegia o sistema escravista. A partir do momento em que os interesses da produção aconselharam a eliminação do sistema de compra e venda de escravos, o Direito mudou. Todavia, os quilombos e os abolicionistas tiveram papel importante para consumação desse Direito novo [12].

É sabido que as leis não foram produzidas nem pela plebe, nem pelo campesinato, nem pelo proletariado, e sim, totalmente pela burguesia [13]. Por isso, inquieta-se o jovem de nossa história, para que possa trilhar um caminho novo e revestir o Direito de uma nova roupagem a partir da gênese a ser construída a partir do lastro social que deita raízes nos embates e conflitos do dia a dia: é preciso que não estejamos surdos (e tampouco mudos) aos reclamos da sociedade.

A experiência social do aluno e do jovem, nesse ponto se encontra na função social do advogado [14].Ainda que não sejam os principais agentes das transformações sociais, os operadores do Direito podem dar uma inestimável contribuição no avanço das lutas populares e na consolidação das conquistas trilhadas [15].

O advogado pode atuar individualmente nas ações que a sociedade lhe atribui, ou atuar nas ações coletivas, numa intervenção solidária e organizada, co-participante do contexto de relações complexas das estruturas sociais modernas [16].

Num amplo campo de batalha e de infinitas possibilidades, o Direito achado na rua e seus adeptos são chamados a ousar, experimentando os limites institucionais do exercício de sua profissão/militância.

Em outras palavras: são chamados a se colocar ao lado dos "sem" (sem-terra, sem-casa, sem-saúde, sem-segurança, sem-voz...) para melhor ouvi-los e assim perceber que também eles são produtores de Direito, desde o consuetudo até as elaborações mais complexas que expressam a práxis vivida.

Os acampamentos e as aldeias, agora são palco e fóruns de audiências públicas, onde legisladores e magistrados, atentos, exercitam uma nova capacidade, a de articulação jurídico-política sobre realidades que se lhe apresentam agora mais palpáveis. Desejosos de intervir, percebe o jovem num lampejo teleológico e paradisíaco que esses senhores já não usam toga e todos se esforçam para elevar ao status do Direito, as exigências e carências que ouvem.

E porque viveram e foram mantidos por cinco séculos à margem e distantes do acesso à Justiça [17], pacientemente se acomodam em círculo, no centro da aldeia, e falam pausadamente, descrevendo para aqueles doutos Senhores os fundamentos do mundo da yvý marãeý (terra sem mal) que sonham ainda ser possível construir a partir dos braços, nem sempre tão solidários, das leis e do Direito.


(*) Texto apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Extensão Universitária a Distância, Introdução Crítica ao Direito, da Universidade de Brasília-UNB, em 03 de junho de 2003, pelo neófito advogado Carlos Alberto dos Santos (OAB 10179/MS).

[1] - Dutra, Carlos Alberto dos Santos. Razão e Utopia: textos rebeldes, Andradina: LCArtes Gráficas, 1998, p. 61.

[2] - Vasconcelos, Carlos Eduardo. Classes e grupos sociais. In Introdução crítica ao Direito. Unb, p. 81.

[3] Kelsen, Hans. Apud Ferracine, Luiz, In Dutra, Carlos Alberto dos Santos. As ocupações de terra e a produção do Direito. São Paulo: Scortecci, 2002. p. 85.

[4] - Harvey, David.Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1989. p 301.

[5] - Souza Júnior, José Geraldo de. O Direito achado na rua: concepção e prática, In Introdução crítica ao Direito, UnB, p. 7.

[6] - Farias, Maria Eliane Menezes de. As ideologias e a filosofia. Direito: positivismo e jusnaturalismo. Nova ciência antidogmática do Direito. In Idem, p. 15.

[7] -Bisol, Jairo. Dogma e dogmatismo, In Idem p. 17.

[8] - Lyra filho, Roberto. Por que estudar Direito, hoje?, In Idem p. 23.

[9] - Japiassu, Hilton. O mito da neutralidade científica. Apud. Dutra, op. cit., p. 16.

[10] - Sant'anna, Alayde. Pó uma teoria jurídica da libertação., In Idem p. 28.

[11] - Lyra Filho, Roberto. Direito e Lei. In Idem p.33.

[12] - Dutra, Carlos Alberto dos Santos, op. cit. p. 86.

[13] - Foucalt, Michel. Um diálogo sobre o poder. Apud. Dutra, op. cit. p. 8.

[14] - Souza Júnior, José Geraldo de. Função social do advogado. In Introdução ..., op. cit., p. 127.

[15] - Pressburger, Miguel, Apud. Dutra, op. cit., p. 23.

[16] - Souza Júnior, Ibidem, p. 129.

[17] - Cappelletti, Mauro e Garth, Bryant, In. Dutra, C. A Santos. Jornal Dia a Dia, Brasilândia, 16-24.Mar.1998


Autor: Carlito Dutra


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