EM MEIO À ENCRUZILHADA E À CRUZ: O HIBRIDISMO RELIGIOSO RETRATADO NA OBRA O COMPADRE DE OGUM



"Só na Bahia, terra dos Orixás, abençoada por todos os deuses, o batizado de um menino de olhos cor do céu poderia trazer tanta surpresa e diversão ao leitor" (BARBOSA. Rogério Andrade, 1995). Este é o primeiro parágrafo da apresentação da obra O Compadre de Ogum de Jorge Amado, a qual com poucas palavras deixa claro o que o leitor encontrará no percorrer das suas páginas: um entremear de culturas que deixa sinais concretos das experiências vividas e que ficaram plasmadas em nossa memória.

O Compadre de Ogum, inicialmente, era um capítulo do romance Os pastores da noite, escrito no ano de 1964. Este capítulo, com a magia própria da escrita amadiana, não se satisfaz em ser parte, quer ser o todo e adquire vida própria, saltando das páginas de Os pastores da noite para as mãos dos leitores como mais uma das importantes obras da galeria amadiana.O Compadre de Ogum é lançado no ano de 1995, e em tom alegórico [1] tem como proposição servir de referência para a sociedade baiana e brasileira na valorização da "cultura do povo [2] " e na espiritualidade da população afro-descendente dentro de uma sociedade pluricultural.

Em cada linha de sua obra, Jorge Amado traça fios que deixam marcas visíveis de seu papel como escritor tendo como fonte de sua ficção a realidade, "essa realidade que ele não aprendeu nos livros, mas viveu intensamente" (SANTOS, 1997, p.73). É através dessa historiografia "consciente" que Amado propõe a (re)descoberta e valorização do nosso "jeito de ser", nossa identidade:

(...) Olhos azulados qualquer menino pode ter, mesmo sendo o pai negro, pois é impossível separar e catalogar todos os sangues de uma criança nascida na Bahia. De repente, surge um loiro entre mulatos ou um negrinho entre brancos. Assim somos nós, Deus seja louvado! (AMADO, 2006,p. 10).

A luta contra o preconceito racial, social e religioso e a valorização da condição mestiça de nossa nacionalidade constituem o ápice da mensagem descrita em sua obra. Mestiço aqui é apresentado não com o teor pejorativo que adquiriu ao longo do tempo desde os estudos de Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Tobias Barreto [3] , mas no sentido literal da palavra: "aquele que provém de indivíduos pertencentes a raças diversas de uma mesma espécie" (Dicionário Aurélio séc. XXI). Como o próprio Jorge Amado afirma:

Não há no Brasil nenhuma tendência que impeça a mistura das raças, mesmo entre aqueles que defendem ao máximo a pureza do sangue africano(...), negro de puro sangue não existe no Brasil, da mesma forma que não existem brancos(...): nós não somos os filhos da primeira geração(...), aqui todo mundo se miscigenou(...), a miscigenação continuará e será cada vez maior, criando, uma nação cada vez mais mestiça (AMADO, Jorge. In: RAILLARD, 1990, p.93 – 94).

Em suas obras, Amado deixa clara sua posição de grande divulgador da "mestiçagem" não só das raças, mas também das religiões. Seu posicionamento é tão evidente que, muitas vezes, não precisa ser afirmado, basta ser percebido, reconhecido. De forma irônica, crítica e carnavalizada [4] , Amado nega esta ordem pré-estabelecida e propõe outro modo de percepção, seduzindo o leitor e direcionando-o para o caminho contra o preconceito e a repressão, na construção de uma civilização própria, definindo esse entre-lugar da cultura baiana como espaço de (re)invenção de uma outra concepção identitária, ou seja, a identidade como rizoma [5] .

É perceptível e indiscutível que essa "mistura" ainda não se realizou entre nós de forma harmoniosa, o convívio com o outro não significou a falta de conflito, no entanto, o escritor Jorge Amado, através do veículo literário, busca esse ponto de convergência entre as culturas e conduz para esse espaço de tensão, a polêmica discussão sobre o "sincretismo" ou hibridismo religioso.

No intitular da obra O Compadre de Ogum, é possível notar, sobretudo, que o autor aponta para a inter-relação entre candomblé e catolicismo que será traçada no desenrolar da novela. Logo nos primeiros capítulos uma grande dúvida angustia o negro Massu, pai de Felício, "menino de onze meses feito e ainda pagão" (AMADO, 2006, p. 14). Quem escolher para padrinhodo seu filho em meio a tantos amigos? A avó paterna, D. Veveva, exige o batismo do neto.

Na voz do narrador, Jorge Amado proclama a convivência entre todos os credos, é Pé-de-Vento, um dos amigos de Massu que propõe o batizado de Felício em todas as religiões, sendo assim, escolheria um padrinho para cada uma delas e o problema se resolveria. No entanto, o narrador onisciente, fala por Massu: "bastava com o católico e o candomblé que, como todos sabem, se misturam e se entendem ...Batizava no padre, amarrava o santo no terreiro" (AMADO, 2006, p. 29).

Mas, como exímio conhecedor dos segredos e mistérios da Bahia, Amado transcende as páginas de O Compadre de Ogum, para que o próprio Ogum anuncie a solução do problema: "(...) já decidi. Ninguém vai ser o padrinho do menino. O padrinho vou ser eu, Ogum. – E riu." (AMADO, 2006, p. 38). O riso de Ogum é também do autor, que ironiza surpreendendo leitores e personagens da própria obra, como Mãe Doninha, que declara: " – Nunca vi disso, é a primeira vez... Orixá ser padrinho de menino, santo tomar compadre, nunca ouvir falar..." (AMADO, 2006, p.39).

A experiência proposta pelo narrador insere-se num contexto de luta e apropriações simbólicas entre o mundo objetivo e o espaço subjetivo da história que vai sendo construída, mostrando que algo novo emerge na busca da reafirmação de um grupo social excluído. Através de uma linguagem que legitima os valores ancestrais da cultura negra no Brasil, o autor não nega que o modelo eurocêntrico calcado em interesses e valores hegemônicos continua a marginalizar a cultura de matriz africana como se observa, por exemplo, na dificuldade encontrada para que Ogum pudesse adentrar a Igreja do Rosário dos Negros e assim, batizar o menino Felício: "Para ser padrinho de batizado é preciso ir à igreja, estar presente no ato, segurar a vela, rezar o credo. Como poderia Ogum fazê-lo?" (AMADO, 2006, p.44).

A crítica aos preceitos do catolicismo aparece na figura de seu Inocêncio do Espírito Santo: sacristão, bicheiro e devedor de grandes favores ao amigo Massu, o qual ajudara-lhe a curar doença venérea que contraiu ao usar a sacristia como espaço de "luxuria". Inocêncio auxilia no plano, mentindo ao padre que o padrinho da criança chama-se Antônio de Ogum. Como se pode perceber o próprio nome do padrinho já denota a união sincrética [6] proposta por Amado – Santo Antônio e Ogum:

E, [Ogum] [7] de súbito ao fitar o sacerdote, ele o reconheceu: era seu filho Antônio, nascido de Josefa de Omolu, neto de Ojuaruá, obá de Xangô. Nesse podia descer, estava destinado a ser seu cavalo, não fizera as obrigações no tempo devido, mas servia numa emergência como aquela. Sagrado padre, de batina, mas nem por isso menos seu filho. Ao demais, não havia jeito nem escolha: Ogum entrou pela cabeça do padre Gomes (AMADO, 2006, p.91).

O padre Gomes é a representação da força da memória ancestral africana que mesmo escondida, negada, constitui a sua gênese: filho de Josefa de Omolu [8] e tendo como avô Ojuaruá, Oba de Xangô [9] ; Gomes quando criança freqüentara o candomblé do Engenho Velho, antecipando o desfecho da história: "não tivesse partido para o internato do seminário, certamente teria feito ou assentado o santo, por sinal Ogum" (AMADO, 2006, p.55).

Os personagens da obra apóiam-se na dinâmica da identificação; trata-se de um processo vinculado ao cotidiano, as dimensões essenciais da vida, sedimentando uma postura contra a hegemonia cultural e política que se pretende dominante. Amado, faz uma leitura de um hibridismo cultural "que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta" (BHABHA, 1998, p.22), estabelecendo as condições discursivas que garantam o significado e os símbolos da cultura para que possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo.

Em O compadre de Ogum, Amado possibilita ao leitor perpassar as entrelinhas do discurso e observar possibilidades que "representam o resultado de grandes sínteses integrando elementos de várias procedências que formam um novo todo [10] "

 

[...] e como ignorá-lo? – Estar a cidade cheia de candomblés [...] funcionando o ano inteiro, terreiros batendo todas as noites formigando de crentes. Dos mesmos crentes a encherem sua igreja na missa dominical, [...] a igreja era como uma continuidade do terreiro de santo, [...] (AMADO, 2006, p.58).

 

Jorge Amado entrelaça fios de formas diversas com finalidade definida, instiga e atiça, para que "raspada a tinta da escrita fácil e divertida, pelo leitor atento na busca do que se esconde por sob as cores luminosas," (SEIXAS, 1996, p.93) nos reflexos presentes na escrita desse Obá de Xangô. Dessa forma, sugere o duplo pertencimento às duas religiões, o catolicismo e o candomblé. Pois, assim como nas palavras de Vilson Caetano, na obra amadiana "o sincretismo não é superficial, ele é intrínseco. [...]É impossível não perceber santos e orixás caminhando de mãos dadas, unidos na mesma fé, no mesmo sentimento religioso do povo que lhes dá vida [...]" (SOUSA, 2003, p.14). Embora, haja diferenças visíveis entre o catolicismo e o candomblé, permanece em ambos inúmeras correspondências e semelhanças.

 

A obra amadiana constitui-se como "terreiro" híbrido, porém apresenta as rasuras pertinentes a essa questão, "o narrador dos romances de Jorge Amado simula a perspectiva do dominador" (SEIXAS, 1996, p.87), contudo não disfarça os preconceitos ainda existentes.

A figura mitológica do orixá Ogum aparece na obra com a função de protagonista do enredo, é Ele, o dono da força propulsora que desbrava os caminhos proclamando a não negação do elo entre passado e presente, reconhecendo "[...] identidades que foram sufocadas ou mal assumidas [...]" (CANCLINI, 2005,197). O terreiro, a igreja, as ruas compõem o cenário, no qual, posições antagônicas confluem, instituindo uma nova ressonância ou legitimidade cultural, quando é possível perceber acontecimentos até então escondidos e negados:

Foi quando se viu o mais inesperado e extraordinário. O padre Gomes extremeceu dentro da sua batina, saltou de seus sapatos, vacilou nas bases, rodopiou um pouco, semicerrou os olhos. [...] O padre murmurava qualquer coisa, Mãe Doninha, respeitosamente, colocou-se a seu lado, e disse uma saudação em nagô (AMADO,2006, p.90).

O narrador da novela amadiana desestrutura convicções através de vozes que ecoam do silêncio das palavras não ditas, mas expressas nos gestos: "Mãe Doninha fazia promessas para Senhor do Bonfim para que tudo corresse bem" (AMADO, 2006, p.79). Com isso, Amado ressignifica a cultura negra produzida no Brasil por africanos e seus descendentes, num processo de construção coletiva de identidades através de discursos e ações, que revelam a afirmação de uma identidade étnica, fomentada na constante (re) elaboração de um referencial religioso que relaciona a ancestralidade africana à vivência afro-brasileira enraizada na comunidade baiana.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Marcello Ricardo. Religião para todos. Maceió: Sergasa, 1999, p.98.

AMADO, Jorge. O compadre de Ogum. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. AMADO, Jorge.

 

_____. Os Pastores da Noite. São Paulo: Martins, [s.d.].

 

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: EUNB, 1999.

BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: Rito Nagô. São Paulo: Nacional, 1978.

 

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.

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Autor: Silvânia Almeida


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