Para Além da Militância Politizada e da Antropologia ''Ingênua''



*Texto escrito a partir de conversa com a professora Sueli Aparecida Gonçalves

A questão do multiculturalismo, bem como o combate ao racismo e ao preconceito, mesmo em âmbito institucional, caminham hoje num campo minado circunscrito entre a militância politizada – que parte da situação do hoje e do agora como se fosse absoluta e atemporal - e a antropologia "ingênua", entendida como aquela que reitera mitos e reafirma o senso comum.

Uma nação soberana, com uma cultura rica, construída ao longo de mais de quinhentos anos, que necessita criar leis para garantir o ensino de história da África e afro-brasileira ("africanidades"), bem como o ensino – em suas redes e sistemas de educação – de cultura indígena, é uma sociedade que não trata a diversidade étnico/cultural como patrimônio, mas como fardo.

Este tratamento deve ser compreendido como fruto de complexo processo histórico, que levou à negação de alguns elementos constituidores da sociedade brasileira e à substituição dos mesmos por modelos importados.

Paralelamente a este processo de importação, que desloca o foco da formação da nossa cultura do Brasil para a Europa ou Estados Unidos, há um processo intestino de negação, acobertamento ou de maquiagem da nossa própria história, desencadeando uma (re)leitura romanceada do nosso passado enquanto povo, enquanto nação.

Ambos os processos são fruto de uma vontade consciente, expressa com mais vigor após a proclamação da República, em 1889, de "embranquecer" o Brasil. Este "embranquecimento" não se esgotou no processo de trazer imigrantes brancos (principalmente italianos, portugueses e espanhóis) para substituição da mão de obra negra, mas desencadeou também uma alteração nos padrões culturais vigentes.

Devemos lembrar esforços da primeira república, como a "regeneração" do Rio de Janeiro que "empurrou" os pobres para os morros, e a proibição de tudo o que remetesse à cultura popular, como o batuque, a capoeira e até o violão.

Foram alguns leitores/comentadores de Gilberto Freire que desenvolveram o mito do "brasileiro cordial" o qual, por sua vez, levou à crença de uma "escravidão mais branda" ou da construção efetiva de uma democracia racial, da ausência de preconceito ou de racismo em nosso país.

Casa Grande e Senzala, clássico da antropologia brasileira, lançado em 1933, tem como principal premissa o fato de que a Casa Grande é uma estrutura que agrega desde a família patriarcal ampliada (contando com um grande número de protegidos e de agregados) até a escravaria, já que a senzala funciona no andar térreo.

A estrutura arquitetônica do edifício seria também uma metáfora da nossa estrutura social, formada por pessoas de todas as origens étnicas, com um constante agregar de culturas e de identidades.

Para Freire, a questão da miscigenação é posta como um contraponto às teorias vigentes na época – desde Gobineau – da inferioridade dos mestiços. O autor aponta a diversidade étnica e cultural do nosso povo como um fator de riqueza e vitalidade da nossa sociedade.

Indo mais além, um moderno leitor de Freire, Richard Parker, em Corpos, prazeres e paixões, a cultura sexual no Brasil contemporâneo, discorrerá sobre as ligações físicas entre as etnias, ou seja, do contato entre o corpo do branco e o corpo do indígena, entre o corpo do branco e do negro.

Retomando uma imagem muitas vezes explorada pela nossa literatura, mostrará como se formou um duplo padrão de moralidade em nossa sociedade onde o homem – elemento ativo, que detém o pênis, "arma" e instrumento de agressão metafórica – inicia-se sexualmente de uma maneira muito precoce, muitas vezes dentro de casa com as escravas (ajudando inclusive a aumentar o "rebanho" do pai) e a mulher, ao contrário – que possui a misteriosa vagina, a qual por causar medo tem de ser dominada, contida – é mantida reclusa. A casa grande se transforma, na leitura feita por Parker, na fortaleza do homem e na prisão da mulher, a qual passa da tutela do pai para a do marido.

No universo colonial/imperial há vários padrões de conduta sexual, que se refletem na sociedade:

Há o patriarca, macho dominador/provedor todo-poderoso, senhor inconteste de seu "rebanho" (escravaria), filhos, esposa, afilhados e agregados. Abaixo dele vem os filhos homens, igualmente poderosos, a quem cumpre aumentar o rebanho e as propriedades. A esposa e as filhas mulheres são submissas, sendo que cabe à primeira vigiar e zelar pela virgindade e pureza das segundas, ocultando delas todo conhecimento e conteúdo vagamente sexual, mesmo a menstruação.

Como padrões "desviantes", mas não ameaçadores, temos o "veado" ("biche", veado fêmea em francês ou então "bicha", como as lombrigas) que acaba sendo submisso e submetido como as mulheres, pois encarado como passivo, bem como a "sapatão" (ativa) e a "sapatilha" (mais feminina, passiva).

Como figuras "terríveis" há a "mulher dominadora", que subverte a "ordem normal" das coisas e que adquire características que deveriam ser exclusivamente masculinas e o "corno", homem emasculado metaforicamente pela traição da mulher (que "lhe põe chifres"). Para não se submeter à pecha de "corno" é que muitos senhores acabam aceitando como seus os filhos havidos da esposa com os escravos.

Os filhos havidos dos senhores com as escravas nascem nas senzalas e são escravos, portanto negros, os filhos havidos da senhora com os escravos nascem na casa grande, são livres, e portanto brancos.

O caráter de fortaleza da casa grande, com as suas alcovas (quartos sem janelas, para as mulheres) é que teria reforçado o dito segundo o qual "entre quatro paredes, tudo é permitido".

A ligação entre o branco e sua ama de leite (inicialmente indígena e depois negra), que o carrega no colo e conta histórias, prepara o terreno para suas primeiras incursões sexuais. Paradigmática é a história do Menino de Engenho, deJosé Lins do Rego,que se inicia sexualmente na própria casa, com a negra Luiza.

Há no Brasil, de maneira inequívoca, o surgimento de uma erotização e fetichismo, ligados à escravidão. A fantasia de dominar e de conter, de possuir outrem ou de pré-determinar o seu desejo é ainda hoje muito presente.

A erotização das negras e mulatas, com grandes ancas e os movimentos insinuantes favorecidos pelo samba, e dos homens negros, como super dotados e bons reprodutores, remonta ao período colonial, onde tanto escravas quanto escravos eram também usados para satisfazer sexualmente aos seus senhores e às suas senhoras. A literatura naturalista é pródiga em exemplos, especialmente Júlio Ribeiro que escreveu A Carne e Adolfo Caminha que escreveu O bom crioulo, em 1895, primeiro romance brasileiro a tratar abertamente a questão da homossexualidade.

Parker fala do caráter lubrico e libidinoso com que os inquisidores interrogavam os denunciados, a maneira sexualizada com que buscavam com que fossem revelados mesmo os menores detalhes das suas "perversidades" . O "catolicismo adocicado da tradição portuguesa" (sic.), ao mesmo tempo que condenava o sexo, permitia o carnaval (carnivalis, o "adeus à carne", última oportunidade de pecar antes da quaresma). Por pior que fosse o pecado, o penitente sempre era absolvido – mediante a confissão – pois a vergonha de revelar os atos praticados era menor que a culpa que lhe era imposta pela igreja. Criava-se um círculo vicioso em que o padre incitava o penitente a revelar os detalhes mais sórdidos e mais obscuros e este, por sua vez, alimentava a curiosidade e a lubricidade do seu confessor.

Para além de Gilberto Freire, Richard Parker retoma os "mitos de origem" ao discorrer sobre a carta de Caminha ao rei de Portugal, onde este realça a "inocência" dos "selvagens nus" com "as vergonhas à mostra", brincando como crianças. A visão é edênica, a redescoberta do paraíso.

Nesta mesma linha escreve Barleus, em 1660, o autor da frase de que "ao sul da linha equinocial não se peca". No século XX a frase tornou-se "não existe pecado do lado de baixo do equador."

Como os indígenas são "inocentes" e "puros", são equiparados às crianças e, desta maneira, justifica-se ideologicamente a "tutela" dos mesmos por parte dos brancos, bem como o gerenciamento das terras e dos recursos naturais.

A esta primeira impressão, de inocência e de pureza, contrapõe-se a carta de Américo Vespúcio a Lourenço de Médicis, onde é trabalhada a questão do tabu mais sacramentado, o canibalismo. Há a partir daí também uma "infernalização" do mundo tropical, a qual justificaria igualmente o genocídio que se perpetrou em relação às culturas indígenas.

Seriam estes "mitos de origem" a serem revisitados no carnaval.

As possibilidades da construção de uma democracia racial, em nossa opinião, foram truncadas pela maneira pela qual a colônia, repentina e intempestivamente, torna-se o centro do Império Colonial português, em 1808.

Se tivemos, durante 300 anos uma realidade em que Portugal pouco ou nada se importava com as relações entre as classes sociais e as etnias na colônia - até porque éramos uma colônia de exploração e que, portanto, apenas existia para ocasionar lucro à metrópole – com a vinda da família real e mais 15.000 pessoas oriundas da elite lusitana, passamos a ser o centro das atenções.

D. Amélia, segunda esposa de D. Pedro I, chamada de A imperatriz do fim do mundo por Ivanir Calado, escreve a uma amiga que só distinguia as escravas das damas da corte pois estas usavam jóias. Este fato, aliado ao aludido por Lília Moritz Schwarcz em As barbas do imperador, de que havia barões negros e mesmo índios, nos mostra uma corte tão pluriétnica quanto o restante da população brasileira.

Longe de estarmos tentando reforçar o mito da democracia racial, necessitamos ponderar que havia um "embranquecimento" a ser perpetrado, se o Brasil desejasse se equiparar às "nações desenvolvidas" e, neste sentido, coube à primeira república esta tarefa.

Com o final do Império e a decadência de grande parte da aristocracia rural, há o fenômeno do surgimento, ao mesmo tempo, dos Sobrados e Mucambos (Gilberto Freire, 1936).

O sobrado, ou seja, a casa na cidade do antigo oligarca rural, não é mais tão grande e nem tão abrangente quanto a casa grande. Ele consagrará e abrigará no seu interior o modelo de família burguesa, composto por um casal, seus filhos e uns poucos serviçais. Como não existe mais a senzala, "harém" do senhor e dos seus filhos, estes passam a recorrer aos serviços de profissionais, instaladas nos seus bordéus.

Os mucambos, construídos de madeira ou de taipa e cobertos de palha, surgem nas regiões periféricas das cidades, recém desmatadas. Ali, em precariedade absoluta, viverão os ex-escravos, aos quais a alforria garantiu os direitos civis mas não a cidadania.

Esta bipolaridade faz surgir duas cidades dentro de uma mesma, como demonstrou José Roberto do Amaral Lapa em A cidade os cantos e os antros, ou seja, a cidade da burguesia, onde se cultivam as letras e as artes, o bem vestir, bem falar e bem viver, e a cidade da pobreza, onde apenas existe o sobreviver.

Surgem as praças, espaços públicos primorosamente arborizados e iluminados, contendo coreto para apresentação de orquestra ou banda, avenidas e bulevares. Em contrapartida, as casas perdem as varandas – espaço de transição entre o "dentro" e o "fora", o público e o privado.

Além disso, os espaços interiores também serão hierarquizados: há a sala de visitas, que se destina aos visitantes "de cerimônia", a sala de estar para o lazer da família, a sala de jantar para as comemorações e a cozinha, espaço mais democrático, onde ocorre de fato a socialização e a convivência entre as classes.

Esta convivência entre as classes e as etnias se espelha na culinária, quando alimentos tipicamente europeus casam-se aos pratos preparados com ingredientes da culinária indígena ou africana.

Na periferia, longe das praças e bulevares, os terreiros, sempre ocultos no fundo das casas, serão os espaços de socialização das camadas populares onde, longe do olhar das autoridades, acontecerão os rituais afro-brasileiros (umbanda e candomblé) bem como as rodas de samba e a capoeira.

Sobre as rodas de samba (e o samba de roda) há de se afirmar que espelham um padrão civilizatório, ligado às danças circulares. Este padrão se repetirá também na batucada, na capoeira e mesmo nas giras.

É conhecida a passagem segundo a qual Ruy Barbosa, ministro da fazenda de Deodoro da Fonseca, teria mandado queimar todos os documentos que aludiam à escravidão, visando, desta maneira, "apagar para sempre esta mancha da nossa história".

Cabe, no momento atual, realizar exatamente o trabalho inverso, ou seja, recuperar a memória – real e não imaginada, idealizada – das práticas e das vivências do Brasil pré-"embranquecimento". Este é o papel de quem desejar extirpar a raiz do preconceito, colocando-a a nu, e não ocultando-a sob a terra, pois se cortamos o caule e as folhas de uma árvore, mas deixamos a sua raiz sob a terra, ela pode sempre renascer...


Autor: Luiz Carlos Cappellano


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