O Grande Mestre travessou a maresia...



Por muito tempo, e tive a oportunidade de dizer isto a ele várias vezes, lamentei não ter conhecido o mestre Antonio Vieira muitos anos antes, ao que ele respondia sorrindo: "Você precisaria ter chegado mais cedo ao Maranhão". Antonio Veira foi uma dessas pessoas raras que cruza o nosso caminho e transforma nossa maneira de ver o mundo.

Foi apenas no dia 4 de dezembro de 2001, ano em que cheguei ao Maranhão, que conheci pessoalmente Antonio Vieira através do amigo em comum, Rodrigo Caracas. O mestre trazia nas mãos um exemplar do CD Antoniologia Vieira, uma linda homenagem com arranjos de Adelino Valente e interpretações de Zeca Baleiro, Letícia Valente, Célia Maria, Tutuca, Josias Sobrinho entre outros artistas admiradores. Ao me presentear, autografou o libreto assim: "Ao Renato Manzano para que sempre se lembre da música do Maranhão". Como eu poderia esquecer a música do Maranhão e o "dono da cocada"?

Fiquei encantado com Antonio Vieira! Um menino, então aos oitenta e um anos! Sua energia me contagiou, sua história me comoveu, seus "causos" me fizeram rir, e muito!, e sua persistência, àquela idade, foi e continua sendo, uma lição que aprendi e jamais esquecerei: não há idade para realizações. Há sonhos aos oito, aos dezoito e aos oitenta. E isto também aprendi com Antonio Vieira: quanto mais maduros somos, melhor podemos saborear a realização dos nossos sonhos.

Foi assim, pelas mãos do Rodrigo Caracas e do próprio Antonio Vieira, que ouvi atentamente a apresentação do conceito, ainda muito inicial, do que viria a ser o grande resgate da obra do mestre: o "Projeto de Recuperação e Registro Fonográfico da Obra de Antonio Vieira", conduzido pela Amarte e patrocinado pela Vale – empresa para a qual eu trabalhei, em São Luis. Foi paixão à primeira apresentação!

Lembro-me como se fosse hoje da excitação que experimentei quando Antonio Vieira me mostrou um pequeno caderno já bastante combalido, com as letras de todas as canções que compusera. Fiquei estupefato! Ali, havia mais de 300 canções inéditas, além daquelas já conhecidas do povo maranhense, como o Poema para o Azul, que sempre me comove, a deliciosa Cocada, Na cabecinha da Dora, entre outras...

O projeto está entre as coisas que mais adorei fazer na vida; essas coisas que fazem a gente se sentir vivo, feliz e motivado. Envolvi-me muito além da mera gestão do patrocínio. Acompanhei gravações, fiz muitas sugestões, acatadas ou não pelo próprio mestre e pelo profissionalíssimo Rodrigo Caracas. Letícia Franco, colega e amiga dos melhores e piores momentos, a jornalista maranhense Vanessa Tavares, a publicitária Vanda Torres, entre outros profissionais, estavam conosco no projeto e também se apaixonaram pela obra do mestre, que já conheciam melhor do que eu.

O projeto cresceu. O que era para ser um libreto com cifras e um conjunto de CDs, transformou-se em um box com um livro contando a vida e a obra do magnífico compositor, outro volume com as letras dos sambas, das canções, das toadas e das valsas – perólas até então raras e que, a partir do projeto, ganharam o mundo. Depois disso, decidimos elaborar um CD de trabalho, reunindo canções escolhidas pelo próprio mestre. Veio o show de lançamento, o show em praça pública, a exposição do trabalho de Antonio Vieira (onde, sugeri, o caderno todo surrado com as canções escritas foi apresentado em uma vitrine de honra), as reportagens, um belo Repórter Especial da TV Mirante, o prêmio de Personalidade Cultural do Ano, a homenagem da Orquestra Sinfônica Brasileira, mais shows, convites para se apresentar em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Brasília... E qual não foi minha alegria, quando vi o mestre estampado em jornais como o Correio Brasiliense, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, entre outros, ganhando, ainda assim em dimensão diminuta em face à importância da obra, mas, finalmente, ganhando contornos próximos do que seu legado merecia. Aquele ano, culminou com o contrato com a gravadora Eldorado e o convite para que uma de suas mais alegres canções, Tem quem Queira , fosse inserida na trilha sonora da novela de estrondoso sucesso da Rede Globo, "Da cor do pecado", do então estreante em novelas mas já consagrado roteirista de cinema, João Manoel Carneiro.

Foram dois anos de trabalho intenso no projeto, lançado em 2003. Rodrigo e a maravilhosa equipe reunida por ele, trabalharam incansavelmente. Todos se espantavam ao ver a energia do mestre, então com 83 anos. Eram horas e horas a fio no estúdio, produzindo para os 16 CDs gravados no período, sugerindo para os arranjos, descontraindo e brincando com todos...

Deixei o Maranhão no início de 2005, e vim para o Rio, trazendo comigo uma paixão incontida por essa terra abençoada, Nicole, minha filha nascida em São Luís, excelentes lembranças e muitos, muitos amigos. Entre eles, digo com orgulho, Antonio Vieira.

Não deixamos de nos relacionar. Viajamos algumas vezes juntos. Lembro-me de uma vez em que voltava de São Luís para o Rio, após uma estada a trabalho... Sabendo que o mestre viajaria no mesmo vôo até Brasília, de onde iria para São Paulo fazer um show, marcamos assentos próximos para conversarmos durante a viagem. Eu, que sempre tive medo de voar, comentei da minha paúra com o mestre, ao que ele respondeu: "Manzano, esse negócio não cai não. Não comigo aqui dentro. Ainda tenho muita coisa para fazer neste mundo". Confesso que fiquei mais tranqüilo com a querida presença do mestre naquele vôo.

Um ano depois, recebo um telefonema de Antonio Vieira dizendo que viria ao Rio de Janeiro para uma apresentação. Fiquei exultante! Dias depois, nos encontramos para um almoço no Margutta Cittá, no prédio da FIRJAN, no centro do Rio. Ali ele me contou sobre suas apresentações, sobre o orgulho de receber cachês e royalties sobre seus shows e suas canções (justiça seja feita, ressalte-se aí o papel fundamental da AMARTE que muito apoiou o mestre na conquista de seus direitos de autor), e mais uma surpresa: Antonio Vieira escrevera um conto! Um conto de suspense que ele transformou com a ajuda de um ilustrador em uma história em quadrinhos. Era a força do jovem Antonio Vieira, mais uma vez explodindo em criatividade, aos oitenta e cinco anos de idade!

Nos falamos pela última vez há pouco mais de um ano, quando Antonio Vieira lamentou que nunca mais tivéssemos nos encontrado pessoalmente... Eu também.

Há muitos detalhes, muitas histórias vividas em tão pouco tempo de convivência. Mas sou um sujeito feliz por tê-lo conhecido, convivido e participado de um dos momentos mais marcantes de sua história: o ápice da carreira de um homem talentoso, de um poeta, de um compositor, "ciente de seu papel no mundo", como disse certa vez, o cantor e compositor Zeca Baleiro, grande admirador e apoiador do mestre, em uma entrevista para a TV.

Feliz em cantar suas canções, entusiasmado ao subir ao palco, Antonio Vieira deve estar encantando todos os anjos e santos do Céu, senão o próprio Senhor, com seus causos divertidíssimos e suas canções sempre carregadas de emoção pura e juvenil (e nem por isso, menos madura).

O grande mestre fez sua travessia. "Travessou a maresia", como ele mesmo escreveu em um de seus ritmados sambas: "compadre aqui estou eu pra essa festa de euforia, mas tenho que lhe lembrar que eu vou no fim do dia, pois a igara vai pulando, travessando a maresia. Sua brincadeira é boa, está como eu queria; mas tenho que ir na hora, travessando a maresia".


Autor: Renato Manzano


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