Aculturação e Adaptação



RESUMO

Este artigo tem por finalidade analisar a introdução do sistema agroaçucareiro nas terras, que, posteriormente, vieram a ser chamadas de Brasil, elucidando as inúmeras dificuldades e entraves que o clima dos trópicos impôs às metas e ao processo colonizador que Portugal reservou ao Novo Mundo. Através da análise freyriana iremos elencar os diversos percalços sofridos pelos adventícios portugueses – que vai desde o auxílio dos indígenas até a consolidação do açúcar na economia brasileira – durante sua estadia na Nova Lusitânia, dentre elas temos a questão alimentar, cuja carência ou falta se fez presente em praticamente todo o período colonial, sobretudo, durante a formação da sociedade luso-brasileira.

PALAVRAS-CHAVE

Colonização – Adaptação – Alimentação – Sociedade - Aculturação

ABSTRACT:

This article has for purpose to analyze the introduction of the agroaçucareiro system in the lands, that, later, had come to be called Brazil, elucidating the innumerable difficulties and impediments that the climate of the tropics imposed to the goals and to the colonizador process that Portugal reserved to the New World. Through the freyriana analysis we will go to elencar the diverse profits suffered for the adventitious Portuguese - that it goes since the aid of the aboriginals until the consolidation of the sugar in the Brazilian economy - during its stay in the New Lusitânia, amongst them we have the alimentary question, whose lack or lacks if it practically made gift in all the colonial period, over all, during the formation of the society luso-Brazilian.

KEYWORDS:

Settling - Adaptation - Feeding - Society - Aculturação


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo abordar uma das muitas temáticas elucidadas por Gilberto Freyre, e tantos outros renomados intelectuais, que tiveram a preocupação em se debruçar sobre o processo de formação da sociedade brasileira. Este nos traz as ações antrópicas modificadoras do meio no sentido de conferir à parte lusitana do Novo Mundo não um caráter extratório, mas sim a implantação de um novo sistema econômico agro-exportador, baseado na introdução da cana-de-açúcar no Brasil; principiava a ser erigida o que se chamou, a posteriori, de civilização do açúcar.

Aquele grande intelectual, autor de um sem-número de ensaios e obras em que se debruçava sobre os feitos semi-heróicos do povo português, teve a preocupação de entender e explicar a origem e formação da sociedade brasileira e, ao longo de seu estudo, traçou as bases da nossa sociedade, ressaltando as suas características marcantes, que foram: o patriarcalismo e a monocultura da cana-de-açúcar, alicerçada no latifúndio e no escravismo. Tal produto teria vindo não para ser dominado, e sim para dominar o homem, o meio e os animais, sufocando tudo e afastando a todos, exceto os grandes senhores de engenho, que lucravam com tal empreendimento; os escravos, por sua vez, também convergiam para aquele pólo econômico da cana sacarina, convivendo dia-a-dia com a sua plantação e corte. A vida destes últimos era consumida na lavoura até que seus corpos inertes – assim como o bagaço da cana, após passar e repassar pela moenda – servissem de adubo para enriquecer as terras de massapé e engordar os bolsos e as barrigas dos senhores de engenho.

Gilberto traz suas inquietações em relação aos impactos causados pela cana no meio e no próprio homem, mostrando a influência daquela na vida do nordestino, abrangendo os seguintes aspectos: alimentação, modo de vida, personalidade e ideologia reinante numa sociedade que só se preocupava com os lucros que o sistema econômico vigente poderia oferecer a uma pequena parcela da referida sociedade. Portanto não podemos deixar de falar dos impactos negativos que esse sistema econômico causou sobre o homem, sobretudo o nordestino, que esteve e ainda está tão próximo da realidade canavieira. Realidade esta, que, apesar de se tratar do açúcar, fruto da gula e cobiça de muitos, não é tão doce e nem tão branco, como muitos imaginam, visto que muito sangue foi derramado sobre os seus grãos claros.

Este ensaio tem como temática a supramencionada influência negativa, sobretudo no que se refere à alimentação do homem do Nordeste. Este ser, influenciado ideológica e economicamente pelo sistema agro-açucareiro, preferia ampliar sua lavoura, e, por conseguinte, sua mais-valia, em vez de produzir alimentos necessários a uma dieta saudável. Esta maneira de agir e pensar resultou num processo conhecido como desnutrição, resultante, a priori, da falta de alimentos, já que todas as terras férteis e os braços disponíveis eram usados na produção da cana e na sua expansão; e, a posteriori, devido a exclusividades de doces nas refeições dos habitantes dos engenhos, adeptos, desse modo, de dietas riquíssimas em carboidratos e paupérrimas em outras fontes de vitaminas e minerais.

Tal temática nos parece de grande relevância, visto que foi corriqueira na sociedade da época e ainda é para nós, ditos contemporâneos – valendo ressaltar que Nordeste foi escrito em fins da década de 30, contudo não deixa de mostrar um pouco da mentalidade reinante no nordestino, já que este preserva algumas das práticas do período colonial; uma dessas é a recorrência alimentar a produtos derivados da cana, conforme veremos mais adiante.

O sistema agrário que caracterizou o Período Colonial determinou e modelou a cultura do homem do Nordeste, cujos traços – talhados na aridez da vida draconiana, muito marcados, acoitados mesmo, de bichos, de Fabianos e Sinhás Vitórias, de Severinos filhos de Marias – ainda hoje, são herança dessa fase da História do Brasil. Por isso nos convencemos ser de grande interesse a abordagem da supramencionada temática, como forma de tentar compreender melhor o homem desta época, que esteve tão arraigado à terra e ao açúcar a ponto de muitas vezes deixar de produzir alimentos, como já o dissemos, para suprir suas necessidades, no intuito de expandir as plantações açucareiras, a fim de lucrar cada vez mais, com tal empreitada.

Assim, sedutor, atrativo, apetitoso nos parece o estudo do homem inserido na cultura açucareira; cultura que oprime e escraviza ao mesmo tempo em que regala e apraz, que açoita e mima, simultânea e dicotomicamente. Esse jogo de contrários proporcionado pelo açúcar, e por algumas de suas amargas conseqüências, faz por merecer o ato de nos debruçarmos sobre ele nas páginas vindouras, sempre baseando-nos nas idéias de Gilberto Freyre, contidas nas suas obras, sem, contudo, ignorar a vasta contribuição historiográfica sobre esta mesma temática tecida por outros autores de vulto similar ao do mestre de Apipucos.


O BRASIL E A AÇUCARIZAÇÃO

Em 1500, a Coroa Portuguesa oficializou a posse das terras do Novo Mundo, que, a posteriori viriam a constituir parte do Brasil, todavia, os lusitanos estavam entrelaçados com o comércio junto às Índias, ávidos pelas famigeradas especiarias, que rendiam grandes somas para o Reino. Sendo assim, os primeiros contatos com a nova terra foram realizados tão somente com o intento de averiguar quais riquezas essa região poderia oferecer a Portugal.

Ao contrário do que ocorreu com a Espanha, no Brasil, o ouro e a prata não foram encontrados de imediato, o que se tinha era extensas florestas virgens que abrigavam uma madeira abundante conhecida como pau-brasil, de onde se extraía um corante denominado brasileína, o qual se usava no tingimento de tecido, visto que oferecia uma cor que se assemelha à brasa.

Por isso mesmo, a priori, o rei de Portugal apenas se preocupou com o reconhecimento do território, bem como com a sua proteção, uma vez que, segundo Manuel Correia de Andrade, "Os primeiros 30 anos do século XVI foram de disputas entre portugueses e franceses pelo domínio das terras do Brasil" (ANDRADE, 2003, p. 25). Portanto, foram enviadas para as novas terras inúmeras expedições, caracterizadas pelos seus objetivos, distinguindo-se em exploradoras e de defesa ou de guarda-cotas. À primeira competia o reconhecimento do território, ao mesmo tempo em que estabelecia relações de trocas com os nativos, posto que estes recebiam objetos de pouco valor econômico para os portugueses em troca de seu trabalho de corte e armazenamento da já cobiçada madeira tintorial; a segunda tinha por finalidade proteger o Brasil contra os ataques de piratas, que tanto cobiçavam a prosperidade dos Reinos Ibéricos. Nesse último caso, a expedição mais conhecida foi a realizada por Cristóvão Jacques, em 1516.

Em 1530 a situação econômica se complicou um pouco para o lusitanos, já que além de o comércio com Oriente mostrar sinais de franco declínio, a ameaça das ações dos franceses e ingleses, que almejavam tomar para si as possessões portuguesas no Atlântico, preocupavam D. João III. Esse estado de coisas teria forçado o soberano português a tomar uma posição em relação ao Brasil, levando-o a viver um dilema, uma vez que não podia restringir suas relações com a nova região a apenas exploração devido ao risco que corria de perdê-las para as outras nações, sobretudo para França, cujo rei, Francisco I, não aceitava a divisão do Novo Mundo entre espanhóis e portugueses. Este alegava, ironicamente, que não tinha chegado ao seu conhecimento à existência de um testamento no qual Adão teria dividido o mundo entre as nações ibéricas.

A única solução encontrada pela Coroa portuguesa foi colonizar o território, idéia que já existia desde 1516[1], mas, "[…] ninguém se interessava pelo Brasil. A não ser os traficantes de madeira – e estes mesmos já começavam a abandonar uma empresa cujos proveitos iam a declínio […]" (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 31). Não havia recursos financeiros nem homens suficientes para tal empreendimento, portanto, D. João resolveu transferir o jugo, e mesmo o ônus, da colonização para a iniciativa privada, através da adoção do sistema das capitanias hereditárias, que já existiam, com relativo êxito, nas ilhas do Atlântico. Mont'Alegre corrobora com tal assertiva ao dizer que:

Uma das medidas da política portuguesa com relação ao Brasil foi estimular uma organização agrária sem ônus para a Coroa, favorecendo o uso da terra, deixando porem tudo o mais a iniciativa particular, desde os gastos de instalação ao custeio de defesa. (MONT'ALEGRE, 1974, p. 13).

Para tanto, a Coroa, "escolheu entre seus súditos, para agraciá-los como donatários ou sesmeiros, aqueles que fossem ou aparentassem ser senhores de fortunas"(MONT'ALEGRE, 1974, p. 13). Sem embargo, muitos desses sesmeiros não eram homens de grandes somas, já que sua maioria era formada por ricos decadentes que investiram todo o capital de que dispunham – e tais quantias, ainda assim pareciam irrisórias ao tanto que se precisava fazer naquele tão novo quanto inóspito mundo.

Não obstante os donatários tinham plenos poderes para atuar no Brasil, por isso muitos autores afirmam que o rei, diante da situação em que se encontrava não via alternativa se não ceder parte de seus poderes absolutos, para os novos empreendedores. Um dos autores que corrobora com a assertiva é Francisco Adolfo de Varnhagen:

Deste modo a coroa chegava a ceder, em beneficio dos donatários, a maior parte dos seus direitos majestáticos; e quase conservava sobre as novas capitanias brasílicas um protectorado, com poderes mui limitados, a troco de poucos tributos, incluindo o dizimo; do qual tributo ela mesma pagava op culto público e a redízima aos senhores das terras. (VARNHAGEN, 1956, p. 152).

Mas, nem só de privilégios e poderes viviam os donatários, posto que os deveres eram inúmeros, que iam desde a distribuição de terras àqueles que estava disposto a povoar, até o controle e pacificação dos aborígines, que constantemente ameaçava a colonização. Tais deveres, segundo Varnhagen (1956, p. 152), estavam estabelecidos no "Foral dos direitos, foros e tributos e coisas que na dita terra haviam os colonos de pagar".

Neste ínterim, a primeira carta de doação foi expedida em favor de Duarte Coelho, homem que se destacou pelos serviços prestados à Coroa, na Índia, atual Indochina. A Duarte Coelho coubera a árdua tarefa de aniquilar a feitoria francesa naquela capitania – visto que os franceses, liderados por Nicolau Durand de Villegaignon, estabeleceram-se no Rio de Janeiro, criando a França Antártica, que só foi, realmente, combatida no governo geral de Mem de Sá, com a ajuda de seu sobrinho Estácio de Sá.

Apesar de ser verdadeiramente hercúlea aquela missão, o seu executor, homem que desfrutava de grande confiança e conceito do rei português, não se esquivou do trabalho. E nessa atividade, também tratou de povoar o território, fixando determinados núcleos de aldeamento através da cessão de lotes de terras aos bravos que se destacassem naquela ação. O donatário teria também que buscar o desenvolvimento de uma economia rentável aos cofres reais, deter a rebeldia dos autóctones, que ameaçavam a colonização, bem como sair à procura do ouro, ficando mais do que evidente que eram muitas as atribuições dos donatários e poucos os recursos disponíveis e o material humano disposto a lhe ajudar nas suas inúmeras atribuições.

Entretanto, enviar donatários ao Brasil e distribuir terras não solucionavam os problemas da colonização. "Era necessário, ainda descobrir, dentre os produtos agrícolas de expressivo valor comercial na época, um que justificasse maiores investimentos" (LESSA, 1967, p. 17) por parte dos donatários e que fosse rentável à Coroa portuguesa, tendo este uma valorização no mercado mundial, e, sobretudo, sendo maleável ao clima dos trópicos e ao solo da região litorânea do atual Nordeste, que possuía extensas áreas de solos férteis e escuros, cognominados massapé, que rebentava forte e gorda como nenhuma outra terra" FREYRE, 2004, p. 49). Ainda segundo Gilberto Freyre, "A qualidade do solo, completada pela atmosfera, condicionou como talvez nenhum outro elemento, essa especialização regional da colonização da América pelos portugueses que foi a colonização baseada na cana-de-açúcar(...)". (FREYRE, 2004, p. 48).

Os portugueses tinham o intento de criar um novo Portugal naquelas suas novas possessões atlânticas, eles não buscavam o intercâmbio cultural nem a transformação de seus valores, pelo contrário, almejavam erigir uma Nova Lusitânia, como uma extensão da terra natal. Um autor que corrobora com tal assertiva é Evaldo Cabral de Mello, quando nos diz que "o Brasil foi criado para reproduzir o Portugal, não para transformá-lo ou transcendê-lo" (MOTA, MELLO. 2000, p. 73). Contudo, apesar desse objetivo estar tão presente no processo de colonização do Brasil, ocorreu uma aculturação mútua, na qual, tantos os europeus como os indígenas sofreram uma adaptação dos costumes e valores, como veremos mais adiante.

            Devido às características geográficas e à experiência de Duarte Coelho nas Ilhas do Atlântico, resolveu-se introduzir a cana-de-açúcar, que logo se espalhou por todo litoral, devido ao clima quente e úmido; com o passar do tempo, inúmeros engenhos foram levantados e a cana passou a dominar a paisagem da costa brasileira, já que, segundo Caio Prado Junior (2006, p. 33), "a cultura da cana somente se prestava, economicamente, a grande plantações".

                Pernambuco, por sinal, revelou-se a mais bem-sucedida de todas as capitanias, talvez pelo fato de Duarte Coelho, seu donatário, ao contrário da maioria absenteísta, ter-se instalado naquele novo, e ainda inóspito, mundo com a família – Dona Beatriz e filhos – e dirigido, pessoalmente, a conquista, o povoamento e o desenvolvimento da dita colônia. Gilberto Freyre, em Nordeste, aponta que este foi um dos fatores que levaram a capitania de Pernambuco prosperar; ligada a sua adaptação à vida rural ou ao trabalho agrário, bem como sua dedicação ao processo de povoamento das novas terras.

Gilberto Freyre nos fala que "o primeiro engenho regular de açúcar que se levantou nesta parte do Brasil [Nordeste] supõem alguns historiadores ter sido nos arredores de Olinda: o Engenho Nossa Senhora da Ajuda" (FREYRE, 1968, p. 115), que pertenceu a Jerônimo de Albuquerque, cunhado de Duarte Coelho.

Desse modo, com o advento do mencionado capitão-donatário, nasceu uma sociedade patriarcal, cuja economia baseou-se na cultura açucareira, tendo como sistema de trabalho o escravista, estes dois alicerces fazem parte, segundo Evaldo Cabral de Mello, "do seu [Duarte Coelho] projeto de criação de uma colônia baseada na produção de açúcar". (MOTA, MELLO, 2000, p. 75). É nesse momento que a figura visionária, e, até certo ponto – por que não dizer –, empreendedora de Duarte Coelho surge no cenário político-econômico; ao contrário dos demais aventureiros, negava-se o capitão-donatário à simplória e incerta tarefa da extração, seja de madeira, seja do vil metal, optando pela instalação da cana e dos engenhos de açúcar.

Nesse sentido, segundo a concepção Duartina, a sociedade luso-brasileira que se formava, aos seus olhos, era um modelo que poderia dar certo, se não fosse o pau-brasil, a qual era tida, pelo supracitado colonizador, como um problema, que, ainda desperdiçava as forças do colonizador e comprometia a estabilidade da capitania, pois "os que se dedicavam à exploração desta madeira eram geralmente aventureiros que, deixando suas famílias em Portugal, e aqui procuravam fazer fortuna rápida e pouca trabalhosa". (ANDRADE, 2003. P. 41).

Ainda havia a pressão da Coroa em busca de metais preciosos, para abastecer os cofres do Reino português, que, como sabemos, não teve a sorte de encontrar de imediato.Essa falta de metais fez com que Portugal buscasse outros meios para lucrar às expensas do Brasil, a priori, com a extração do pau-brasil, e, logo depois, com a indústria agro-açucareira.

O açúcar teve uma rápida aceitação por parte dos colonizadores que logo perceberam a fácil adaptação da planta ao solo e clima da região. Schwartz (1988, p. 33) corrobora com tal idéia ao afirmar que já "em 1542, Duarte Coelho informou que havia sido plantado muito pé de cana e que estava ajudando os colonos nessa tarefa".

Pernambuco foi a capitania que mais se destacou na produção do açúcar, após ela estava a Bahia, por isso, essa duas regiões abrigaram um número considerável de engenhos, que a priori eram pequenos. "A maioria era do tipo trapiche, movido por cavalos ou bois. Alguns usavam força hidráulica, em geral os construídos pelos próprios donatários". (SCHWARTZ, 1988, p. 36).

Sabe-se que bem antes da divisão do território brasileiro no sistema de Capitanias Hereditárias já existiam alguns engenhos, sobretudo em Pernambuco, porém foi só após o advento de Duarte Coelho que este sistema ganhou forma e importância econômica.

Paulatinamente novos engenhos foram sendo fundados, e um número cada vez maior de colonos surgia em Pernambuco; destes, grande parte, era composta por degredados, ou seja, pessoas que não eram bem quistas em Portugal. Tais personas non gratas eram trazidas para o Brasil, como castigo por seus delitos, e, normalmente, entre esses degredados havia assassinos e toda a pária da sociedade portuguesa, mas, sobretudo também havia pessoas que não professavam a fé Católica ou ainda os ditos "maus cristãos".

Esses desvios de conduta, mediante Gilberto Freyre, na verdade "em um país de formação antes religiosa do que etnocêntrica, eram […] os grandes crimes…" (FREYRE, 2006, p. 82). Nesse sentido, percebemos que era mais grave, na perspectiva do português da época, desagradar às doutrinas da Igreja Católica, tendo como castigo a língua tirada pelo pescoço, do que violar a honra de uma mulher ou tirar a vida de outro cristão. Estes últimos delitos tinham como castigo multas que podiam variar desde a entrega de uma galinha até uma considerável quantia em dinheiro.

Existiam também aqueles que eram degradados para o Brasil devido aos excessos na vida sexual, este, ainda de acordo com Freyre, era um pretexto para enviar pessoas, no intuito de consolidar o povoamento da Nova Lusitânia. Para outros não precisavam desculpas para se sentir atraídos pelos trópicos; muitos acreditavam ter a possibilidade de uma vida livre, sobretudo ao que diz respeito à religião, visto que o Brasil era um território embrionário, e por isso não teria condições de se professar uma religião consolidada, com uma fiscalização rígida.

Por isso as novas terras traziam a vantagem de uma espécie de liberdade de consciência religiosa e, até mesmo, de culto. Tamanha disposição ecumênica tornou possível a vinda para estas terras de muitos judeus cujos capitais, em muito, serviram para alargar os investimentos no açúcar luso-brasileiro. Tais investimentos iam, segundo Omer Mont'Alegre, desde o "fornecimento de capital necessário à realização das safras, à compra de escravos. Depois, adquiriam os açúcares produzidos e levavam-nos aos mercados" (MONT'ALEGRE, 1974, p. 80).

Ainda de acordo com o supramencionado autor, os cristãos-novos "eram parte da burguesia que dominava a vida econômica de Portugal", que foi induzida pela Inquisição, através de restrições em relação as prática religiosa, a vir povoar as novas terras e investir seus capitais na empresa colonizadora, já que ficavam marginalizados e impedidos de cultivar grandes empreendimentos. Portanto, estes "encontraram fácil mobilidade, na Colônia, onde começaram a atuar como mercadores, [a priori], empenhados no tráfico, elogo se tornaram agentes financeiros" – entre a Metrópole e a Colônia. (MONT'ALEGRE', 1974, p. 80).

Ainda em relação aos degredados, Duarte Coelho não via com bons olhos a vinda desse tipo de gente – a maioria sem recursos para auxiliar no processo de colonização portuguesa na Nova Lusitânia –, pois, esses lhe causavam grandes problemas e ameaçavam o bom desempenho da sua administração. Boa parte destas pessoas se aglomeravam na capitania de Itamaracá, em busca de ascensão econômica de maneira rápida através da busca do pau-brasil, e ultrapassavam a fronteira com a Nova Lusitânia, que pertencia a Pero Lopes – irmão de Tomé de Souza – que nunca veio ao Brasil fazer o reconhecimento das suas terras.

Logo, a supra elencada capitania não tinha um governo central que controlasse a ordem nem a extração do pau de pinta, que atraía cada vez mais desordeiros em busca de lucros fáceis, tornando-se o calcanhar de Aquiles da Colonização Duartina. Tais entraves forçariam Duarte Coelho enviar ao soberano português uma nova petição na qual seu donatário propunha a criação de uma faixa que delimitava os locais de extração do pau-brasil, que se restringia à faixa de terra e se estendia da foz do atual rio Goiana, até o Cabo de Santo Agostinho.

Um outro problema para o nosso supramencionado donatário foi os índios que a todo tempo ameaçavam os colonos, destruindo suas propriedade e plantações. De início os portugueses estabeleceram relação pacífica com os nativos brasileiros. Entretanto diante do surgimento dos primeiros engenhos e da falta de mão-de-obra, os nativos foram capturados e vendidos como escravos àqueles que tinham o objetivo de edificar seu sistema agroaçucareiro, sendo, portanto, utilizados na cultura da cana, que consumia suas forças. Todavia eles não se mostravam muito dispostos ao trabalho regular e pesado, e isto se dava porque os nativos brasileiros estavam num estágio de desenvolvimento baseado na coleta de alimento e não na sua produção.

Tinham uma cultura diferente da portuguesa, já que não se preocupavam com o trabalho, visto que a natureza lhes oferecia tudo o que precisavam, e desse modo, aos mesmos não competiria acumular quaisquer espécies de riquezas para seu futuro ou o de seus filhos, posto que a sábia natureza proveria as ulteriores gerações. Por isso houve uma resistência por parte dos autóctones ao trabalho. Resistência estar não entendida, muito menos assimilada, pelos portugueses, que, por seu turno, nessa época, consideravam-nos erroneamente preguiçosos. Caio Prado (2006, p. 36), talvez ignorando determinados conceitos antropológicos em relação à variedade cultural, afirma que "o índio se mostrou mal trabalhador, de pouca resistência física e eficiência mínima. Nunca teriam sido capazes de dar conta de uma tarefa colonizadora levada em grande escala" como foi a do Brasil.

A falta de adaptabilidade dos índios ao trabalho resultou no definhamento de um número significativo destes, bem como nas doenças do Velho Mundo que contribuíram para dizimar tribos inteiras, já que os nativos não tinham imunidades desenvolvidas para combater enfermidades, que, para eles, eram novas. É bem verdade que a exaustão fomentada pelo trabalho compulsório e as enfermidades européias – algumas transmitidas conscientemente, ou não, sob a forma de uma espécie de guerra biológica – não foram às únicas causa mortis do gentio; estes, ao menos o grupo dos insurgentes à conquista, tiveram sua resistência punida, via de regra, com a morte.

Em relação às duas outras formas, já mencionadas, de óbito corriqueiras entre os ditos silvícolas, Schwartz corrobora com as afirmativas ao escrever que:

 

A escravização dos aborígines definhou devido às percepções e limitações culturais de índios e europeus, à suscetibilidade dos nativos às doenças do Velho Mundo e ao custo dos eventos históricos (SCHWARTZ, 1988, p. 40).

 

Duarte Coelho travou grande e sangrenta luta com os nativos em busca das terras mais férteis, que estavam nas mãos daqueles. No entanto depois de muita peleja, conseguiu pacificar os ataques dos indígenas, sobretudo dos Caetés.Mas a sua partida de volta para Portugal os animou a lutarem contra os colonizadores. A tribo Caetés foi a primeira a se rebelar, travando novas ofensivas contra os portugueses, que geraram uma hecatombe bélica, resultando na destruição de inúmeros engenhos.

A política de estímulo ao povoamento, usada por Duarte Coelho, mostrou-se bastante proveitosa. Um exemplo disso são as cartas que o referido donatário enviava ao rei nas quais relatava a prosperidade da capitania mediante certa hierarquização social que ali já se podia identificar no trecho colhido por Manuel Correia e abaixo transcrito para efeito de um maior esclarecimento:

[…] entre todos os moradores povoadores uns fazem engenhos de açúcar porque são poderosos para isso outros canaviais e outros algodoais e outros mantimentos que he a principal e mais necessária cousa para a terra […] outros são mestres de engenhos, outros mestres de açucares, carpinteiros, ferreiros, pedreiros, oleiros […] (CORREIA apud Carta de Duarte Coelho, de 24 de novembro de 1550, em História da Colonização Portuguesa, vol. III, pág. 320).

Acrescente a isso a intensa miscigenação que ocorreu entre índios e colonos, relatada pelo padre Manuel da Nóbrega, em viagem à Nova Lusitânia, em 1551; o próprio cunhado de Duarte Coelho, um dos sucessores e continuadores da obra de sua existência, Jerônimo de Albuquerque teria se casado com a filha de um cacique e tido, com a mesma, oito filhos. Este, apesar de duras perdas, conseguiu abrir novos horizontes de cultura canavieira, estimulando a fundação de novos engenhos.

Todavia, se levarmos em consideração o território que correspondia a Capitania de Pernambuco, veremos que grande extensão de terras não passou pelo processo de povoamento idealizado pelo donatário, já que a sua ação ficou restrita às redondezas de Olinda e Igarassu. Apesar dos 20 anos de administração Duartina, este feito só foi obtido, pelo seu cunhado e seus filhos, como podemos observar no trecho que segue:

Coube a Jerônimo de Albuquerque, após 1553, a conquistou da várzea do Capibaribe, ampliando consideravelmente a área favorável à cana-de-açúcar, e aos filhos do donatário, Jorge e Duarte de Albuquerque Coelho, realizarem na sétima década do século XVI, a conquista das várzeas dos rios Jaboatão Pirapama, Ipojuca, Serinhaém, Una e Manguaba, estendendo o povoamento europeu quase até a Foz do São Francisco. (ANDRADE, 1980, p. 53).

Com isso, vemos que Jerônimo de Albuquerque deu continuidade ao povoamento lusitano, porém, ele também sofreu com a resistência indígena, que, a cada dia, tornava-se mais ameaçadora, visto que, com a morte de Duarte Coelho, os nativos – pacificados pelo o mesmo – iniciaram uma onda de ataques a plantações e assassinatos a grupos indígenas aliados dos portugueses.Mediante tantos conflitos entre colonos e índios, a Coroa cogitou implantar a mão-de-obra escrava africana, que já era utilizada nas Ilhas do Atlântico e também na Metrópole. "Os portugueses já estavam bem preparados para a substituição, uma vez que de longa data traficavam os pretos escravos adquiridos nas costas da África". (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 36). "A escravidão demonstrou ser, desde o primeiro momento, uma condição de sobrevivência para o colono europeu na nova terra" (FURTADO, 1961, p. 56).

Para evitar que os índios continuassem a ser escravizados, a Coroa portuguesa, em 1570, uma lei que proibia a escravização daqueles, exceto por conta da guerra justa, ou seja, quando os nativos colocavam os colonizadores e a colonização em risco. Não obstante o processo de substituição do índio pelo negro africano foi contínuo e gradativo, visto que os negros eram um investimento alto e com lucros em longo prazo, sendo assim, nem todos tinham capital suficiente para adquirir esse tipo de "objeto de trabalho", tendo que se contentar com a utilização de autóctones em seus canaviais.

 

AS DIFICULDADES DO PORTUGUÊS NO INÍCIO DA COLONIZAÇÃO

A indústria do açúcar era uma unidade transformadora que necessitava de uma grande quantidade de braços, aplicados à produção do valioso artigo, que era muito bem quisto nos mercados europeus. A priori, a única saída vista pelos adventícios foi o uso dos autóctones como mão-de-obra barata, através do escambo, e, logo após, a sua escravidão gradativa, uma vez que estes valentes seres lutaram bravamente contra o cativeiro.

A resistência indígena é um viés da História do Brasil que, ainda hoje, tem seu destaque e sua importância, ela nos mostra a grande luta pela sobrevivência de várias nações que não se resiguinaram à vontade e ao jugo do europeu, cuja perspectiva era de uma "raça superior" que tinha o dever moral e religioso de mostrar o caminho da civilização a "pobres primitivos" – sem lei e nem rei. Essa, portanto, era uma missão do conquistador branco, dito civilizado, de salvar as mentes e as almas dos aborígines enquanto seus corpos seriam entregues ao trabalho árduo e necessário à ereção de uma Nova Lusitânia, como já o dissemos.

Entretanto percebemos o grande equívoco de tal nação européia, já que esta, segundo Gilberto Freyre, é composta pela mistura de povos, o que, em tese, sugeriria uma "indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África, a qual parece ter sido sempre a mesma em Portugal como em outros trechos da Península". (FREYRE, 2006, p. 67).A indecisão, apontada pelo supra elencado sociólogo foi importantíssima para a expansão territorial de Portugal em direção a América, uma vez que a sua estadia na região dominada permitiu a adaptação do português ao clima amolecedor dos trópicos – como nos mostra Gilberto Freyre, a África e a América possuem condições climáticas semelhantes –, desenvolvendo-lhes resistências, e, conseqüentemente, uma maior maleabilidade aos fatores ambientais das referidas regiões, ao mesmo tempo em que deu ao "colonizador português suas principais condições físicas e psíquicas de êxito e de resistência". (FREYRE, 2006, p. 69).

Isto posto, percebemos, a inquestionável, relevância da África na História de Portugal, a ponto de existir, ainda segundo o mestre de Apipucos, uma espécie de bicontinentalidade bastante acentuada na sua formação e na composição étnica de seu povo, bem como na sua personalidade que, assim como sua resistência física, que se tornou plástica ao contato do português com os trópicos.

O português também atenuou, em suas viagens à África, algumas das inúmeras lendas que envolviam e encantavam o imaginário e os sonhos dos homens peninsulares. Estes iam a busca de figuras sensuais e místicas que completavam e mistificavam seus dias; os quais estavam repletos de estratagemas e de lutas de dominação, posto que os portugueses – em um período da sua historia conhecida como as Grandes Navegações – se laçaram em busca de novos horizontes e, especialmente, de novas fontes de rendas, que suprissem seus desejos de metais preciosos, para estabelecer uma balança comercial favorável – como pregava a doutrina mercantil, que caracterizava a política econômica das monarquias absolutistas.

Um exemplo de uma dessas lendas, como aponta Gilberto Freyre, é a moura-encantada "tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em um misticismo sexual (...) sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes (...)" (FREYRE, 2006, p. 71). Com a alusão a este tipo lendário de mulher, fica clarividente a transferência do imaginário do português para o índio, ou melhor, para a índia, que tinha o hábito de banhos diários nos rios brasileiros. Esta, como veremos mais adiante, foi o agente facilitador da estadia do colonizador português em terras tão distantes e desconhecidas, até então.

Entretanto o condicionamento do português aos trópicos não foi um processo fácil nem rápido. O território que correspondia ao Brasil era formado por inúmeras tribos indígenas, muitas delas nem tinham chegado ao estágio da agricultura; não existia as residências que muitos dos colonizadores estavam acostumados, o que havia era casa, geralmente, feitas de gravetos e folhagens, onde abrigava uma números extenso de famílias, como vemos na assertiva feita por Frei Vicente Salvador, "as casa eram tão compridas que moram em cada uma setenta ou oitenta casais, e não há nelas algum repartimento mais que os tirantes, e entre um e outro é um rancho, onde se agasalha um casal com sua família (...)". (SALVADOR, 1975, p. 79). Ao redor das tribos havia matas virgens e fechadas que abrigavam um número considerável de animais nunca vistos pelos adventícios, como o papagaio que trouxe a alegria e lucros de muitos peninsulares.

Entre os inúmeros entraves sofridos pelos colonizadores podemos citar a questão alimentar, que tanto preocupou os formadores da nascente civilização americana. A falta de alimentos adequados a uma rica e balanceada dieta foi um fator que marcou e, porque não, caracterizou a colonização portuguesa na América, já que foi um problema corriqueiro e de difícil resolução, por isso, a referida questão reservou a atenção das autoridades e da legislação da colônia, que tentou encontrar, por diversas vezes e maneiras, uma forma de solucionar tal entrave que tanto prejudicava o desenvolvimento da Colônia, visto que, ao longo dos anos o fluxo imigrantes aumentou consideravelmente, sobretudo a partir do século XVII – com a Invasão Holandesa.

Na Colônia o português não encontrou os gêneros alimentícios existiam na Europa, por isso, sofre uma aculturação, incluindo e, conseqüentemente, adaptando-se aos produtos da região e ao modo de vida dos ameríndios brasileiros, como o uso da rede, os hábitos de higiene, que engloba os banhos diários e freqüentes, que tanto assustaram os primeiros colonizadores, já que era habitual na Europa um banho por semana e de maneira bem restringida – mãos e outras pequenas partes do corpo.

As índias se mostraram muito hospitaleira, auxiliando o colonizador em inúmeras dificuldades, como nos fala A'bSaber:

Seu sustento [dos colonizadores], sobretudo de início, continuará a ser em grande parte o dos índios e quase sempre fornecidos pelos índios: pescado e mariscos, de que havia grande fartura em toda a costa, ou a farinha de mandioca, o pão da terra. Este chagara a ser grandemente apreciado por muitos adventícios e do próprio governador-geral constou que ia a ponto de preferi-lo ao de trigo. (AB'SABER, 1960, p. 118)

 

Esse auxílio também abrangeu as questões relacionadas à sexualidade, já que as nativas começaram a ocupar a preferência dos portugueses no ato sexual em detrimento da européia, que foi inferiorizada em tal aspecto, fato que resultou numa rivalidade entre as duas etnias, que ia muito além das "raças". Com o advento da gentia na vida e no imaginário do português ocorreu o rompimento de alguns valores, como a desmistificação das virgens pálidas – já que estas deixaram de ser o objeto de desejo dos "heróis portugueses" – e da monogamia, posto que os adventícios adotaram uma vida poligâmica, que era usual entre os autóctones, adquirindo várias mulheres e gerando inúmeros descendentes.

As nativas, nos primórdios da colonização – antes do genocídio que os autóctones sofreram com a imposição da cultura portuguesa a ameríndia – viviam nuas, banhando-se nos rios, e com grande facilidade de doavam aos brancos como a deuses. Este contato entre as duas etnias resultou num rápido povoamento do território, visto que grande foi o advento de mestiços – descendentes – nas novas terras, que deram continuidade ao processo de colonização imposta por Portugal. Desta forma foi suprida a falta de braços para o processo de colonização da América portuguesa, que talvez, sem a mistura de etnias, nunca teria sido solucionada com o "resto de homens que lhe deixara [Portugal] a aventura da Índia". (FREYRE, 2006, p. 161).Sendo assim, é "certo que sobre a mulher gentia fundou-se e desenvolveu-se através dos séculos XVI e XVII o grosso da sociedade colonial (...)". (FREYRE, 2006, p. 161). Por isso muitos autores vêem a índia como a base da família brasileira da época colonial, que serviu de alicerce a sociedade atual.

Esta também exercia importante papel na sociedade ameríndia que necessitava da sua mão-de-obra para se manter, como nos mostra Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, que o trabalho das mulheres ia desde a plantação de mantimentos até a busca de água para preparar a comida. Cabia, também, a gentia o cuidado com os meninos e da casa, nem as idosas escapavam do laboro, visto que, a estas, cabia a fabricação de potes e utensílio de argila. Nem o peso da maternidade isentava estas das suas atividades diárias.

Outro renomado autor que alude sobre a importância da mulher gentia na sociedade que se formava é Francisco Varnhagen, em História Geral do Brasil; ele nos fala que o trabalho repartia-se segundo o gênero, aos homens cabia a arte da guerra, a caça, a pesca – que não conferiam tanto esforço, já que, nessa época, animais e peixes eram abundante na fauna brasileira – e a criação de novas casas – tabas ou ocas. Para a caça empregavam o uso do arco e da flecha, que – assim como os demais instrumentos destinados a tal fim – tinham que se fabricados.

Já as mulheres ficavam imbuídas das múltiplas atribuições restantes, como cuidar das crianças, do fabrico dos utensílios domésticos e das redes, além de cuidar do cultivo das terras para a plantação de algumas raízes que eram elementares na alimentação do aborígine, dentre elas, a farinha de mandioca, cuja fabricação era muitos incipiente e, porque não trabalhosa, como podemos verificar no trecho adiante:

Da mandioca fabricavam a farinha, pelo processo grosseiro que depois adotaram os colonos, e que ainda hoje se pratica nas roças, ralando-a sobre uma prancha ou superfície com pedrinhas agudas embutidas; e espremendo-a com o tepetim, que era um saco de junco oblongo, mui elástico, e que, por meio de um peso no extremo, apertando o mesmo saco se fazia enxugar a polpa da mandioca ralada, que depois se cozia em tachos no fogo. (VARNHAGEM, 1956, p. 39).

 

Esse tipo nativo de farinha veio a substituir o trigo na dieta alimentar dos colonizadores, que passaram a consumir os derivados da mandioca, um autor que corrobora com tal assertiva é a Gilberto Freyre, quando nos fala que "a farinha de mandioca adotaram-na os colonos em lugar do pão de trigo". (FREYRE, 2006, p. 190). Isto torna de fácil patente à vitória da cultura indígena em detrimento a cultura portuguesa. O nosso supracitado sociólogo, ainda, nos mostra que era variado o uso da mandioca na culinária luso-brasileira, e muitos era os derivados que foram introduzidos na dieta alimentar dos conquistadores, como o beiju e tantos outros.

Varnhagem, em História Geral do Brasil, faz alusão sobre as frutas que passaram a ter uma posição de destaque na preferência dos portugueses. Dentre essas podemos citar a banana da terra, que teve uma rápida aceitação, bem como sua folha, "de uso freqüente, ainda hoje no Nordeste, para envolver produtos de coco, de mandioca, de arroz e de milho". (FREYRE, 2006, p. 193).Outros frutos, mencionados por Gilberto Freyre, são o mamão, o araçá e o caju, cuja serventia medicinal paliava os males do estomago. Já os legumes eram pouco consumidos, visto que não eram de grande apreciação por parte dos nativos.

Ainda podemos elencar o peixe, que era de grande uso, sobretudo, na Amazônia. Este era pilado e misturado com a farinha para se produzir uma massa, que Gilberto chamou de paçoca, muito consumida na região Norte. Do peixe podemos, também, fabricar a moqueca, que "é o peixe assado no rescaldo, que vem todo embrulhado em folha de bananeira (...)". (FREYRE, 2006, p. 195). Nesse ínterim, temos o milho que, segundo Freyre, era o único cereal conhecido. Este também era muito popular na América hispânica, já que, os ameríndios que faziam parte da chamada América espanhola, o tinha como base alimentar, em contraste com a América portuguesa, que via na mandioca o alicerce da sua alimentação.

Além da farinha, verificamos a ênfase da cana-de-açúcar em tal sistema de alimentação; esta predominou, especialmente, mediante a consolidação do açúcar na economia brasileira, em meados dos séculos XVI, como nos mostra Gilberto Freyre, em Nordeste. O supra mencionado sociólogo acredita que o açúcar tomou um papel de proeminência tanto na alimentação do aristocrata com do homem do povo, que apesar dos escassos recursos, tinham uma acessibilidade, mesmo que incipiente ao tão lucrativa especiaria.

Deste modo, os doces adquiriram uma apreciação singular no cardápio do luso-brasileiro, que era recheado de guloseimas açucaradas; dentre elas temos a goiabada, que alcançou o rótulo de sobremesa de casa-grande. "As sinhás e os meninos eram doidos por doce" e nem os senhores de engenho escapavam das seduções do açúcar, já que estes, também, "eram uns gulosos por doce e de comidas açucaradas". (FREYRE, 2004, p. 123). Assim percebemos que a cana-de-açúcar dominou não só a economia brasileira, mas também a ideologia da sociedade, que veio a ser chamada de Sociedade do Açúcar.

 


CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Percebemos que o contato do português com os nativos brasileiros resultou numa aculturação mútua, visto que aqueles adotaram algumas das práticas indígenas, como uma forma de adaptação ao novo mundo e ao seu clima dos trópicos; enquanto estes passaram por um processo de descaracterização das suas origens, através do extermínio de sua cultura e de suas crenças pela ação predatória do colonizador português, que veio às Novas Terras com o desígnio de, além de edificar uma civilização num Mundo sem lei e nem rei, oferecer um estilo de vida à maneira lusitana, que lhes permitisse se aproximar?

Essa introdução de valores ocorreu, na maioria das vezes, de forma coercitiva, mediantes as armas e punhais, que dizimaram grande parte da população que realmente eram, por direito, os donos das terras brasileiras.

 

 

 

 

 

 

 

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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________________Nordeste. Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil. 7º Edição: Global, 2004.

 

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