Uma volta pela Avenida Paulista



Uma volta pela Avenida Paulista

 

(Uma caminhada pela Avenida Paulista revela-se surpreendente, indecifrável, misteriosa...)

 

Lembro-me, em meados da década de 1990, que a TV Globo – nos intervalos do programa “SPTV, 2ª edição” – apresentou uma enquête que convidava os paulistas e paulistanos a escolher o símbolo do Município de São Paulo. Dentre os candidatos – alguns de peso – tínhamos, por exemplo, o Estádio Paulo Machado de Carvalho, o “Pacaembu”. No entanto, desde o primeiro momento, eu me senti seguro em afirmar que a vitória ficaria com a Avenida Paulista. E, de fato, ficou. Pode-se afirmar que a Paulista venceu porque é a tradução mais cosmopolita da cidade. Porém, ela vai além disso. E uma caminhada pela Avenida pode ser uma tentativa de compreensão de seu sentido e representatividade.

 

Uma caminhada pela Avenida Paulista, antes de tudo, revela-se surpreendente. Contudo, gradativamente, de forma simultânea e paradoxal, uma caminhada pela Paulista revela-se indecifrável. Revela-se misteriosa. Revela-se em muito além dos que os nossos olhos podem ver.

 

Inaugurada em 08 de dezembro de 1891, a Paulista é portadora de uma memória que repousa no imaginário coletivo e histórico, e que raramente está por total contida em referenciais individuais. Ao se falar de seu passado – imaginem, no final da década de 1920, a Avenida projetada pelo engenheiro Joaquim Eugênio de Lima (1845-1902) chegou a se chamar “Carlos de Campos” –, quase que automaticamente nos vem à memória imagens de inúmeras exposições que tentaram resgatar ou retratar a sua história. São gravuras ou fotografias famosas, que, por exemplo, nos remetem àquela magnífica aquarela de Jules Martin (1832-1906), que reconstrói a sua inauguração, donde se vê carroças indo ao horizonte ladeadas por árvores ainda pequenas em um descampado. São também famosas as fotografias da residência de Adam Ditrik von Bülow (1840-1923), projetada pelo arquiteto Augusto Fried e datada de 1895, da de Francisco Alberto da Silva Pereira, de 1897, e da residência Numa de Oliveira, que hoje empresta nome ao Condomínio Edifício localizado no nº 1009 da Avenida. Claro, há também as imagens mais recentes, como as do Conjunto Nacional, cuja iniciativa da construção remonta ao empresário argentino José Tjurs (1901-1977), que em 1952 adquiriu a mansão que foi da família Horácio Sabino para alocar o terreno à nova edificação; com projeto do então jovem arquiteto David Libeskind, a obra é inaugurada em 1956, tornando-se um acolhedor marco arquitetônico na nova Avenida que surgia e uma referência na região para lazer e serviços.

 

Deixando um pouco de lado a “neutralidade” do referencial de imagens e fotografias, percebemos que nem tudo fica na órbita do espírito da edificação ou construção. Como diz a canção “Sampa”, de Caetano Veloso, “... a força da grana que ergue e destrói coisas belas...”, atuou intensamente na Paulista, e, mesmo com opiniões em contrário, aos olhos do cidadão comum e leigo a paisagem e memória da Avenida sofreu com a demolição da residência que pertenceu a um dos maiores industriais da América Latina, justamente o Conde Francisco Matarazzo (1854-1937, nascido em Castellabate, Itália, como “Francesco Antonio Maria Matarazzo”). Conta-se que a Mansão Matarazzo, então localizada no nº 1230 (no cruzamento com a Rua Pamplona, do lado do bairro Bela Vista) – e que cuja construção integral se deu entre 1896 e 1941 –, chegou a ser em 1989 tombada pela Prefeitura na gestão de Luíza Erundina de Souza, que curiosamente queria ali construir uma espécie de “Museu do Trabalhador”, em oposição simbólica àquele espaço de glamour e refino da elite industrial. Após o palacete, por literal, tombar em janeiro de 1996, conta-se, também, que em 2007, finalmente o terreno foi vendido por US$ 125 milhões para um possível empreendimento imobiliário dos grupos Cyrela e Camargo Corrêa. Por enquanto, sobrou no local um estacionamento, que mantém somente partes do muro daquilo que pareceu ser a portaria ou a fachada de entrada do imóvel.

 

E esse foi um dos mais recentes e agressivos exemplos de avanço de uma modernidade que se impôs à Paulista. A especulação e verticalização rapidamente a remoldaram, preenchendo os olhos com uma paisagem que sugere força, dinheiro e poder. Eis, daí, que a mensagem principal da Avenida poderia ficar por conta desta quase onipresente “arquitetura comercial modernizante”, no que se revela a faceta funcional e preponderante desta via nervosa e nevrálgica da cidade. Assim, ora, dar uma volta “desencanada” pela Paulista, é permitir-se revelar pelo moderno – se é que isso é possível dentre tantos olhares e leituras –. Mas, se dessa forma então não for, o que não seria modernidade se não os edifícios Torre Paulista, no nº 949, e Parque Avenida, no nº 1773, com fachadas que lembram parte de uma parábola? Ou então o Edifício Luís Eulálio de Bueno Vidigal Filho (Edifício da FIESP), visto com uma enorme rampa retilínea, no nº 1313? Pela imponência, cite-se, ainda, como paradigma dessa modernidade, o Edifício Torre João Salem, no nº 1079 – mosaico de espelhos azulados e esverdeados –, e o Edifício da Fundação Cásper Líbero no nº 900 – cujo nome é emprestado do jornalista criador da Corrida de São Silvestre, que viveu entre 1889 e 1943 –, com as torres da TV Globo e TV e Rádio Gazeta... E já que falamos de torres, lembremos as transmissões do “Jornal da Manhã”, da Rádio Jovem Pan (AM 620 Khz), oriundas do 14º andar do nº 807, ouvidas na voz do locutor Joseval Peixoto (que a empresta à mesma emissora há mais de 45 anos), e sublinhada por outros – como Anchieta Filho, David Roque, Roberto Müller e Antônio Freitas – que ao informarem a hora, se revezando ao longo das notícias, repetem: “repita”...

 

[As transmissões também mencionam outros bordões, como os que informam a temperatura no “Espigão da Paulista” (ou “Espigão Central”), como é conhecida essa área que perpassa a Avenida, cujo terreno – outrora chamado pelos índios de “Caaguaçu” (“mata grande”) –, suponho estar consideravelmente acima do nível do mar]

 

O Edifício Nações Unidas – seja pela visão que proporciona, seja pela sua extensão – igualmente merece ser lembrado enquanto marco de verticalização e modernidade. Situado no nº 648 – esquina com a Avenida Brigadeiro Luís Antônio –, nele há um singelo painel de 1959 do artista Clóvis Graciano (1907-1988), que envolto por grade e pequeno jardim, praticamente passa despercebido pelos transeuntes.

 

Essa modernidade é “quebrada” pela visão, no nº 2378, da Igreja São Luiz Gonzaga, edificada entre 1932 e 1935 em estilo greco-romano – a partir de projeto do engenheiro e arquiteto Luís Inácio de Anhaia Mello (1891-1974) –, e também por outras construções mais antigas, como a do Hospital Santa Catarina, inaugurado em 1906. Sendo o mais velho hospital particular da cidade, ele foi fruto do engajamento das Irmãs da Congregação de Santa Catarina (do convento da cidade alemã de Braunsberg), da Irmã Beata Heinrich e do médico vienense Walter Seng (1873-1933, seu primeiro diretor clínico) – que empresta seu nome a uma pequena e íngreme rua, atrás da Paulista na região do Bela Vista –, além de Dom Miguel Kruse – o primeiro monge restaurador do Mosteiro de São Bento, que igualmente empresta o seu à escola estadual de mesmo nome, no Jardim Danfer –. Do hospital, inclusive, em uma de suas paredes divisórias com a calçada da Avenida, é possível ver desenhos em relevo de bronze descrevendo situações da vida e da medicina, e de lá, nossa memória de fotografias acusa outra de 1937, onde se vê pelo alto, ao lado do Santa Catarina, obras na Avenida Nove de Julho.

 

No nº 227, prédio do ano de 1919 e da primeira escola pública da região, o “Grupo Escolar Rodrigues Alves” – outrora “Escolas Reunidas da Avenida Paulista”, e hoje, chamando-se apenas “Escola Estadual Rodrigues Alves” –. Ele é um dos muitos projetos do escritório do arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1923) espalhados pelo Município de São Paulo, e junto com a casa do nº 393 em que funciona o Instituto Pasteur, da Secretaria do Estado da Saúde – construída em 1903 –, trazem “equilíbrio” à Avenida, que é o centro financeiro da cidade. Claro, nessa atmosfera de imóveis mais antigos, no nº 37 há a “Casa das Rosas” – ou “Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura” (que guarda o acervo do poeta) –, revelando-se um intrigante e belo sobrado – igualmente projetado por Ramos de Azevedo, e que cuja construção terminou em 1935 –, onde é possível sentar num típico banco de varanda e apreciar um jardim.

 

De verde, o Parque Trianon ou Parque Tenente Siqueira Campos (e no passado, Parque Villon) – inaugurado em 1892 e projetado pelo paisagista francês Paul Villon – é opção, tendo à sua frente, no nº 1578, o MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) – cujo projeto é de Lina Bo Bardi (1914-1992) –, donde de seu vão se avista a Avenida Nove de Julho e as praças Arquiteto Rodrigo Lefèvre e Antônio Benetazzo. Nesse espaço, nos anos 1990, aconteceram diversos shows – como o da cantora baiana Daniela Mercury – que não foram mais realizados pelo temor da atividade comprometer a estrutura do Museu, que é suspenso do solo por quatro grandes vigas de concreto. Anote-se que à época da doação do terreno ao MASP para a construção do prédio, se exigiu que fossem preservadas as paisagens da Serra da Cantareira e da região central da cidade, vistas através do vale da Avenida Nove de Julho: eis o porquê de a edificação ser suspensa do chão... Registre-se, ainda, que antes do Museu chegar à Paulista definitivamente em 1968, no local havia o Belvedere Trianon – bem acima do Túnel Nove de Julho (ou Túnel Daher Elias Cutait) –, mais um projeto de Ramos de Azevedo que existiu entre 1916 e 1951, tendo sido demolido para emprestar a sua área ao pavilhão da primeira edição da Bienal Internacional de São Paulo. Não sendo exatamente uma área verde – mas não menos interessante –, não nos esqueçamos do nº 1400, onde temos a Alameda das Flores – com café, mercado de flores e feirinha de artesanato –, para aqueles que embriagados do intenso movimento, possam ter a ilusória e provisória sensação que ali não é uma grande Avenida ou um grande centro. E, ainda, e para quem gosta e se solidariza com os animais, no nº 1919, na região de Cerqueira César, há o Casarão da Paulista – tombado em 1992 –, onde funciona o “Centro de Adoção de Cães e Gatos”. Aos sábados e domingos, lá é possível adotar – desde que com posse responsável – os bichinhos abandonados, além de ajudar o projeto com a doação de ração, medicamentos, produtos de limpeza/ acessórios de animais – e se tornando até mesmo voluntário –, numa ação que inclui a castração com preços populares.

  

Da Paulista, encontramos conhecidos, encontramos pessoas. Em suas bancas de jornal, é possível ver em versões de bolso as principais obras da literatura universal, suficientes para equipar qualquer biblioteca. Dos cinemas, é possível assistir aos filmes do circuito comercial e também as películas que nele tem pouco espaço. Ali, o inesperado é parte do roteiro, como no dia em que acompanhado de minha esposa, ríamos e cantávamos aleatoriamente pela Avenida, até que um jovem aparece se oferecendo para musicar ao violão os nossos versos. Também disse “inesperado” – em faceta do antes mencionado “surpreendente” –, porque sempre achei que faltava um pastel para comer na Avenida Paulista... Mas eis que não falta mais, pois apareceu (provavelmente no nº 669) uma pastelaria – cujo carro-chefe é a iguaria de carne-seca –, aparentemente gerenciada por uma simpática senhora de traços orientais que atende pelo nome de Tereza, que, em tom jocoso e brincalhão, sempre “joga para cima” a conta dos comilões.

 

Shoppings? Bem, opções para olhar e gastar (mais para olhar), como o Shopping Center 3 e o Shopping Pátio Paulista, com um belo relógio e vitral na entrada; este último, na verdade, não exatamente na Paulista (fica na Rua Treze de Maio), mas alcançando-o pela Avenida no sentido Bela Vista.

 

O consumo continua a se mostrar convidativo, como na visita à FNAC, no nº 901, onde tendo acesso por uma pequena portaria, chega-se a uma loja imensa no subsolo. O consumo também se revela proibitivo nas lojas de alto padrão, nos restaurantes refinados. Mostra-se fascinante, como nas galerias e mini-shoppings de maravilhas eletrônicas dominados por imigrantes chineses e coreanos.

 

E, de repente, na caminhada, vê-se um prédio residencial, o Edifício Ribeirão Preto, de mesmo nome de minha terra natal... Na verdade, a indicação de “Edifício Ribeirão Preto” está localizada na esquina da Paulista com a Rua Teixeira da Silva, no nº 96, e a parte dele localizada na Avenida, com o nº 266; de qualquer forma, nada mais natural que, na Avenida que se chama Paulista, termos uma referência a uma cidade do Estado de São Paulo.

 

A Avenida é um todo, mas, singularmente falando, nada substitui a própria Paulista. As suas atrações e seus marcos, dela são coadjuvantes. O seu entardecer mostra um cinza azulado agressivo, mas que não impede que as luzes da iluminação pública e dos automóveis criem caleidoscópios incandescentes no horizonte, donde, com um pouco de atenção, ainda se consegue perceber as flores enraizadas em vasos suspensos no canteiro que divide os dois sentidos de trânsito. Pedintes, drogados e “bichos-grilo” de toda a espécie também se fazem presentes nesse fluxo fruto do aspecto “modernizador” da Avenida, misturando-se aos milhares de trabalhadores – engravatados sim, mas peões de escritório –, que correm contra o tempo. Todos igualmente são coadjuvantes desse grande braço vivo da cidade de São Paulo, que faz os jovens crerem que é possível se apaixonar ao mesmo tempo um milhão de vezes por coisas e pessoas em cada um dos dias vividos. Como resultado dessas paixões – majoritariamente anônimas e não correspondidas –, todos anseiam fazer da Paulista uma parte e um palco de sua própria história, como nas inúmeras manifestações populares e, até mesmo, nas comemorações das torcidas quando suas equipes conquistam títulos...

 

[Posteriormente, por ser importante corredor de acesso na região central da cidade e caminho para vários hospitais – no que se somou a quebradeira geral e confronto com a Polícia Militar na noite de 14 de julho de 2005, em virtude da conquista do tricampeonato da Taça Libertadores da América, pelo São Paulo Futebol Clube – as manifestações na Paulista passaram a ser oficialmente coibidas]

 

E observe-se, ainda, que dentro desse fluxo, fruto do aspecto “modernizador”, que as pessoas – conscientemente ou não –, a ele conseguem se opor com suas particularidades, seja trabalhando na região e fazendo coisas simples, seja caminhando pela Paulista como parte de uma estratégia de regozijo e lazer, ou mesmo, fazendo, como já dito e dentro das possibilidades, da Avenida o palco de suas expressões coletivas.

 

Nos Natais, um capítulo à parte, pois a Paulista se preenche com novas luzes de alegria e expressão. Recorde-se a ocasião do dia 08 de dezembro de 2008, defronte ao Edifício do Bradesco, no nº 1450, em que além da característica decoração natalina, tivemos apresentações do Coral da Fundação Bradesco, do repertório de jazz da São Paulo Dixieland Band e dos bailarinos da Cia. Nílton Travesso, encenando a vida de uma São Paulo dos anos 1950, que como hoje, era muito corrida, mas que – inclusive pela moda –, não existe mais, permanecendo, porém, sublinhada em nosso imaginário pelas estrofes das canções da “Sinfonia Paulistana”, do compositor Billy Blanco (“... vam’bora, vam’bora, olha a hora, vam’bora, vam’bora...”), reproduzidas como vinhetas da trilha sonora do já mencionado “Jornal da Manhã”, no ar há tantos anos.

 

Mas a Paulista é a Paulista. Lá é possível andar uma madrugada inteira pensando em músicas, peregrinando de banca em banca de jornal, olhando filmes em DVD, espiando jornais de todo o mundo, vendo livros, bugigangas... Indo de café á café, tomando chá gelado e comendo pão-de-queijo, procurando alguma atração no teatro ou cinema, e esperando a fome e sede baterem no corpo novamente.

 

Não é possível fazer um roteiro da Paulista. Sempre vai faltar alguma coisa. Sempre irá faltar algo porque não conseguiremos enxergar e referenciar todas as histórias que ali se passaram, todas as casas que nela tombaram, todas as histórias de tristeza e felicidade que ali aconteceram. A Avenida Paulista, enigmaticamente, revela-se surpreendente, revela-se no inesperado. E, sobretudo, porque, por mais simples que seja – dentre tantas outras que fazemos diariamente – uma caminhada pela Paulista revela-se indecifrável. Revela-se misteriosa. Revela-se em muito além dos que os nossos olhos e corações podem ver e sentir.

 

 

 

 


Autor: Rogério Duarte Fernandes dos Passos


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