Autonomia ou não da prisão em flagrante : pode ela, por si só, ser título a manter privação durante o processo ?



A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5, LXIautoriza a privação da liberdade de locomoção daquele que esteja em flagrante delito conforme redação que aqui transcrevemos:

" Ninguém será preso, salvo em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei" ( grifo nosso).

Dessa forma, por simples interpretação literal/gramatical do dispositivo trazido pela Carta Magna, chega-se, no âmbito do processo penal, a três conclusões indiscutíveis : a regra é a liberdade, a exceção é a prisão, que só poderá ser admitida em caso de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Assim, fixadas essas regras e abstraindo-se da análise de outras medidas cautelares de natureza pessoal, vamos tentar responder à seguinte pergunta : a prisão em flagrante tem natureza autônoma ? Em outras palavras: ela é titulo prisional que assegure, por si só, a restrição de pessoa durante o processo ?

Como resposta a essa pergunta, é possível ver na doutrina duas correntes que divergem acerca de ser a prisão em flagrante uma verdadeira medida cautelar pessoal ou de ser medida sub-cautelar que deverá ser convertida em prisão preventiva para que a restrição à locomoção possa prosperar.

Uma primeira corrente doutrinária, defendida por Guilherme de Souza Nucci, Norberto Avena, e outros, vê na prisão em flagrante uma típica medida cautelar de natureza pessoal, sendo capaz, por si só, de manter o indivíduo sob cárcere independente de sua conversão em prisão preventiva. Sustenta essa corrente que o Código de Processo Penal em nenhum momento condiciona a subsistência da prisão em flagrante à decretação ou não da prisão preventiva, bem como em alguns casos sugere a possibilidade de manutenção do indivíduo no cárcere, como é o caso do art. 334 CPP que tem a seguinte redação : " a fiança poderá ser prestada em qualquer termo do processo, enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória" ( grifo nosso). Destarte, em se tratando de fiança ( caução real ), está-se falando necessariamente de prisão em flagrante na medida que aquela só se aplica nesta, e não também na prisão preventiva, sendo argumento oferecido pelo próprio CPP de que a prisão em flagrante é autônoma, podendo subsistir o indivíduo preso sob este título durante o íter processual.

Uma segunda corrente doutrinária, defendida por Paulo Rangel , Aury Lopes Jr. e outros, vê na prisão em flagrante uma medida de natureza sub-cautelar, ou seja, é medida que dura até a comunicação da mesma ao juiz, onde aquela, caso seja ilegal, será relaxada, e caso seja legal será objeto de concessão de liberdade provisória ou de decretação da prisão preventiva. Esta segunda corrente fundamenta a sub-cautelaridade da prisão em flagrante nas seguintes razões: em primeiro lugar, mediante simples interpretação literal dos art. 5, LXI c/c LXVI CF se nota que, enquanto o primeiro inciso condiciona a prisão em flagrante ao cometimento da infração, constituindo uma mera detenção de natureza administrativa, já que a expressão do inciso é " ninguém será preso..." e não " ninguém será mantido preso....", o segundo atribui ao preso em flagrante o direito fundamental de não permanecer nessa condição se houver autorização de liberdade provisória. Assim, é muito claro perceber que o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deve verificar em primeiro lugar se ela é legal. Se não for, aquela será relaxada ( art. 5, LXV CF). Se for legal, não pode o magistrado simplesmente homologar a prisão apenas sob o fundamento da legalidade. Não!. Deve ele, conforme art. 5,LXVI CF c/c art. 310 CPP, ouvir o MP acerca da concessão ou não da liberdade provisória. Caso não seja o caso da concessão, deve se manifestar de forma fundamentada ( art. 93, IX CF) acerca da decretação de preventiva, devendo demonstrar os pressupostos doart. 312 CPP, sob pena de ter sua decisão atacada por Habeas Corpus ( art. 5, LXVIII CF c/c art. 648,I CPP ). Em segundo lugar, deve-se atentar para o fundamento da prisão em flagrante, que não se coaduna com a visão de que ela constitui medida cautelar a sustentar privação da liberdade de locomoção como título autônomo prisional. Isso porque o fundamento dela é o de evitar a fuga do autor do fato, bem como o de manter a segurança da sociedade, evitando a desconfiança de que não haja segurança aos membros da coletividade. Dessa forma, com a detenção do autor do fato restará preenchido o fundamento no qual a prisão em flagrante se baseia, não sendo lógico efetivar uma restrição por um fundamento e perpetuar a mesma restrição quando o fundamento haja desaparecido.

Em razão de tudo o que foi exposto, deve-se optar pela segunda corrente, em razão da coerência que apresenta com a atual Constituição Federal, bem como pelas razões já apresentadas, devendo-se destacar que não se trata de fomentar a impunidade, já que há a possibilidade de decretação de medidas cautelares pessoais a fim de resguardar o processo. No sentido da segunda corrente, aliás, cumpre trazer proposta da Comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto do Código de Processo Penal, coordenada pelo Min. Hamilton Carvalhido, que em seu art. 543 prevê :

"Art. 543. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá:

I – relaxar a prisão ilegal;

II – converter a prisão em flagrante em preventiva, fundamentadamente, quando

presentes os seus pressupostos legais; ou

III – arbitrar fiança ou aplicar outras medidas cautelares mais adequadas às

circunstâncias do caso; ou

IV – conceder liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação" ( grifo nosso)

Por fim, ressaltando a importância do tema, deve-se compreender que toda essa discussão prescinde da previsão legal, já que àquele basta uma visão correta da CF e do CPP, não se podendo mais admitir que no ordenamento jurídico brasileiro só haja pacificação de orientação quando há regulação por Lei. Não! É a Lei que deve ser interpretada em face da Constituição Federal, e não o contrário. Assim, ainda que o CPP trata-se da matéria de forma contrária à exposta, dever-se-ia adotar interpretação à luz da CF a fim de não confundir medida cautelar com medida sub-cautelar, causando enorme prejuízo aos direitos fundamentais de pessoas que sequer foram denunciadas. Não se trata de agir contra legem,mas sim pró principium!


Autor: Eduardo Teixeira Ozorio da Cruz


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