Vinde vós, Dionisio



            A partir das aulas com o Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza, Adjunto da Faculdade de Letras da UFRJ,  autor de O romance tragicômico de Machado de Assis, pela editora Eduerj, entre outros, penso que a vida é muito mais do que vida, propriamente dita, mas uma das faces, iluminada ao gosto, da existência. E por que continuar a ler o que segue descrito? Exclusivamente, pelo mesmo motivo que matou o gato.

            Cotidianamente, o que se vê como expressão social é mesmo a afirmação das individualidades? No teatro que nos impõem as máscaras políticas, os ainda senhores da fortuna, a busca pela individualidade é uma utopia que subsiste à prática da homogeneização comportamental. Essa homogenia não está expressa apenas nos grupos jovens que estampam vitrines midiáticas, mas, inclusive, nos maduros e respeitados mantenedores do status quo, os que integram a classe trabalhadora alicerçando instituições e suas demandas, de modo que tal postura culmina com a aniquilação das diferenças de reflexão e conduta, assinalado por Herbert Marcuse em seu Eros e civilização, seja diretamente, com atitudes e discurso sofistico cheios de malícia, seja indiretamente, com a continua perpetuação da indiferença em relação à ignorância dos fatos em andamento.

            Seitas religiosas, orientações filosóficas, correntes do pensamento ontológico em geral ganham televisões e revistas a serviço da criação de uma massa uniforme e de pouca vivacidade, contribuindo exclusivamente para a mecanização do pensamento, que deve funcionar como uma estrutura lógica e inflexível. Ora, a lógica só pode ser aplicada a recortes, na dinâmica da vida ela é vária, porque não se pode concebê-la em dois planos dimensionais, exclusivamente, de modo que tal estrutura dicotômica sempre deixará de fora toda uma gama de processos demasiado relevantes para a compreensão do todo, que jamais será finita ou idêntica, mas que estruturalmente pode ser observada.

            Homogenia para hegemonia. É o que parece. E um dos fatores que podemos dispor como fundamentais para a atual política sócio-econômica é a maneira como ela se estrutura, partindo do trabalhador, seu artífice.

            Feito gado, vai lá, seguindo o tanger que já nem é mais grito, é só eco. Na atualidade, uma reprodução contínua de áudio. Ainda assim é o mesmo tanger, só que os rudimentos deram lugar ao cartão de visitas da modernidade, em consonância com a ordem e o progresso. Se demagogia fosse toalha de mesa, os farelos davam uma colcha de retalhos.

            Não basta culpar a acomodação do povo, ela é fruto de um maquinário que visa a tornar o homem parte da massa que deve compor, um compacto que não procura nem a expansão nem a metamorfose, mas a acomodação das unidades num perímetro controlável. É o mesmo princípio do guardador de rebanhos, que mantém sob suas vistas os animais sob os quais, naquele momento, tem posse, e para isso conhece o terreno, conhece o rebanho, sabe que animal é mais arisco, qual deles é mais valioso, porque os acompanha desde sempre, os conhece e por isso consegue prever a maior parte de suas investidas.

O guardador de rebanhos é um observador, não poderia desempenhar bem sua função se não o fosse. O gado que se cria sozinho vai para onde quer, vai viver a vida perto do capim que lhe aprouver, e aqui e lá vai se encontrar, vai se dar conta que projetar o futuro como vem fazendo é, quase sempre, uma maneira de esquecer-se do presente excessivamente penoso, com a cabeça prenha de um tradicionalismo pretérito e decrépito. Qual a recompensa, na maioria dos casos? Uma leve compensação financeira, quando muito. E morre o sujeito satisfeito porque começou filho e morreu pai, na casa própria, aposentado, realizador do destino que lhe deram quando ele nasceu, o de ser homem social que cresce e trabalha pra sustentar manipuladores que passam o cetro, a maleta, o laptop, geração após geração, de modo que viver é apenas servir. “Quem não vive pra servir, não serve pra viver”. A despeito do contexto original, a frase evoca uma imagem forte do dia a dia dos brasileiros e de outros cidadãos do mundo, pessoas que precisam de retorno financeiro e se prestam a trabalhar, sem conhecer a instituição a que servem, seus propósitos, seu modus, ou lhes ignorando pela necessidade, de modo que constituem não apenas operários, mas clientes de outras instituições, com outros operários, uma rede de valores de consumo que vai agregando serviços e serviçais com ares de natural.

Aniquilar o trabalhador, aquele vive do comércio, da prestação de serviços, que é a comercialização de suas capacidades, transformá-lo numa massa que consome e produz, produz e consome, valendo-se dos esforços de todos para a sobrevivência, da morte de muitos com a negligência e a permanência dos que acossados pelo medo vivem sem questionar, fazer desse trabalhador algo que não pensa a própria condição, é uma forma tacanha e cômoda de administração, como também é uma excelente forma de manter apaziguados os ânimos contrários à estagnação. Não precisamos ir até a ascensão da burguesia para, como Marx, maravilhar-nos com o desempenho da classe dos trabalhadores, temos os cretenses, a quem se atribui que o artista pouco se diferenciava do artesão, porque seu ofício, mesmo uma produção em série, tinha liberdade criativa e aos receptores das obras também ficava a contribuição, de forma que não queriam apenas possuir uma obra bela, mas original.

Imperando o pensamento doutrinal, no sentido de que toda orientação seja unilateral e todo movimento seja uniforme, como é possível o desenvolvimento qualitativo? É possível progredir, sim, e em ordem, claro, mas um progredir monoperspectivado, que preenche o vazio do mito, que é nada e tudo, e assume ares que, nacionalmente, oscilam entre o absolutismo tradicional, quando o indivíduo não tem currículo e precisa se apegar a deuses, ou então o despotismo esclarecido, quando o dito cujo tem um diploma da Sorbonne.

Enquanto Apolo pode reger-nos em nossas aspirações à expressão, e falo da busca pela originalidade que promova a particularização, e aí a imortalidade, é Dionísio que nos deve reger como grupo, de modo que nossa busca pela individuação seja sempre um movimento coletivo, que não precisa ter forma específica, não precisa estar encurralada, desde que esteja em uma relação harmônica a maneira como se estruturará e sua renovação torna-se o objetivo da vida. O quanto não floresceria das idéias de cabeças livres e assim capazes de uma comunicação que não é doutrinação, mas experiência? Teríamos a interioridade convertida em um laboratório experimental da linguagem e de todo seu potencial actante. Ao mundo, caberia a representação, e as representações formariam seu relacionamento, trazendo autor e obra à baila, de forma que estaríamos num fluxo continuo e valeria, portanto, a máxima do conhecer como autoconhecimento.

Busca pela perfeição? De forma alguma. A perfeição indica que o desenvolvimento teve fim, que o movimento está cessado. Primeiro, foi o verbo, a ação, o que nasce e morre, e não cessa de nascer e morrer, e assim se renova, e ele é athanatos. O que se pretende é a liberdade para criar, para expressar, e a liberdade não apenas política, mas plena, a liberdade que não se interrompe diante da fome, da falta de instrução, da estigmatização, em suma, da malandragem. Para que o jogo tenha graça é preciso estar-se à par das regras e dos movimentos dos adversários. Na atual conjuntura, creio que estamos disputando às cegas com bodes expiatórios que teatralizam o maior espetáculo da terra. Que dizer, teoria da conspiração? E o inverso, que seria, teoria da adulação ou da acomodação? Uma teoria geral da alienação? Navegar é preciso. 


Autor: Antonio Castro Jr.


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