O Homem Unitário



Era um homem solitário. Mas só agora, aos 43 anos, falando consigo mesmo, deu-se conta da amplitude dessa sentença. E nessa altura, uma das quatro palavras o incomodou em especial: "um ". Dera-se conta, num despretensioso devaneio, de uma sua propriedade pessoal: era um, em tudo. Tinha um, de quase tudo. Um apartamento, um carro, um emprego, um parente, um amor. Os primeiros ainda conservava consigo, o último, não mais. Este amor passado era, ao mesmo tempo, duas outras singularidades. Representava sua unitária grande alegria te-lo vivido. Era sua maior tristeza ela ter morrido. No singular, porque depois daquela, as outras infelicidades se tornaram meros aborrecimentos. O homem unitário nao foi sempre assim. Tivera mais amigos, mais parentes, mais mulheres, não amores. Conhecera mais lugares, mais pessoas. Fora mais alegre. Nem era propriamente triste, agora. Ao contrário, conservava uma espécie de humor quase atrevido. Era como se desafiasse o destino, descrente que era dele, numa espécie de queda de braço filosófica. Algo como se dissesse: por mais que me maltrates, por muito que me tires, não vos darei o que mais desejas, por tu nao me devolveres o que mais queria eu, e assim ficamos, tu não me dás, eu nao te creio. O homem unitário nao via sentido em nada, mas conseguia rir de quem esperava que houvesse sentido em tudo. Tão diferente da maioria nessas coisas todas, ele era naturalmente igual naquilo em que todos se equivalem. Tinha um corpo, e uma vida para gasta-lo, como todos, tirante aqueles que por obra do acaso tem um dedo a mais, ou um olho a menos, não se sabendo propriamente se essas coisas sao necessariamente boas ou más, imaginando-se como exemplo positivo o quanto mais se agarraria com um dedo extra, mas também, em oposição, considerando-se as tantas coisas ruins que um olho faltante nos evitaria ver. Nesses tempos de hoje, talvez grande parte das pessoas abrisse mão do dedo extra e preferisse o olho a menos. Mas isso, só aqueles indivíduos mais experientes, como o nosso homem unitário. Velho o suficiente para desdenhar dos ganhos do dedo suplementar, velhaco o bastante para saber que nao existem os tempos de hoje. So há o nosso tempo, e costumamos acha-lo pior do que os tempos passados apenas por ser esta a ordem natural das coisas, da infancia a velhice, da vida a morte, do melhor ao pior. Sempre o fim associado ao triste, não à toa a expressão popular é "o fim" e não "o começo da picada". Nao sabemos se isso pensamos nós, ou se era o que pensava o homem unitário, cujas idéias nos atrevemos a bisbilhotar, desde que ouvi-mo-lo pensando em alto. O fato é que o fim foi cogitado pelo homem unitário. O seu próprio fim. Mais uma vez lançando mão de seu humor peculiar, discutiu com o destino. Alegou que esta seria sua melhor resposta aos caprichos daquele, decretar seu fim. Nao deixaria que o destino fizesse mais esse movimento no tabuleiro. Nem aceitaria a ordem natural de que o fim é obrigatoriamente triste. Se é voluntário, não pode ser triste. O homem unitário serenamente concluiu que nada mais de muito interessante o levaria a continuar jogando xadrez com o destino. Xeque-Mate. Faltou dizer que de todas as coisas únicas que possuia, tambem havia uma arma, e dentro dela uma bala. Bastava, pensou. Para que mais? De mais não preciso, mais não quero, mais não espero. E nao esperou mais. Vestiu seu único terno, apanhou sua única valise, onde estava seu único revolver. Conferida a bala, o homem unitário sentou-se na única poltrona da casa e pensou: destino, meu velho, o que eu mais queria agora, era outra dessas coisas singulares com que me brindastes ao longo da vida. Eu queria ter somente uma, nada além de uma, razão para não fazer isso. Mas tu, como de hábito, não me dá o que peço, embora frequentemente tomes o que prezo. Pois cá está a resposta, meu caro. Tomo-lhe com esse gesto vosso direito de me conduzir. Conduzo-me eu mesmo para o fim, que haverá de ser o meu, e não o seu. O costumeiro talento para debochar das maiores desgraças, levou-o a um pensamento, antes do gesto final. Ou talvez tenha sido o destino que lhe sussurou uma última piada. O fato é que o homem unitário viu-se zombando uma vez mais do rival no xadrez, ao reclamar que nem ao menos lhe fora dado ter um sexto dedo, para com ele efetuar o disparo. Teria sido ao menos diferente de todos, em alguma coisa. Quando parou de rir, pareceu-lhe ter ouvido algo, nao diferenciou exatamente o que, mas deu voz ao pensamento e perguntou ao destino "o que?". E já que aquele dialogo era mesmo de todo disparatado, pensou que nao haveria mal em prosseguir com ele. E se em sua vida tudo era unitário, só um minuto ele concedeu para que lhe fosse dada uma única razão. Nesses 60 segundos, para ser honesto e cumprir sua parte no acordo, o homem unitário decidiu pela primeira vez na vida entregar-se ao destino. Fechou os olhos, evitando a tentação de rir por serem dois olhos e nao apenas um, e relaxou. Experimentou não pensar em nada. Mas isso não conseguia fazer. Então, resolveu que iria concentrar-se, como fez uma ocasião quando era criança e imaginou duas estrelas percorrendo o caminho de casa à escola, lentamente, observando os detalhes do trajeto, para desfazerem-se na sala de aula, transformando-se nas palavras "falte professora". Naquele dia realmente nao houve aula. Desta vez, o homem unitário, gastando seus ultimos 25 segundos, imaginaria uma estrela apenas, pairando sobre si mesmo, depois sobre o seu único apartamento, finalmente sobre seu bairro, sua cidade, melhor não olhar o País do alto, porque só nos restam 10 segundos. Foi o tempo de formar-se, diante da escuridão dos olhos fechados do homem unitário, as ondas de um retrato lentamente desenhado. O retrato dela. Única. Unitária.
Autor: Luiz R.


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