A Menina Que Não Quer Partir



(by Lucia Czer)

Ela está presa na caixa, tenta livrar-se, mexe-se, agita-se e, às vezes, até consegue. Aí, então, explode num gesto inusitado a sua euforia.

Ri alto, gostosamente. Joga a cabeça para trás, num gesto só seu, e ri numa gargalhada contagiante. Imediatamente, dando-se conta, retrai-se, mostra-se tímida e envergonhada diante das expressões inquisidoras.

Encabula e junta a cabeleira loira à nuca, prendendo-a num coque sisudo. Os olhos, esses sim, não consegue contê-los. O verde brincalhão do olhar a trai, mostra-se, exibe-se despudorado. Ela baixa os cílios na tentativa de escondê-los, em vão. Eles são audaciosos, teimosos e anseiam por liberdade. E é através deles, dos olhos dela, que os netos descobrem a menina presa na "caixa", a garota contida no corpo da mulher madura, que não quer partir.

A "caixa" já não permite descer os degraus da escada de dois em dois, aos trancos e saltos, nem brincar de pega-pega por mais de quinze minutos. Todavia, a risada e o tom galhofeiro da voz suave acompanhados pelo olhar brejeiro, ao contar histórias em piadas, transformando os finais num "the end" diferente, não têm preço a pagar. E revelam-se, soltam-se libertos, libertinos e libertadores. Escandalizam aos filhos que a querem uma "vovó tradicional":

- Psiu, mamãe! Contenha-se...

É no cinema, no passeio pelo calçadão da cidade, às compras de bobagens no camelódromo ou no jogo de futebol na areia da praia, que ela descontrai, desinibe-se e desnuda-se.

Na cumplicidade entre as mãos dadas, avó e netos divertem-se. Entre olhares mudos e apertos breves entre os dedos, maliciosamente se comunicam e, mesmo sem que os lábios indiquem, percebem uns nos outros o alvo da crítica debochada e sem maldade.

Na volta do passeio, ninguém revela sobre a pipoca salgada que a avó não pode comer, ou sobre o sorvete, caramelos e refrigerantes que os meninos devem evitar. Um beijo e o olhar selam o pacto. No olhar da menina está implícito o recado costumeiro: "Escovar dentes".

Somente eles, os meninos, seus netos, sem conhecimento da convenção da sociedade que determina que depois dos cinqüenta anos as pessoas sejam velhas, sérias e desprovidas de prazer, a querem assim, solta e sem amarras convencionais.

Eles não vêem a "caixa", vêem o que seu coração sugere: A menina alegre, farrista, de bem com a vida que está aprisionada num invólucro gasto.


Autor: lucia czer


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