Carangas e Rózuis: A Construção do Império Monomotapa no Século XV



Carangas e Rózuis: A Construção do Império Monomotapa no Século XV.

Marques, Marcio Renato.[1]

Para falar primeiramente de História sobre civilizações africanas é necessária a compreensão de que as análises sobre determinadas culturas e sociedades dependem quase que exclusivamente de fontes etno-históricas e escritas. Também é necessário se desprender de conceitos ou idéias ocidentais que, segundo Zamparoni definem uma: "África exótica, terra selvagem, como selvagem seriam os animais e pessoas que nela habitam: miseráveis, desumanos, que se destroem em sucessivas guerras fratricidas, seres irracionais em meio aos quais assolam doenças devastadoras". (2007.p 46)

Assim estudos arqueológicos são usados em larga escala para delimitar e definir a presença das culturas do Neolítico na África austral, muitas delas ágrafas (ou frias como classificou outrora Lévi-Stráuss), onde fragmentos de cerâmica são indícios da constante movimentação de tribos nômades e da difusão de novas tecnologias trazidas por ondas migratórias.

Para as análises sobre o império Monomotapa destacam-se as ruínas de Cami, próximas a Bulaváio. Em tal sítio foram encontrados cacos de cerâmica e restos de utensílios que indicam a influência da cultura de Leopard´s Kopje[2], onde análises estratigráficas apontam a evolução dos trabalhos em metais a partir desses primeiros povos habitantes da África austral.

Existe o desconhecimento das civilizações ocidentais sobre as culturas africanas, pois mesmo no auge da atividade escravista com trocas comerciais mais freqüentes, o interior da África não sentia a presença de estrangeiros. "Ainda que os contatos diretos entre europeus, americanos e africanos, não passassem na África muito além da linha que findavam as praias, as notícias esgarçavam-se pelo interior e certas novidades, e só certas novidades expandiam-se rapidamente" (Silva, 1994.p 21)

O Conceito de Império então aplicado para caracterizar a civilização Monomotapa não obedece ao seu equivalente ocidental do mesmo período. O exemplo clássico de um Imperium na alta idade média européia encontra sua construção no século XIV com o Sacro Império Romano- Germânico. Nele a idéia de imperator é um título de poder; o monarca mesmo tendo o poder legitimado pela vontade divina não é preso a ritos religiosos. No caso do império africano que demorou a se estruturar, o soberano tem uma função no campo espiritual; é guardião do monte Mânua[3] (templo religioso) e exerce um poder absoluto, mesmo existindo uma relação de "vassalagem" estruturada em uma elite guerreira (Rózuis[4]).

Assim, de modo mais amplo tal característica é muito presente entre as culturas subsaarianas onde:

O rei, quando não era propriamente um deus, era considerado como descendente dos deuses, e era por isso separado dos homens comuns por uma série de rituais. Ele era raramente visto em público, geralmente dava audiência atrás de uma espécie de cortina, comunicava essencialmente através de porta-vozes e não podia ser visto a realizar simples actos mundanos como comer e beber. Ele era o representante dos deuses para o controlo do uso da terra de que o povo dependia, determinava as épocas de sementeira e colheita [...]. Pensava se que a fertilidade do solo, a queda regular de chuvas e, portanto, todo o bem-estar da comunidade estava dependente dele [...] a sua falta de saúde era um desastre que ou tinha de ser dissimulado ou por vezes terminava com o seu assassínio ritual. [...] Na sua corte havia geralmente um lugar importante para uma grande rainha ou rainha-mãe, que era a mulher principal da família real e não a esposa. Abaixo do rei havia uma hierarquia de grandes funcionários que se ocupavam da corte e que impunham a ordem e os tributos aos súbditos das comunidades clânicase aldeãs. (Fage, 1997.p 7)

A Ocupação e a Estruturação da Sociedade.

A origem do povo Caranga é desconhecida, uma das poucas certezas é que migraram de regiões próximas ao Congo e se estabeleceram na Rodésia por volta do ano 1000 d.C. onde nesta jornada encontraram povos Bosquímanos e indígenas que já dominavam a metalurgia. (FAGAN, 1970)

Os nativos locais foram dominados e utilizados como guardadores de gado e na extração de minério, uma das conseqüências foi o enriquecimento de sua cultura material, abandonando aos poucos suas cerâmicas mais rústicas encontrando um estilo próprio. A extração nas minas proporcionou a produção de ornamentos, sobretudo em ouro e cobre.

O primeiro chefe do povo Caranga, (pertencendo à elite dos Rózuis) obteve "A supremacia sobre uma desconexa confederação de regulados vassalos, que lhe pagavam tributos em marfim e em ouro em pó", onde com o passar do tempo chamaram a atenção de povos árabes da costa oriental da África. Esses comerciantes entraram em contato com a elite Rózui através dos rios Búzi e Save, trocando ouro e marfim por panos e contaria. (Fagan, 1970.p 124)

Durante o século XIII, as comunidades Carangas começaram a encontrar dificuldades, povos oriundos da Bechuanalândia pressionados pela falta de recursos da região do Calaari adentravam em seu território. Uma medida em comum adotada pelos chefes Rózuis foi à militarização da sociedade, destacando diversos regimentos guerreiros espalhados dispersos em vários pontos, o que colaborou para o fortalecimento de sua autoridade. Estes chefes também controlavam a conduta e o andamento dos cultos, bem como possuíam uma espécie de conselho para auxiliá-los nas decisões.

A partir do século XV a influência dos árabes nas relações comerciais se solidificou, surgiram entrepostos espalhados pelo território Caranga. Porém sua influência não se restringia apenas ao comércio, talvez seu objetivo fosse uma atmosfera de segurança política, em um território não tão fragmentado para estabelecer uma rede comercial mais estável; assim possivelmente foram esses estrangeiros que alimentaram aspirações imperialistas entre os mambos[5]. (ABRAHAM, 1960)

A Curta unificação e o contato com os portugueses em Sofala.

Por volta do ano de 1440, um entre os vários mambos, chamado Mutota[6] se lançou a uma ambiciosa campanha militar, a fim de construir um vasto império. Segundo Fagan (1970) outros motivos além da influência árabe podem ser apontados, como o superpovoamento da pátria Caranga em função do crescimento das atividades econômicas, que resultou na escassez de sal o que muito prejudicava os agricultores.

Na década seguinte Mutota já era senhor de toda a Rodésia, com exceção da região oriental, porém um governo centralizado não duraria muito. Os árabes estabeleceram novos entrepostos comerciais, expandindo sua influência mais ao norte graças a um curto período de estabilidade que se perpetuou com o governo de Mutope (filho de Mutota) que conseguiu expandir o império até o vale do Zambeze.

O governo de Mutope foi caracterizado por um sistema de "vassalagem", com a distribuição de terras e juramento de lealdade prestada por certos Rózuis, porém as diferenças culturais e conflitos entre a elite culminaram com a fragmentação. Segundo Fagan (1981) "Por volta de 1490, as partes meridionais do reino romperam com a autoridade central, constituindo, sob a liderança de Changamire, um poderoso Estado separado", assim o Muene Mutapa manteve sob seu domínio apenas uma pequena porção do seu antigo território que acabou se desestruturando efetivamente com a chegada dos portugueses.

Changa que mais tarde mudou seu nome para Changamire I entrou em conflito com Niauma, filho de Mutope. Saindo vencedor, Changamire após quatro anos foi morto pelo filho de Niauma, Cacuio Comuniaca. Porém o filho de Changamire usando de diplomacia recuperou boa parte do território original do reino de seu pai.

Foi neste cenário fragmentado que os portugueses encontraram o império nos primeiros anos do século XVI, com o reino de Cacuio exercendo sua autoridade apenas em parte da Rodésia e no litoral e com os herdeiros de Changamire governando os Carangas do interior. Os ocidentais passaram a estabelecer um contato efetivo após 1514, na capitania de Sofala. O interesse surgiu após as descrições do degredado António Fernandes que adentrou a região do Zambeze em busca de mantimentos e ouro.

Fernandes tinha relações amigáveis com o filho de Cacuio, Chicuiu; o que motivou os portugueses a empreenderem maiores esforços que resultaram em entrepostos de comércio ao longo dos rios Sena e Tete, passando a explorar inclusive o vale do Zambeze. (FAGAN, 1970)

Assim apesar de sua curta existência tendo um governo unificado até o século XVI, o Império Monomotapa foi um dos expoentes culturais na África Austral, atingindo complexa organização econômica e social. Sua cultura material era vasta, produzindo instrumentos cada vez mais elaborados e realizando trocas comerciais freqüentes em um primeiro momento com árabes e posteriormente com portugueses.

Sem dúvida o contato com o ocidente trouxe um profundo impacto na sociedade, acontecendo de maneira gradativa do litoral ao interior o que gerou um enfraquecimento frente às investidas dos colonizadores após o século XVIII, A começar pelo que Alencastro (2000) explanou na relação entre os prazos [7]o que com o passar do tempo modificou a lógica da relação de vassalagem entre o soberano e os prazeiros.

Referências:

____ABRAHAM, Donald. The Early political history of the Kingdom of Mwene Mutapa, 850-1589. In Historians in Tropical Africa, Salisbury, 1960.

____ALENCASTRO, Luis Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul - Séculos XVI e XVII. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.

____ FAGAN, Brian. África Austral. Editorial Verbo. Rio de Janeiro. 1970.

____FAGAN, Brian. As Origens da Cultura do Zimbábue. In História Geral da África. Editora Ática. São Paulo 1981.

____FAGE, D.História da África.Edições 70.Lisboa.1997

____MONTEIRO, José Maria de Souza.Diccionario geographico das provincias e possessões portuguezas no Ultramar em que se descrevem as ilhas e pontos continentaes que actualmente possue a corôa portugueza. Tipografia Lisboense 1859. Acessado em 15/11/08/. Disponível em:http://purl.pt/13931

____SILVA, Alberto da costa e.O Brasil, A África e o Atlântico no Século XIX. 1994. Acessado em 15/11/08. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141994000200003&script=sci_arttext&tlng=en

___ZAMPARONI, Valdemir. A África e os Estudos Africanos no Brasil: Passado e Futuro. Acessado em 16/11/08. Disponível em:http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252007000200018&script=sci_arttext




Autor: Marcio Renato Marques


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