Das Dores às Graças



... Eu não sei que dia era, mas deveria ser um dia importante. Havia muita gente se deslocando para lá, até os cachorros estavam inquietos. O Pimpolho, meu vizinho, sabe aquele cachorro pequeno?...Isto é, pequeno para os seres humanos, mas para mim não! Era do meu tamanho. Gostava de brincar com ele, bastava eu aparecer no muro que a festa se iniciava. Latia, latia e pulava até cair de costas do seu lado muro... Vou virar do outro lado que o sol já está queimando deste. O Mezaque falou que vai arrumar este muro, tomara deus que não!!! Encaixo-me bem na ausência dos dois tijolos.


... Aquele dia, não sei o que aconteceu, tinha eu descido do muro, não percebi que o Pimpolho tinha escapado e agarrou-me de surpresa pelo traseiro com os dentes já atarracados. A luta foi grande. Derrubamos duas latas de lixos e assustamos o canário do seu Zé das Pitangas. Dei um duro danado para sair daquela...

- Das Dores, você ainda não começou o almoço? A das Graças jávem, Vai chegar já!
Gosto dessa velha. Dona Zulmira é uma "brasa mora"? como diz o seu filho Zé Luís, pena que o cara fala muito alto e me acorda o tempo todo. No início me assustava, ficava intrigado, agora já me acostumei.

... Estava deitado na calçada e ensangüentado nas coxas quando surgiu das Dores e me transportou para esta casa, tratou dos meus ferimentos como se eu fosse seu próprio filho. Isso, em mim, provocou uma sensação muito agradável, igualei-me a um ser humano. Imagine você! Das Graças não gostava nem um pouco de mim, mas também não me molestava, olhava-me com aqueles olhos verdes, assemelhava-se a uma gata. Olhos iguais ao da minha falecida mãe, que Deus a tenha. Foi atropelada há algum tempo quando houve uma briga entre ela e o Pimpolho

- Oi querido! Como você está meu bem? Sarou?

Essa que acaba de chegar é Das Graças, aquela que não gostava de mim, bem... Posso até mudar de idéia agora. Você viu só o tratamento dispensado a mim? Mas isso tem uma grande razão: estava eu transitando pela cozinha, como faço costumeiramente e Das Dores atribulada com oalmoço de domingo( era o seu dia de cozinhar). Preparava um bife acebolado. O cheiro invadia meu estomago, o horário invadia a cabeça dela, este aqui é um momento que vale a pena ser irracional. Não sou preso a nenhuma mortífera máquina e como tal comanda os desígnios da humanidade. Eu faço o meu tempo. È o preço da modernidade! Eis que senão quando, aquela desgraçada pisou-me no pescoço. Imagine aquele mulherão em cima de um gatilho frágil?

Eu pulava como um pato destroncado e naquele momento passava-me, muito bem, por um verdadeiro acrobata de circo americano. As duas meninas dos meus olhos, tontas com o acidente, num átimo trombaram-se num dos canto do meu olho esquerdo, tal era meu desespero. Segundo Das Dores, tive traumatismo craniano, foi diagnóstico observado na craniografia. È mole pro gato? Também pudera, uma carreta passou por cima de mim e ainda misturou-me os hemisférios. Eu queria miar, não conseguia, saiam apenas gemidos de dor, minha cabeça pesava. Das Graças, apavorada, chamou o Mezaque. Ele, um rapaz alto, entroncado e peludo. Parecia meu parente. Das Graças o chamava de "meu gato". O homem chegou assustado e deu comigo estatelado no chão, com uma poça de sangue ao lado. Alguns segundos depois, escutei o ronco de um motor, o barulho parecia ser o da brasília vermelha do Seu Oscar. Senti alguém me pegar.

...Quando acordei, os meus hemisférios já estavam refeitos e meu corpo repousava no sofá, com a família inteira ali ao meu redor, minto, Das Graças não estava. Só fiquei sabendo dela depois, quando Das Dores me levou ao quarto e lá estava a coitada aos soluços já descompassados e nos olhos toda a tristeza do mundo. Era por minha causa, isso me envaidecia! Sofri, mas valeu a pena ganhar a sua graça.
O sol está ardido, estou sentindo os meus pelos queimando, vou lá dentro fuçar alguma coisa.
- Oi querido! Com fome? Coloquei um leitinho para você atrás da porta.

Vou tomar esse leite e cochilar no sofá. Ainda bem que o sinal da aula já tocou e aqueles pentelhos da Das Dores já foram para escola, agora posso descansar mais um pouco. Gosto de brincar com eles, mas tem horas que "dá no saco"! Aquele grandão faz de mim gato e sapato e a menina me faz de peteca. Isso me cansa, sou também um ser vivo e como tal também queimo energia. È... Esse é o preço que eu pago por ser um animal doméstico.

(Ademar Oliveira de Lima)


Autor: Ademar Oliveira de Lima


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