Uma senhora original



 

UMA SENHORA ORIGINAL

De Romano Dazzi

 

Gostaria que a conhecessem.

Baixinha, gordinha, diria uns cinco pés de altura por quatro de cintura.

Simpática, alegre, mas contida, cabelo loiro mexido, duas continhas azul claro no lugar dos olhos.

Como olhos de boneca, eu pensava.

Nunca fomos formalmente apresentados.

Quando a conheci, eu devia ter uns cinco anos; ela tinha trinta e nove.

Era a primeira vez que a via, penso; não me lembro de tê-la notado antes.

Mas ela com certeza já me conhecia muito bem.

Foi, de minha parte, amor à primeira vista; mas amei-a sempre em silêncio, porque ela era de outro.

Fazia comidas de que eu não gostava, mas que eu acabava engolindo discretamente, com muita água, porque não ficaria bem reclamar. Ela se esforçava tanto... 

Para mim era um suplício também, quando me tirava da cama cedo, a força, nas manhãs frias do inverno; ou quando me mandava lavar as orelhas com aquela água gelada; ou quando me obrigava a trocar de roupa antes de deitar.

O frio, os membros enregelados, a sensação de estar morrendo de inanição, ficaram em meu corpo por muitos anos depois.

Era uma mulher de caráter forte, escondido por trás daquelas continhas claras e da fala macia, cativante, pausada. 

Usava alguns termos que me soavam estranhos, sobras de suas andanças entre a Europa e a América .

A tralha no sótão, para ela nunca passou de “ratatouille”; quem vivia alegremente, tinha “pai pançudo”; e bastava que alguém a tirasse do sério para ela explodir em um sonoro “vammurí ammazzate”.

Podia caminhar por quilômetros devagar, sem cansar, mas nunca a vi correr, e nunca conseguiu subir em uma bicicleta.

Era capaz de contar histórias por horas, até eu adormecer; e sua maneira calma de falar me fascinava; falava da sua vida, que nada tivera de aventura, mas que mesmo assim a levara a atravessar o Atlântico quatro vezes, naqueles lentos navios antigos, que partiam e chegavam se e quando Deus permitia.

Descrevia com pormenores intensos esses navios, de proa a popa, com uma riqueza de detalhes impressionante.

Pintava com cores brilhantes todos os lugares por onde passara – reconheci muitas coisas em Marselha, em Florença, em Roma, em Santos, pelas descrições que ela me tinha feito muitos e muitos anos antes.

Contava a respeito da família que tivera – uma família feita de carinho, de coração e de orgulho - e que ela deixara para trás, para seguir aquele que sempre foi o único homem da vida dela. 

Não brigava, não levantava a voz, não jogava coisas no ar ou atrás das pessoas, como o marido dela costumava fazer, com razão ou não.

Mas deixava passar a tempestade e o vento, recusando-se tenazmente a oferecer resistências, a lutar, a guerrear. Era um caule de bambu. Sábia, sabia que perderia facilmente tudo, em um confronto direto.

Então, quando percebia que o vento da discussão amainava (ele pára logo, quando não encontra uma muralha que lhe resista) nos últimos instantes, permitia-se um comentário que nada tinha de belicoso ou de irônico:

- Sim, eu sei, você tem sempre razão....

O orgulho, por trás desta humilde confissão, poderia ser sentido e tocado em sua plenitude.   

E aí, a tormenta recomeçava e o vento voltava a rugir – e ela novamente calada, só esperando o momento certo; e enfim repetia: - sim, eu sei, você tem sempre razão.

E finalmente o vento calava, e tudo voltava em paz.

Com isso, ela nunca perdeu um round.

Em minha opinião, ela sempre ganhou, de longe e de todos os que a enfrentaram.

Ela era uma mulher do povo; não uma aristocrata, uma burguesa, nem mesmo uma camponesa.

Pertencia àquela classe formada pelos filhos dos agricultores, que se mudaram para as cidades no auge da revolução industrial, e que continuaram a padecer os males de sempre: má moradia, má alimentação, mau salário, nenhuma saúde, nenhuma educação.

Custa a crer que tenham sobrevivido a tanta carestia, a tantos sacrifícios.

Mesmo assim, tinham doze filhos, trabalhavam doze horas por dia, e aos domingos, após a missa, iam ao baile popular na praça.

E nunca deixaram de cantar; lembro-me de ouvi-la gorjear, como um passarinho, enquanto arrumava as camas, varria o chão ou brigava bravamente, em pé de guerra, com as teimosias do maldito fogão a lenha – que enchia de uma fumaça acre a casa toda, por horas a fio.

Ela tinha idéias muito próprias, quanto a tudo. E dava as suas opiniões sem receios, doessem a quem quer que fosse.

Religiosa, mas não fanática, nunca deixou de reclamar com o Pai Eterno, às vezes em tons ásperos, todos os males, as aflições, as desgraças e as doenças que aconteciam o tempo todo.

Não gostava de Mussolini, e dizia isso abertamente – não acabou presa por milagre.

Enfrentou a guerra com espírito de sacrifício e de humildade, rezando todos os dias para que a grande besteira chegasse logo a um fim.

Dividia o pouco que tinha à mesa, dando a cada um uma pequena parte; se não sobrasse para ela, paciência.

Era supersticiosa, muito. 

Temia um gato preto, um guarda-chuva aberto dentro de casa, um chapéu jogado sobre a cama, levantar com o pé esquerdo, o numero treze, como se fossem portadores das maiores desgraças.

Um dia, depois de tentar inutilmente me convencer que passar sob uma escada dá azar (e eu tinha acabado de passar), teve o seu momento de glória; sai, escorreguei no gelo e bati a cabeça. Ficou assustada, pesarosa como se ela mesma tivesse sido a causa do “azar” mas falou nessa “confirmação” por anos a fio com as amigas.

 

O tempo passou, a família se desfez, cada um foi para um canto, como deve ser nos tempos modernos; ela foi envelhecendo, encolhendo, enrugando, os olhinhos cada vez mais meigos, mais apagadinhos, até que dela só restou um soprinho.

E num dia de vento, ela não quis resistir e se deixou levar .

Tenho saudade dela.

Gostaria que a tivessem conhecido.

Era minha Mãe.

 


Autor: Romano Dazzi


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