Evolução Histórica do Bem de Família no Direito Brasileiro



1. Antecedentes Legislativos

O bem de família no Brasil foi influenciado pelo homestead, que teve sua criação na República do Texas – Estados Unidos – através da publicação do Homestead Exemption Act, em 1839, que assim versava:

De e após a passagem desta lei, será reservado a todo cidadão ou chefe de família, nesta república, livre e independente do poder de um mandado de fieri facias ou outra execução, emitido de qualquer Corte de jurisdição competente, 50 acres de terra, ou um terreno na cidade, incluindo o bem da família dele ou dela, e melhorias que não excedam a 500 dólares, em valor todo mobiliário e utensílios domésticos, provendo para que não excedam o valor de 200 dólares, todos os instrumentos (utensílios, ferramentas) de lavoura (providenciando para que não excedam a 50 dólares), todas as ferramentas, aparatos e livros pertencentes ao comercio ou profissão de qualquer cidadão, cinco vacas de leite, uma junta de bois para o trabalho ou um cavalo, vinte porcos e previsões para um ano; e todas as leis ou partes delas que contradigam ou se oponham aos preceitos deste ato, são ineficazes perante ele. Que seja providenciado que a edição deste ato não interfira com os contratos entre as partes, feitos até agora. (Digest of the laws of Texas, § 3.798).[1]

No Brasil várias foram às maneiras de tentar-se a introdução do bem de família na legislação, no entanto, dificultosa e lenta foi sua chegada.

O Decreto 737, de 25 de novembro de 1850, já isentava alguns bens de penhora, tendo como objetivo preservar o executado.

Em 1893 o deputado Leovigildo Filgueiras apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei ao qual tratava sobre a impenhorabilidade de alguns bens, como o seguro de vida instituído pelo devedor em benefício de pessoas de sua família, o imóvel onde residia o devedor e sua família, bem como os utensílios a ela pertencentes. Porém tal projeto não foi levado à frente pela Câmara.

Outra tentativa frustrada foi a de Coelho Rodrigues, com a apresentação do projeto do Código Civil, também em 1893, que apresentava a proposta da constituição do “lar de família”, especificada nos artigos 2.079 a 2.090.

O tema foi abordado de uma forma mais detalhada dando direito dos cônjuges ou terceiro de constituir o “lar de família” tornando-o inalienável e indivisível durante o período do matrimônio e mesmo após seu término; ou ainda enquanto a mulher se conservar viúva ou existir filhos menores do casal. Tornava também inalienáveis os bens que guarneciam a casa.

No entanto, o projeto não tornava impenhorável o “lar de família”. Coelho Rodrigues foi contratado pelo Governo, a fim de fazer o projeto do Código Civil, mas no entanto teve seu projeto rejeitado.

Francisco Toledo de Malta, deputado paulista, em 1903 apresentou a Câmara do deputados um projeto cujo titulo era “a isenção da penhora (homestead) ao imóvel rural”[2], o projeto tratava apenas do prédio rural tornando-o impenhorável, bem como a casa, as benfeitorias, os furtos, os móveis, utensílios, instrumentos de trabalho, os animais de criação; também delimitava o valor do imóvel e seu tamanho.

Apesar de tratar de maneira mais criteriosa o assunto, teve um aspecto negativo quanto ao tornar extinto o privilégio caso os pais viessem a falecer e apenas restasse herdeiros menores de idade.

Esse projeto também não obteve êxito, apesar de ter recebido o n. 249 e de ser apreciado pela Câmara, no final não foi levado adiante.

Esmeraldino de Bandeira propôs o projeto do Código de Processo Civil que foi aprovado pelo Decreto n°.8.332 em 1910, entretanto esse foi suspenso pelo Decreto n.°8.435 do mesmo ano, a fim de que aguardasse pronunciamento do Congresso Nacional, o que nunca ocorreu.

Nesse projeto Esmeraldino demonstra claramente a adoção do homestead, isentava de penhora a casa de propriedade do devedor, por ele habitada com sua família, traz também limitação ao valor do imóvel devendo a inalienabilidade do imóvel ser demonstrada de forma pública e averbada no registro de hipotecas.

Até o momento histórico datado todas as tentativas de implementação do bem de família na legislação pátria foram frustrantes, ao passo que nenhuma delas obteve êxito em serem publicadas.

Mas com a entrada em vigor do Código Civil de 1916 a figura do bem de família passa a adentrar a nossa legislação, mesmo que de forma discreta e deficiente.

É sábido que o projeto do Código Civil de 1916 de Clóvis Beviláqua não previa o instituto do bem de família, sendo que coube a Comissão Especial do Senado apresentar um parecer mandando incluir quatro artigos, que sofreram poucas alterações, regulando o homestead.

2. Legislação Específica

Com o advento do Código Civil de 1916, o instituto do bem de família foi regulamentado nos artigos 70 a 73. A finalidade do legislador era proteger a família, evitando que sua moradia fosse penhorada e esta ficasse em desamparo. Os quatro artigos introduzidos no Código trataram de forma simples o assunto, deixando lacunosa a Lei. Ela não tratou sobre assuntos como quanto ao valor do imóvel, seu tamanho ou sobre os bens que os guarnecem.

Também há de se observar que o Código de 1916 deu ao “chefe de família” o poder para se valer do instituto; em seu artigo 233 edita que o marido é o chefe da sociedade conjugal, ou seja, não dava legitimidade a mulher para o instituir, a não ser que fosse viúva ou a ela incumbisse a direção do casal. Essa situação perdurou até a entrada em vigor da Constituição de 1988, que mudou profundamente a situação, ficando proibida qualquer diferenciação entre homem e mulher, igualando o exercício de direitos e deveres da sociedade conjugal (artigo 226,§ 5°).

Diante de todos obstáculos foi-se necessário a formulação de novas normas para o instituto obtivesse êxito quanto a sua aplicabilidade.

Em setembro de 1939, foi editado o Código de Processo Civil (Lei n°. 1.608) que trouxe em seus artigos 647 a 651 a regulamentação para a constituição do bem de família. O Código Civil de 1916, em seu Artigo 73 esclarece que a instituição deverá constar na escritura pública do imóvel, porém o Código de Processo Civil de 1939, trouxe uma fase preliminar que objetiva impedir que o bem de família servisse de manobra ardilosa do devedor inadimplente para fugir as suas responsabilidades, em prejuízo do interesse dos credores.

Em 1973 a lei n. 5.869 regulamentou o atual Código de Processo Civil; todavia restaram vigentes os artigos mencionados anteriormente por expressa determinação do artigo 1.128, VI, da mesma lei.

Mas ainda, referente ao direito material haviam lacunas a serem preenchidas e com vinda do Decreto-Lei n. 3.200/41 algumas delas foram complementadas, como a limitação do valor do imóvel, passou a ser de até 100 (cem) contos de réis (artigo 19); mais como a inflação marcava a economia nacional, logo esse valor já estava defasado, a Lei n. 2.514/55 aumentou para 1 (um) milhão de cruzeiros o limite do valor do imóvel, o que não demorou a ficar defasado novamente. A Lei n. 5.653/71 teve uma abordagem diferente alterando o valor para 500 (quinhentos) salários mínimos, com a intenção de que o valor não ficasse desatualizado por causa da inflação. Mais tarde a Lei n. 6.742/79 acabou com o limite de valor, o requisito agora então seria que o imóvel fosse de habitação da família por mais de dois anos, trazendo novamente a lacuna “qual o valor a ser estipular para o bem de família?”, essa lacuna só veio a ser preenchida com o Código Civil de 2002; limitou o valor para 1/3 do patrimônio líquido do instituidor.

Outra inovação do Decreto-Lei 3.200 foi a que enquanto residissem o cônjuge sobrevivente ou filho menor o imóvel com cláusula de bem de família não entraria no inventario nem seria objeto da partilha (artigo 20), também não seria cobrado “juros da mora sobre o imposto de transição relativo a abertura da sucessão ao cancelamento da cláusula” (§2°, art. 21 da lei 3.200/41).

Mas, a maior inovação da lei referida foi a possibilidade de constituir-se bem de família sobre bem imóvel rural, destacando a extensão do bem de família aos bens móveis que guarnecem o lar, como também ao gado e instrumentos de trabalho (artigo 22); ainda houve a isenção e redução de qualquer imposto federal destinado a instituição do bem de família (artigo 23).

O Decreto-Lei trouxe várias novidades para a maior utilidade da população ao bem de família; entretanto, as questões burocráticas não tiveram avanços, o que para os menos abastados continuava sendo um obstáculo.

A lei n. 6.015/73, regulamentou toda a matéria relativa a instituição do bem de família, tendo revogado o artigo 1.128, VI do Código de Processo Civil vigente.

Houve modificações em relação aos artigos revogado, as principais alterações foram, que a publicidade do bem de família deveria se dar antes do registro (artigo 262) e passados trinta dias, ninguém se manifestando contra a instituição, o escrivão fará a inscrição na matrícula do imóvel (artigo 263).

A inovação fica por conta do acréscimo do artigo 265, que dispõe “quando o bem de família for instituído juntamente com a transmissão da propriedade (Decreto-Lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941, art. 8°, § 5º), a inscrição far-se-á imediatamente após o registro da transmissão ou, se for o caso, com a matrícula”.

Um salto deu a legislação brasileira em 29 de março de 1990, com a promulgação da Lei 8.009; essa lei dispõe exclusivamente sobre a impenhorabilidade do bem de família, trouxe avanços como o chamado pela doutrina de bem de família legal, ou seja, o bem fica impenhorável independente do seu registro no oficio imobiliário, afastando questões de extrema burocracia e que dificultava o acesso a população de baixa renda.

Por fim, temos o advento do novo Código Civil (Lei 10.406/2002) trazendo mais inovações e praticidade quanto à aplicabilidade do instituto, localizado no Livro da Família nos artigos 1.711 a 1.722.

O Código não só preencheu as lacunas existes como também corrigiu defeitos vigentes no Código Civil de 1916 quais foram, limitou o valor do bem de família para um terço do valor líquido do patrimônio dos instituidores.

O artigo 1.722 criou a possibilidade do bem de família abranger valores mobiliários com renda destinada a conservação do imóvel e ao sustento da família.

O parágrafo único do artigo 1.715 traz a possibilidade caso vier a ter execução do bem de família, o saldo deverá ser aplicado em outro prédio, como bem de família ou ainda poderá ser aplicado em títulos da dívida pública, salvo disposição contraria do juiz.

O artigo 1.720, § único traz que com a morte dos pais sub-roga-se a administração para o filho mais velho e caso seja menor de idade ao seu curador.

O artigo 1.721 traz que a separação dos cônjuges não traz fim ao instituto, mas falecendo um dos cônjuges poderá o sobrevivente pedir a extinção do mesmo (§ único).

O artigo 1.722 traz que o bem de família extingue-se com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos a curatela.

Assim verifica-se que ao longo da historia da legislação pátria, brevemente relatada, que a introdução do bem de família desde os primórdios não foi de fácil manejo, no entanto com o longo dos anos os legisladores tornaram-se mais atentos ao assunto, chegou-se a uma evolução considerável tornado o instituto acessível.

3. Bibliografia

[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família : com comentários a Lei 8.009/90. 5° ed. revista, ampliada e atualizada com o Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2002, p.27-28

BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. ed. histórica. Rio de Janeiro: 1975, V.1

CZAJKOWSKI, Rainer. A Impenhorabilidade do Bem de Família: comentários à Lei 8.009/90. 2° ed. Curitiba: Juruá; 1999.

CAMPOS, Antonio Macedo de. Comentários à Lei de Registro Públicos; registro de imóveis e disposições finais e transitórias. 2° ed. revisada e atualizada. Bauru: Jalovi, 1981 v. 3.

CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de Família: Teoria e Pratica. 2° ed. São Paulo: Saraiva; 2002.

[2] SANTOS, Marcione Pereira dos. Bem de Família: voluntário e legal São Paulo: Saraiva; 2003., p.54


Autor: Tatiane Matarazzo


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