CORREIOS



                                                                                                                 

 

105 - Correios

de Romano Dazzi

 

O serviço postal era rotineiro, mas não deixava de ser interessante.

 

Havia os vales postais, que circulavam entre as pessoas  e  deixavam a você, se o quisesse, a tarefa de imaginar a origem, a razão dessas pequenas transferências de dinheiro.

Podiam constituir um modesto presente, como do avô ao netinho, ou uma doação a um orfanato, ou uma obra assistencial; um empréstimo a parentes distantes, o pagamento de uma promessa; a retribuição de um  serviço prestado, um aluguel, uma esmola; enfim, uma variedade imensa de motivos; ao processar o vale postal, tínhamos a liberdade de escolher os mais plausíveis, montando, sobre esta escolha, alguma história interessante.

 

Havia a seção de pacotes; podiam pesar até dez quilos, e seu conteúdo não precisava ser especificado (como é obrigatório hoje)  o que também aguçava a nossa curiosidade.

Meias de lã, uma torta, um par de sapatos, uma lata de biscoitos, amostras de artigos artesanais ou de produtos comestíveis. Imaginar quem os mandava e quem os receberia, era um exercício constante de fantasia.   

 

Mas o setor mais interessante era o de cartas.  Envelopes grandes ou pequenos, personalizados ou anônimos, largos ou estreitos, brancos ou coloridos,  amontoavam-se nas mesas quando chegava a coleta das caixas de rua.   Pela caligrafia, pelo jeito de colar os selos, pela cor e tamanho do envelope, podia-se tentar  descobrir o tipo de pessoa que a tinha remetido  e adivinhar, com alguma perspectiva de êxito,  o que estaria escrito nela.

 

Hoje, com tudo automatizado e despersonalizado, este jogo não é mais possível. Ninguém mais escreve um envelope a mão; ninguém mais capricha nas maiúsculas ou força  caracteres maiores,  ao escrever o nome da cidade. Ninguém mais reduz modestamente seu nome e endereço, ao indicar o remetente.  Sempre tem uma impressora, um micro, uma etiqueta auto adesiva disponíveis; os envelopes são quase todos brancos e foram reduzidos a medidas padronizadas. 

 

O correio de hoje, seguramente devolveria ao remetente um envelope de 12 x 80 cm, que apareceu-nos um dia no correio central e que entregamos sem demora, enrolando-o com uma fita vermelha, sem dizer uma só palavra, mas ardendo de curiosidade .

 

O destinatário, uma bonita loira de seus quase trinta anos, explicou, rindo, que se tratava da declaração de amor – ou talvez fosse mais uma declaração de guerra -  de um pretendente a  namorado, cansado de tanto esperar.

 

No início daquele longo rolo de papel, sob um traço vermelho, havia uma data e estava escrito:

“Aqui te conheci e me apaixonei, perdidamente, quatro anos atrás” .

 

Seguia meio metro de espaço em branco, o que fazia imaginar como tinha sido  vazia a vida do pobre apaixonado, nesse período.

 

Quase no fim da carta, sob outro traço, trazia a data da postagem e dizia: 

“Aqui está chegando ao fim a minha paciência” .

 

E bem no fim, sempre sob um traço vermelho, com a data de cinco dias mais tarde,  dizia:

“Aqui minha paciência acabou; vou parar com isso e me alistar na legião estrangeira” 

 

 

A loira deu de ombros ao “ultimatum” ; e a legião ganhou outro desesperado.

 

Os envelopes -  dizia eu – são agora quase todos brancos. 

Se aparecer um envelope colorido,  pode crer que é propaganda.

Nada trazem de pessoal, principalmente quando começam assim:

 “Meu (minha) Caro(a) Amigo(a) Mario(a)......”

Como diabo pode ser sua amiga uma pessoa que não sabe nem se você é homem ou mulher?  Jogue fora!

 

Hoje tudo é impessoal; você abre o envelope  sem saber se vai ler uma citação de divórcio de sua mulher, ou a herança de seu tio, que Deus o tenha.

 

Antigamente, um envelopinho rosa, ou azul, antecipava que havia nascido um bebê; se havia morrido alguém , o envelope trazia uma tarja preta ou até – em alguns casos mais graves, como a morte de alguém importante,  uma moldura preta, um “passepartout” sério, rigoroso, triste,  nos seus quatro lados. 

 

O cartão de chamada para o exército era – pasmem! – cor-de-rosa bebê. E não me perguntem por quê.

 

Os vales de pagamento mensais, emitidos para os aposentados, eram amarelo-icterícia; e o aviso de demissão era – como é ainda famoso hoje – um bilhete azul-céu.

 

Tudo, então, era mais público e participativo. Ninguém se incomodava que o carteiro soubesse dos seus altos e baixos no trabalho, das suas andanças na  vida amorosa, ou na difícil luta – que sempre difícil foi – pela sobrevivência.

Achava-se normal, naqueles tempos, que as pessoas se interessassem pelos outros, que dessem palpites na vida dos outros, que se alertassem mutuamente, contra alguns elementos perigosos ou não confiáveis.  Dizia-se ao pouco precavido: - Cuidado com a poça de água! Atenção ao buraco!- 

 

Hoje, nem se pode pensar numa coisa destas. Cada um fica fechado em sua concha, em seu mundinho, mesmo  estando aflito por mil dúvidas insistentes e não tendo ninguém que ajude a dar resposta a nenhuma das suas perguntas.  Hoje, cinqüenta coitados se sujam na poça de água e outros cem tropeçam no buraco, torcendo o tornozelo, sem que ninguém dê a mínima....

 

Embora as coisas que nos empurravam como verdades sacrossantas fossem apenas mentiras e fábulas sem nexo, tínhamos nelas um válido apoio para enfrentar o nosso dia a dia e o mundo nos parecia assim mais leve e suportável.  

Eu gostava mais daquele jeito.


Autor: Romano Dazzi


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