O ÚLTIMO !



 

 

O ÚLTIMO !

De Romano Dazzi

 

Era um vendedor nato. Diria quase, um vendedor por atavismo.

Há quem pertença a uma família de médicos; há quem provenha de uma família de músicos.  Ele nascera de uma família de vendedores. Todos vendiam, sabiam vender, gostavam de vender .

Saber vender é, de inicio, uma inclinação; depois vira  paixão, profissão, arte..

Por isso não se aprende na escola, por muito que alguns tentem ensiná-la.

Para vender precisa-se ter certo conhecimento, mas acima de tudo uma refinada habilidade de comunicação pessoal.  

Não acredite quando a pessoa lhe diz que “vende de tudo”: Este não é um vendedor; é só um trambiqueiro,

Um gourmet nunca diria: “eu como de tudo”; mostraria que tem apetite,  não um gosto refinado.

Um intelectual nunca diria “eu leio de tudo”; precisaria ler muitas bobagens, antes de chegar a algo substancial, que valha realmente a pena.  

E quem “bebe de tudo” é apenas um bebum, que não distingue um Macallan original, de um Johnnie Walker falsificado.

Assim, quem “vende de tudo” não sabe o que diz, ou pior, não sabe o que faz. . .

Nosso personagem começou cedo; comprava, vendia e trocava figurinhas, bolas de gude, elásticos e ratinhos brancos; todos objetos de desejo dos moleques daquele tempo.  Era o dono do pedaço; propunha trocas,  barganhava preços,  convencia os amigos e os colegas a aceitarem uma transação, com razões válidas e argumentos irrefutáveis.  

Mais tarde, cartões de jogos eletrônicos, cubos mágicos, toda a parafernália da informática, que estava empurrando para o fundo dos baús todo um longo  passado.

Nesse tempo, estava afastando-se lentamente da periferia, rumo aos círculos menores, mais restritos, mais selecionados da sociedade; foi conhecendo gente importante, foi aceito e apreciado por sua perspicácia, pelo raciocínio rápido e acima de tudo, pela simpatia que irradiava.

Ano após ano, foi melhorando seus relacionamentos. Conseguiu chegar ao mercado internacional e passou um tempo  vendendo commodities. Eram negócios grandes, muito maiores daqueles que poderia bancar.

Mas ele estava no auge; ganhava num dia o que outros demoravam um ano para amealhar. Um bom negócio trazia dois, três outros; choviam oportunidades e ofertas.

Ganhou e perdeu, ganhou e perdeu; quando a maré mudou  perdeu, perdeu, perdeu.

As pessoas são preconceituosas, supersticiosas, até umas com outras. 

Quando acham que o amigo é um azarado, cortam as amarras e o deixam à deriva, navegando sozinho.

Voltarão, eventualmente, se a maré mudar de novo ou se o virem comandando um barco maior, mais luxuoso, um iate.  

Enquanto isso não acontece, conhecidos afastam-se, amigos somem, parentes deixam de vir às festinhas de aniversario.

Ele sentiu-se abandonado, fracassado, quase perdido. .

A vida é assim:  dá sustos e empurrões inesperados. Leva-nos para frente e puxa-nos para trás,  alternando ventos fortes e calmaria, mar tranqüilo e vagalhões.

 

Apesar de seus esforços, sua parábola estava se encaminhando lentamente para o nadir; e ele sabia, melhor que qualquer um, que não haveria volta.

Aceitou  com paciência e sabedoria o seu destino; mas ainda sabia enfrentar um cliente, dourando seus magros produtos, enfeitiçando o comprador,  brincando com as palavras. 

Mas o tempo é cruel e cobra-nos, com uma altíssima taxa de juros, o bem estar e a felicidade que nos emprestou por instantes breves demais.

 

Por fim, depois de muitos anos, encontrou-se, quebrado, a vender bilhetes de ônibus e metrô, entradas de teatros, estádios e exposições; ou seja, tendo que correr pelas beiradas, onde, é sabido, é preciso apressar-se muito,  para acompanhar os outros, e basta um momento de descuido para ser atirado para fora do carrossel.

 

Mas ele , além de ser um vendedor nato, era também um lutador.

Não se apavorou; ficou entristecido pelo que acontecia, mas resistiu bravamente aos ataques da fortuna.  Saiu da solidão fortalecido e orgulhoso

   

E ei-lo, na ultima parte de sua vida, empurrando bilhetes na porta do estádio.

Conseguia dezenas de clientes, com seus gestos amigáveis, o seu modo de ser, sempre prestativo e carinhoso. Tinha uma palavra de incentivo, qualquer que fosse o time do torcedor. Torcia por todos. “Pelo esporte!” dizia. 

Eu passava por lá todos os dias,  tivesse jogo ou não. E ele estava na portaria, firme, seguro de si, com um pacotinho de bilhetes que comprava antes, para conseguir algum trocadinho dos retardatários ou daqueles que não queriam perder tempo.

Cumprimentava-me, como fôssemos velhos amigos. Vai um bilhete hoje, doutor?

Mas estava cada dia mais perto do fim.  Passei por lá naquele dia, pouco antes do jogo de decisão.

Foi a última vez que o vi . Estava envelhecido, enrugado, um pouco pálido.

- “O último!” – gritava com sua voz rouca, o sotaque árabe, estilo 25 de março, o modo educado, suave, convincente, ligeiramente melífluo, mas assim mesmo incisivo.

-“O último!  Só preciso vender este, para ir para casa, descansar!”

“O último! Não deixem que este pobre velhinho fique na rua até tarde!” 

“O último!”

Todos davam de ombros, não acreditavam que ele tivesse ficado com um bilhete só, mais de uma hora antes daquela  partida importante; pensavam que ele deveria ter pelo menos uns cinqüenta no bolso, ou escondidos na roupa. Vendido o que estava na mão, voltaria com outro, e outro, e outro ainda.

Mas ele continuava lá, cada vez mais fraquinho, mais rouco, querendo, desejando, precisando vender seu último bilhete.

Quando passei por ele, estava lentamente descendo, deslizando, escorregando para o chão, apoiado na parede das bilheterias, vencido pela vida, lutando o seu último combate.  As pessoas vieram correndo, aturdidas, sem saber o que fazer, como sempre acontece quando alguém não passa bem   

Quando me viu, inclinando-me sobre ele, tentou abrir o seu sorriso triste e ofereceu-me o papel, murmurando num sopro, mais uma vez : “O último!”.

Mas não era um bilhete de entrada no estádio; era apenas um retângulo de papel branco, em que ele havia rabiscado, em letras tremidas:  “Obrigado, meu amigo”.

Conseguira vender até um agradecimento. 

Ajoelhei-me e fiz, perante o meu Deus,  uma oração por ele.


Autor: Romano Dazzi


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